🔓 CPLP: onde andam os livros?

A conclusão dramática de que os nossos próprios livros não circulam entre nós; a explicação é bastante simples: não há mercado
Angola investe apenas quatro por cento em educação
29/03/2021

No dia 17 deste mês, participei num webinário com dois editores, um brasileiro e um português, sobre a circulação de livros entre os países de língua oficial portuguesa, organizado pela Frente Cultural de Língua Portuguesa, sedeada no Brasil. A conclusão a que chegámos foi simples e dramática: os nossos próprios livros não circulam entre nós.

A maneira mais fácil de explicar essa realidade é: não há mercado. Isso é verdade, mas o mais importante, quanto a mim, é identificar a razão ou as razões por detrás disso. A primeira é, naturalmente, mais do que o tamanho físico (demográfico) do mercado de língua portuguesa, a situação económica e social dos nossos países. O país mais estável da CPLP, neste momento, é Portugal, mas é um país pequeno; o Brasil e Angola, que são, em termos geográficos e populacionais, os maiores países da comunidade, atravessam gritantes dificuldades económicas e sociais e os seus mercados (consumidores) estão longe de condizer com o número dos seus habitantes. Angola, apesar das suas riquezas naturais, é um país literalmente pobre.

Mas essa não é a única razão para a exiguidade do mercado livreiro de língua portuguesa. A segunda é um problema cultural das nossas sociedades: as nossas populações não têm hábitos de leitura. Todos os rankings existentes, em especial os organizados pela Unesco, confirmam que os países de língua portuguesa estão muito aquém, por exemplo, dos países nórdicos, dos Estados Unidos e da França, em termos de livros lidos anualmente, em média, pelos seus cidadãos.

Os primeiros responsáveis, embora não os únicos, por essa situação são os nossos governos. Angola, por exemplo, investe apenas quatro por cento em educação. Mas as notícias que vamos sabendo dos restantes países da nossa comunidade não são muito melhores. Observar o retrocesso verificado no Brasil em matéria de educação e pesquisa, travando a luta iniciada com o presidente Lula para superar a herança colonial nesse domínio, é, para usar uma castiça expressão lusitana, uma dor de alma.

Sem investimento na educação, não pode haver hábitos de leitura. Ultimamente, os arautos das novas tecnologias e do pensamento tecno-financeiro dominante, querem convencer-nos que isso pode ser resolvido pelo acesso generalizado à Internet. Não. A Internet é, sem dúvida, uma ferramenta cada vez mais indispensável, mas o hábito de leitura deve aprender-se em casa e, sobretudo, na escola. Aprender a ler e, principalmente, aprender a escolher o que se ler e como fazê-lo é um exercício societário, logo, comum ou comunitário.

A imagem da fogueira ou da roda em torno da qual os nossos ancestrais se reuniam para ouvir contar histórias tem de ser lembrada, para acentuar o caráter comunitário desse aprendizado, por mais solitário que, com a transformação da humanidade, o hábito de ler se tenha tornado. Lançar os jovens na selva que, como todos o sabemos, o mundo digital também é, e dizer-lhes “Virem-se!” não é, em absoluto, um exemplo de boa governação.

Investir em educação em sentido lato e verdadeiramente humanista, ou seja, não apenas em engenheiros e economistas com complexo de contabilistas, obcecados com folhas de cálculo e limites do défice, deve ser, portanto, a primeira responsabilidade de qualquer governo.

Essa visão “contabilística” dos nossos governos é a terceira razão que dificulta a existência de um verdadeiro mercado livreiro de língua portuguesa, criando obstáculos particulares à circulação de livros entre os países da nossa comunidade.

Em Angola, por exemplo, a importação de livros de literatura é obrigatoriamente taxada com 25 por cento, a título de direitos alfandegários. Desconheço os encargos que recaem sobre os livros nos outros países da CPLP, mas, por exemplo, enviar livros pelo correio para o Brasil é uma aventura. Por outro lado, comprar livros brasileiros, mesmo via online, é impossível para quem não for cidadão do país, pois, para tal, é exigido um documento fiscal brasileiro, o CPF (Cadastro de Pessoa Física). Um absurdo.

Entretanto, não são apenas estas razões, digamos assim, macro que dificultam o desenvolvimento de um mercado do livro para os autores de língua portuguesa que abranja todos os países membros da CPLP e que seja economicamente viável. Como praticante de marketing durante vários anos, sei que os mercados podem ser criados. É essa a função do marketing. Alguns agentes do mercado, nomeadamente editoras e distribuidoras, estão perfeitamente acomodados, recusando-se a usar estratégias diferenciadas para descobrir e “criar” novos leitores (não estou a referir-me aos leitores digitais) e ir ao encontro deles, por vezes por causa de complexos sociais (de classe) e até ideológicos. Em próximo artigo, falarei sobre esse tema concreto.

Por seu turno, a Frente Cultural da Língua Portuguesa anunciou que vai realizar outras discussões sobre esta temática, centradas em aspetos específicos da mesma e, sobretudo, procurando formular ideias para resolver ou pelo menos minimizar os problemas identificados. Todos os agentes, entidades e instituições envolvidas ou que lidam com o livro nos nossos países deveriam ter um interesse prioritário em participar nesta ampla discussão.

*** O autor escreve conforme o acordo ortográfico e a variante angolana da língua portuguesa.

 

 

 

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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