Sopro fresco

Novo livro de poemas de Ricardo Lima apresenta aos leitores um mesmo e novo autor
Ricardo Lima, autor de “Pétala de lamparina”. Foto: Mauricio Froldi
01/03/2011

A mudança é um nutriente imprescindível para o avanço da marcha humana. Os conflitos na família, os reveses no trabalho e as baixas das autoridades públicas são apenas alguns exemplos do quanto a alteração — de olhar, de postura, de pensamento — se faz necessária na vida em geral.

Mas na literatura (e não só nela) a contenção da mudança pode ser uma virtude. No caso específico da poesia, seus autores, quando do início da carreira, anseiam pelo alcance da dicção particular que os dota da assinatura indicativa de uma poética construída. Daí ser a repetição um dom do estilo — como diz Manoel de Barros —, e jovens autores do verso costumam metamorfosear-se até chegarem ao ponto da unidade fixa, e, nos melhores casos, ensinam que manutenção nem sempre é sinal de monotonia.

A partir dessa perspectiva — de troca e inalteração — pode-se observar melhor o livro Pétala de lamparina, e perceber que a escrita de seu autor, o poeta paulista Ricardo Lima, está igual e diferente em relação à escrita de seus quatro livros anteriores.

Por um lado, o que se vê no novo livro é uma poética particularizada desde sempre pela busca de um discurso onde só cabe o essencial: “acordar/ com o corpo pousado no pouco”. Em virtude disso, há uma franca recusa a sinais de pontuação (à exceção de algumas vírgulas) e a letras maiúsculas (por todo o livro, apenas o substantivo “Virginia” recebe tal distinção). Some-se a isso o fato de os textos não possuírem títulos, sendo desta vez, diferentemente dos trabalhos anteriores, indicados por algarismos romanos, como se vê no X da segunda parte (intitulada Tarde noite):

entardece
e carrega pedras
nos bolsos de Virginia
tarefa sem atalho, suor ou simpatia
vida sempre à beira do sol
se perde quando
há queda de cílios

A conjunção desses fatores mantém em Pétala de lamparina um ritmo muito peculiar da obra de Ricardo Lima, o qual causa a sensação de que cada livro é formado por um único texto. E aí residem a justeza e a justiça da afirmação de Fábio Weintraub, de acordo com a qual a dicção do autor de Primeiro segundo é seca e veloz, o que se traduz pela leveza célere de textos com a face do vento: “tarde/ e uns fiapos de luz/ no varal// depois/ riscos grafite/ apodrecem o céu// calma de planta/ ou boca em pranto// noite pede um santo/ com pimenta”.

Tal constituição formal é indubitavelmente fruto de um exercício muito consciencioso, estabelecido como arte poética por um autor que vê e revê o que escreve e o que reescreve, levando a rigor o lema de não dar ocasião à estrofe incoerente, ao verso sem retidão, à palavra sobeja. Mas ao lado desse apuro estrutural por vezes sente-se falta da presença mais efetiva e intensa de um tratar das coisas humanas, pois o discurso minimalista de Ricardo Lima prima tanto pelo corte e pela exatidão que, em inúmeras ocasiões, obstrui a entrada do sangue vermelho ou azul ou da vida em suas páginas.

Em razão disso as duas partes do livro (Caro acordar e Tarde noite) traduzem suas faces algo antagônicas, pois a primeira abre-se para receber e soprar novos ares, ao passo que a segunda manteve-se concentrada em seu estabilizado receituário. Pétala de lamparina é cindido nos momentos do início do dia — quando se tomam os primeiros goles da manhã e se parte ao encontro das máquinas do mundo — e do início da noite — quando se faz o regresso para o lar. E se na primeira seção notamos uma poesia que se deixa contaminar pelo frescor azul daquilo de que trata, na segunda verifica-se praticamente apenas a pintura de imagens insólitas que tanto marcam as linhas deste poeta e, por extensão, de uma linhagem freqüente de poetas atuais: “tempo de contar dedos de prosa/ serpentes da paciência// escapulir dos preceitos de maior efeito// preferir insetos na endoscopia/ peixes em pensamento// tarde na rede/ noite na flauta”.

Guilhotina
Some-se a isso outro item bastante representativo da segunda parte do livro — bem como da obra do autor de Cinza ensolarada e da aludida vertente da poesia contemporânea brasileira: a linguagem reticente e com reduzido teor de referencialidade. Como os poetas hodiernos herdaram do século 20 a escrita do poético com explícita e expressiva presença de ruminações teóricas, aprofundou-se entre eles a busca por uma dicção cada vez mais farta de subentendimentos e de fragmentação. Se isso funcionou como a catapulta que intentou contribuir para que a literatura fosse alçada a um espaço próximo e autônomo, pode também ter sido a guilhotina que isolou sua cabeça de um corpo complexo e diversificado, causando o divórcio entre o cerebralismo e a pulsação do tronco, dos membros e das veias.

Neste livro de Ricardo Lima, tal “espatifação” textual demonstra que o autor parece atuar como alguém que cata em súbitos redemoinhos escassas fagulhas para gravá-las, como azulejos, nas paredes que ainda não se cimentaram de todo: “entardece/ e o campo guardado por rebanhos/ acende olhos no boi// pintam bandos de libélula/ asas de aleluia, pétala de lamparina”. Mas é inevitável constatar que o exercício continuado, neste caso, não vai além da experimentação discursiva, sempre primando por associações ilógicas, conforme visto no poema XI — “laranja/ agora/ quase rosa// sopro não aninha passarinho/ flores não despertam compaixão// outono mais seco e surdo// vogais sem cor/ como roupas de andarilho/ ou olhos de deus” —, ou, com maior extensão, no texto XIV (lembremos de que pertencem à segunda parte): “cavernas emudeceram/ telas protegem/ latidos avisam// não restam dúvidas aos que governam/ línguas aos papas/ ou freqüência à influência// como uma dor longeva/ dependurada de ponta-cabeça/ na boca do estômago// tarde noite/ sirenes ecoam/ e os olhos não funcionam”.

Entretanto, Pétala de lamparina tem flores e lumes, e eles são mais notados quando o autor permite o ingresso de uma atmosfera afetiva ainda inédita em sua poética. Caro acordar é uma parte do livro que reúne todos os aspectos próprios da escrita de Ricardo Lima, só que agora com o acréscimo de um olhar algo infantil, típico de quem, em meio aos entulhos das obrigações e da pressa diária, parece sentir a aurora pela primeira vez: “acordar/ com o silêncio do vento/ que deitou neste galho”.

Por todo o desenvolver da seção, aguçam-se as imagens solares, mas de raios suavizados pelo frescor de um período do dia em que o sol ainda não disputa forças com os homens, deixando tudo despertar numa lilás harmonia: “acordar/ e um barbante de neblina/ anel na montanha”. Indiretamente, saltam das páginas constantes chamados para que se negue o modelo nervoso da vida urbana contemporânea — “regular os motivos do relógio / agendar uns minutos pra ninguém” — e para que se dê oportunidade às circunstâncias cuja escassez é cada vez mais aceita por trabalhadores que se recolhem já com a válvula dos compromissos em pleno furor: “acordar/ com a cortina abraçada à samambaia/ com o sorriso do filho plantar/ o primeiro acorde do domingo”.

Nesses lances felizes, em que Ricardo Lima injeta uma (disfarçada) pessoalidade em seu livro, a poesia manifesta uma de suas mais nobres potencialidades: alertar o homem acerca das verdades que tornam enganoso o seu viver. E ao “acordar como acorda o amor/ sem saber o que se tece”, Pétala de lamparina escreve em nós a comunhão de delicadeza, silêncio, preguiça e paz que ainda pode nos fazer dormir homens e acordar crianças.

Pétala de lamparina
Ricardo Lima
Ateliê Editorial
64 págs.
Ricardo Lima
Nasceu em Jardinópolis (SP), em 1966. Escritor e jornalista, é autor de livros como Primeiro segundo, Chave de ferrugem, Cinza ensolarada e Impuro silêncio.
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho