Os dois modelos de obras — aqui exemplares —, a de Machado e a de Lúcio Cardoso da maturidade (com Raul Pompéia, Cornélio Pena e Octávio de Faria de permeio), traçam um arco de mais de meio século da ficção que, entrementes, estava tendo que ser regionalista quase como uma “camisa de força” vestida até pelo Lúcio inicial do seu romance de estreia Maleita (que é de 1934).
Demora para encontrar não só a voz própria, mas também — como diria Elvira Vigna — a sua “tribo”. Estamos falando de obras realizadas (por isso aqui se encontra Octávio de Faria, com o seu falhado — pero ambicioso roman fleuve —Tragédia burguesa, estreitada pela visão do ângulo católico, para tentar dar o salto mortal perante a força, naquela altura, com a asa “torta” do Modernismo (o regionalismo), que de qualquer modo iria dar o “norte” à bússola do romance que ainda vigora, em parte, nos dias de hoje.
Lúcio Cardoso é, para mim, o grande romancista que faltou, o Faulkner que esperávamos e que não veio, à brasileira, na obra de passagem para a modernidade pós-30. Daquele “pontapé” inicial — e seus desdobramentos — é ele, com certeza, um criador mais ambicioso do que Cornélio Pena e sua literatura de rendas e bordados (“romances de antiquário”, na visão de Mário de Andrade), na sala onde a menina morta nos olha desde algum pálido retrato. O vento sopra as cortinas das grandes janelas e, no Sul, iria trazer a voz de Verissimo, que pensava que era um romancista argentino educado em campo de neve americana. Não era. Ninguém iria se impactar, aqui no Brasil, com novelas ao estilo de Fernando Namora, sobre dilemas amorosos de médicos vacilantes que serão depois trocados por jagunços farroupilhas — em tom épico forçado —, quando o vento forte da literatura latino-americana vir a soprar, nos ouvidos de Érico, com trompa rouca demais para se fazer ouvida onde gritam todos os diabos da casa sem cortinas de renda e sem trancas nas portas da fronteira, casa arrombada, casa de demônios, casa assassinada. A literatura dos interiores enlouquecidos já se acercara pela mão do pontilhista Luiz Jardim — com vocação de voyeur (em Confissões do meu tio Gonzaga) que recuou um passo do tema do incesto (melhor e mais alto do que o do muro da vizinha do lado) — e, assim, é Lúcio mesmo o único Faulkner que temos, virado para dentro e para fora, perseguido pelo difícil amor de Deus e se sentindo, na carne, a morada do diabólico Outro.
“O corpo guarda sem saber a marca dos desejos consumados, e também talvez dos que não se consumaram e dos que nunca poderão se consumar”, nos diz Antonio Gala, e o leitor em busca de verticalidades buscaria — no romance pós-regionalista — os portadores daquela angústia que passou de moda porque perdemos o sentido de transcendência do ato de viver, não só misterioso, mas danação que cumpre “decifrar” no espírito e na carne. Desde então, tivemos Clarice Lispector com seu temperamento eslavo angustiado fazendo uma viagem própria de quem “não desdenha os grandes saltos na inquietação e no obscuro (mesmo no meio da nossa solaridade tropical, digo eu), as casas cheias de sombras e promessas aliciantes, nos grandes becos da necrose, no tóxico, nos olhos insones do ciúme, no inimigo subterrâneo que nos saúda, na prostituta que nos recebe sem suspeita, na conversa que pode decidir o futuro, tudo”.
São palavras do autor de Crônica da casa assassinada, mas servem para introduzir a autora que, em julho, desapareceu de cena ainda jovem, deixou o palco de modernidade dos seus personagens observados ainda mais “de perto”, na azáfama da vida no Rio em São Paulo perfeitamente táteis nos seus romances de invasão das dobras da Realidade como se estivesse contando histórias inteiramente vividas, narrativas umbilicalmente ligadas à vida em mais de meia dúzia de romances — um dos quais (Nada a dizer) distinguido justamente com o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras fundada pelo nosso gênio tutelar de cor mais morena.
“Na minha literatura, tudo é real. Eu não invento uma vírgula. Tenho um livro, que não está publicado ainda, que se passa no Guarujá. Eu não invento um Guarujá, eu vou para o Guarujá, eu passo lá um mês trancada naquele lugar. Eu repito nome de rua, a quantidade de mosquito, as pessoas que moram lá, não invento nada.”
Aqui, a frase de Elvira aponta para uma verdade, sim, na sua ficção, porém pode chegar a ser redutora dos alcances que teve a sua “quebra da representação” pela exposição imediata, epidérmica (quer dizer, sentida na pele sensível), quando sua “câmera” acompanha (mulheres mais do que homens) seus personagens mergulhados no ato de viver a banalidade dos dias e não a crispação dos personagens torturados etc.
“Eu me orgulho das estruturas que uso, é um prazer particular meu. No romance A um passo, por exemplo, um personagem conta a história do outro. Então eu narro sobre a dificuldade de narrar. Em O assassinato de bebê Martê, há um crime e uma atuação mimética desse crime. Já em Às seis em ponto e Nada a dizer, os narradores tentam contar uma história, mas não conseguem. Nada a dizer é um livro que não acaba. A narradora não consegue, desiste de contar. Isso, de pegar o vivido, o real, e passar para os meus livros, é uma obsessão total.”
Vigna era uma romancista vocacional (foi tradutora e ilustradora também), ela só se sentia bem no campo que escolheu, conscientemente, como o do melhor “à vontade”, digamos assim. E a ouçamos sobre isso:
“Prefiro romances. Não sei dizer por quê. Isso é bem amplo. Na verdade, eu tenho relacionamentos longos. Então eu acho que as histórias compridas me atraem. Tem a ver — o que é um pensamento não testado — com um processo de significação. Porque o tempo, o tempo curto, que é um tempo específico da imagem, do impacto da imagem, é um tempo que não me satisfaz, até em termos de pensamento. E o tempo narrativo, muito mais longo e sequencial, me dá um processo de formação de significação que para mim é mais satisfatório. É como eu penso. Eu não penso em impactos. Eu faço uma linha”.
Ela tinha a linha da luz e (como Conrad) a linha de sombra. Elvira representou um respiradouro numa literatura que atualmente se engessa, aqui no Brasil, entre uma escrita para o passado e/ou algumas tentativas de “pulos do gato” para evitar o confronto com as perspectivas (não muito alentadoras) do futuro. Elvira morta significa, sim, a lacuna daquela nossa escritora que estava sendo mais livre, mas aberta ao novo, mais disposta a não repetir modelos apenas porque você ensina literatura nos EUA ou na Europa e está absorvendo uma velhice que não te levará a lugar algum, como escritor(a).
Elvira Vigna era nova — nos anos e na sua escrita rebelde — e irá nos fazer, realmente, muita falta.