🔓 Viajando na maionese

Passaram-se 212 anos entre a invenção da maionese, na França, e o meu primeiro contato com ela, em Recreio, no interior de Minas Gerais
Ilustração: FP Rodrigues
18/12/2020

(18/12/20)

Uma das teorias mais aceitas para a invenção da maionese é a de que, após a batalha naval de Mahón, uma das ilhas Baleares (arquipélago pertencente à Espanha), vencida pelos franceses contra os britânicos, em 1756, o Duque de Richelieu pediu a seu cozinheiro a organização de um banquete comemorativo. Então, o cozinheiro, cujo nome perdeu-se, criou um molho especial à base de ovos e azeite, ao qual deu o nome de mahonnaise, que, de tão bem-sucedido, conquistou as mesas do mundo, com o nome de mayonnaise. Não sei quando a mayonnaise, aportuguesada para maionese, chegou ao Brasil – sei que demorou 212 anos para eu ter contato com ela.

Em um domingo qualquer de 1968, seu Zé Lincoln, dono de um cortiço encravado na Vila Teresa, em Cataguases, onde morávamos, famílias operárias e pequenos contraventores, convidou minha mãe para acompanhá-los, ele e a mulher, dona Maria, a uma visita à cunhada, que morava em Recreio, cidade situada na divisa dos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Minha mãe, além de lavadeira deles, auxiliava dona Maria, quando necessário, arrumando a casa, levando vasilhas em algum almoço especial, tomando conta da Paula, a filha pequena, sem que ganhasse nada a mais por isso, a não ser, claro, a eterna gratidão. Advinha daí, talvez, o convite, restando a mim, o caçula, seguir com minha mãe.

Seu Zé Lincoln era péssimo motorista, nunca havia conseguido tirar a carteira de habilitação, ele e dona Maria descombinavam como cão e gato e iríamos enfrentar a temida Rio-Bahia, que, passando vinte e dois quilômetros ao largo de Cataguases, nos soava como cenário de horríveis acidentes. Por meu turno, eu enjoava muito nessa época, quando me despachavam para a casa dos meus avós, em Rodeiro, onde passava as férias do meio e do fim do ano, agarrava-me a um limão-galego, que ia cheirando ao longo das quase duas horas que o ônibus da Viação Marotti demorava no itinerário.

Entramos na vemaguete laranja e, entre Cataguases e Leopoldina, salvo por uns gritos irritados, ora dados por Zé Lincoln, ora por dona Maria, para que a Paula sossegasse, a viagem transcorreu tranquila. Os problemas começaram quando chegamos ao trevo da Rio-Bahia, cuja entrada seu Zé Lincoln errou – ele só percebeu que estávamos na direção contrária após percorridos uns seis quilômetros, e ainda rodou por mais uns dois quilômetros até encontrar um posto de gasolina no qual pudesse fazer o retorno. Dona Maria, portuguesa comprida e brava, começou a criticar o marido, chamando-o de estúpido, imprestável, até que ele parou o carro no acostamento, saiu andando a pé e falou que nos virássemos para retornar para casa. Houve necessidade de intervenção da minha mãe e, depois de uns quinze minutos de tentativa de conciliação, ele aceitou retomar a viagem.

Avançamos em profundo silêncio, apenas o barulho ardido do motor de dois tempos da vemaguete e do vento que entrava pela janela. Tenso, seu Zé Lincoln suava. Dona Maria, ofendida, mantinha o corpo rijo como uma espada. Paula dormia, o corpo atravessado no banco, a cabeça no colo da minha mãe, que não desgrudava os olhos da estrada, estreita e cheia de caminhões que desciam do Nordeste. Eu cheirava o limão-galego…

Enfim, chegamos sãos e salvos à casa da irmã da dona Maria, que nos recebeu com alegria parcimoniosa. Logo, minha mãe, incorporada aos afazeres da cozinha, fiquei sozinho, zanzando pelo quintal, abundante de árvores frutíferas e passarinhos. Na hora do almoço, seu Zé Lincoln, dona Maria, a cunhada e o cunhado abancaram-se à mesa principal, servida por uma empregada e por minha mãe, enquanto as duas filhas dos anfitriões, mais Paula e eu comíamos numa mesa separada. Ali, experimentei, com nojo, pela primeira vez, aquela coisa esquisita, composta por pedaços pequenos de batata, cenoura, maçã e ovo, misturados a uma gosma esbranquiçada, que chamavam maionese. Detestei aquela novidade, mas havia aprendido a não recusar nada, principalmente na casa dos outros, sob pena de ser admoestado por meus pais. Mas aquele negócio não desceu bem. Ficou parado no meu estômago, mesmo depois que engoli dois copos de quissuco de uva.

Após o almoço, seu Zé Lincoln, dona Maria, a cunhada e o cunhado foram conversar sobre negócios, algo ligado a uma herança, ou algo assim, motivo daquela visita, e começaram a discutir com ardor. Minha mãe ainda nem tinha terminado de arrumar a cozinha, quando seu Zé Lincoln convocou-a para ir embora – nesse caso, ele e a mulher defendiam os mesmos interesses. Entramos na vemaguete, minha mãe ainda trazia as mãos úmidas, e seu Zé Lincoln deu a partida, com raiva. Passados uns dez minutos, avisei minha mãe que estava enjoado, e ela constatou, acanhada, que esquecera de pegar o limão-galego. Tímida e temerosa – receava os rompantes coléricos do casal –, ela pediu que eu aguentasse. Eu reprimi ao máximo o meu desconforto até que, numa curva mais acentuava, vomitei tudo em cima da Paula, que dormia estendida entre mim e minha mãe.

Luz na escuridão
Marcos Vinícius Ferreira de Oliveira, contista, romancista: “Nos últimos tempos, escrevi uma novela policial, Noturno em Vista Alegre, publicada em e-book pela e-Galaxia, disponível na Amazon. O enredo é simples: um investigador de polícia volta ao trabalho depois de licença médica, motivada por uma tragédia pessoal. O psiquiatra pede a ele que escreva um diário, como parte do tratamento. Desconfiado da capacidade dele para o trabalho investigativo, o delegado encarrega-o de um caso ocorrido nos anos 1980, no qual os ossos de uma mão foram encontrados próximos a uma propriedade rural em Vista Alegre. O que parecia somente um trabalho burocrático vai trazer para o presente os resquícios de uma das páginas mais sombrias da história do país. E agora estou escrevendo uma novela, ainda sem título, na qual dois amigos de infância, que trabalham na mesma fábrica de tecidos, empreendem trajetórias distintas: um torna-se supervisor e o outro permanece operário. A ideia é falar um pouco sobre como qualquer possibilidade de liberdade para escolher desperta nos orgulhosos da vida medíocre uma ânsia de sufocar o outro. Recentemente, lancei o livro de contos, As mãos ásperas”. Este livro pode ser adquirido aqui.

Parachoque de caminhão
“O sentido último a que remetem todas as narrativas comporta duas faces: o que há de continuidade na vida, o que há de inevitável na morte.”
Italo Calvino (1923-1985)

Antologia pessoal da poesia brasileira
Mário Quintana
(Alegrete, RS, 1906 Porto Alegre, RS, 1994)

Este quarto

Para Guilhermino César

Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto…

que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousado em mim.

A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim…

(Apontamentos de história sobrenatural, 1976)

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho