O retrato do herói

"O barbeiro de Vila Rica", de Fuad G. Yazbeck, é um romance histórico cujo ambiente colonial é perfeito
01/03/2015

Há um quadro clássico, pintado por Pedro Américo, Tiradentes esquartejado, mostrando o final trágico da Inconfidência Mineira. Nele a cabeça decapitada do alferes, com barbas imensas e olhos cerrados e serenos, está em primeiro plano, ao pé da forca e ao lado de um crucifixo. Num plano mais abaixo, mas ainda sobre o patíbulo, o resto do corpo, com um braço pendido e as duas pernas decepadas. Num triângulo formado pelos vãos da madeira usada na construção da forca, uma bucólica cena cotidiana: serras e casas onde, à porta, mulheres protegidas por guarda-chuva conversam indiferentes ao horror do esquartejamento.

O quadro foi pintado em 1893, quando a nascente República brasileira buscava na história heróis trágicos que representassem sua “dramática” construção. Em outras palavras, era preciso salientar a imagem de frieza e crueldade do Império português, espelho do Império brasileiro, e a bravura daqueles que resistiram aos desmandos coloniais. E a analogia entre os governantes imperiais portugueses e brasileiros não era difícil de ser feita, afinal o príncipe Dom João que, diante a loucura da mãe, a rainha Maria I, de fato governava Portugal na época da Inconfidência Mineira, era avô de nosso último imperador, Dom Pedro II.

Pedro Américo, que ainda no Império, em 1888, pintara com traços heroicos dom Pedro I sobre um cavalo e às margens do Ipiranga proclamando a independência brasileira, se prestou a retratar os novos conceitos de heroísmo de então. Assim começa a nascer a imagem histórica e oficial do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, um homem prenhe de idealismos e sonhos republicanos. Uma imagem salientada no romance O barbeiro de Vila Rica, de Fuad G. Yazbeck.

Para construir sua narrativa, Yazbeck fez uma pesquisa profunda e, pelo que escreve, terminou concluindo que o Tiradentes histórico não contradiz o homem real. Naturalmente que a parte ficcional do livro é usada para salientar esta certeza. No primeiro encontro de Joaquim José com Alexandre, o barbeiro de Vila Rica, já o alferes é descrito pelo fascínio que exerce sobre as pessoas. Tudo nele resplandece numa áurea de bondade e encantamento. Seguindo a cartilha de Paulo Setúbal, Yazbeck construiu seu romance histórico respeitando os fastos canônicos, mas o ponteando com certa cor cotidiana.

A narrativa geral do romance está parcelada entre três narradores. O primeiro deles é Alcina, uma parteira portuguesa que alimenta a vontade de migrar para o Brasil, para onde partiu há anos seu marido. Seu relato começa no dia 1 de novembro de 1755, quando Lisboa foi arrasada por um terremoto. Assim Yazbeck mostra o agravamento da falência de Portugal e como isso resvala na colônia, mas também cria uma bela dramaticidade para o início de seu livro:

Enquanto o chão começava a se mover, como que obedecendo às ordens dos trovões que vinham do fundo da terra, (…) tua cabeça, Alexandre, despontou entre as pernas abertas de tua mãe natural, deixando-me, como parteira, a opção de correr para salvar minha própria vida ou continuar meu trabalho e salvar também a tua, agora em minhas mãos.

Este depoimento vai até a morte de Tiradentes, mas sempre se voltando para os infortúnio de Alcina e Alexandre que, diante da morte da mãe natural, é criado como filho por ela. Às vezes, no entanto, entra em detalhes históricos que deixa no leitor uma dúvida: como um mulher do povo conhecia estas filigranas do poder?

Tiradentes real
A segunda parte da narrativa é feita por Alexandre, que começa falando da prisão onde se encontra já quando a Inconfidência tinha sido debelada. E aí surge um Tiradentes real, o homem também com sonhos de riqueza, com talentos múltiplos, mas ingênuo e até desastrado.

Finalmente na terceira parte do livro aparece o último dos narradores, que, de maneira onisciente, vai pontuando a trajetória da formação, desenvolvimento e desastre do movimento que sonhou uma república brasileira. É uma passagem densa e detalhada, onde se dá a importância de cada partícipe da Inconfidência e aí o Tiradentes histórico se adensa numa figura real e viva, com seus arroubos, sua coragem e resignação.

Destes três estágio da narrativa sobressai um problema muito comum a quem faz esta opção. Todas as narrativas são lineares, similares, reconhecidamente feitas pela mesma mão, o que não deixa de ser um descuido, afinal, se existem três narrativas, deve haver três vozes. Embora isso não chegue a prejudicar o andamento natural do livro, fica como um incomodo para o leitor mais atento.

Num romance histórico sempre há também o risco de se deixar cair no excesso de louvaminhas, em super dimensionar a figura ou o fato da atenção do escritor. Fuad não temeu isso e pintou seu Tiradentes com as cores heroicas que aprendemos a admirar nos bancos escolares. Em algumas passagens não dá para dissociar a imagem dele daquela que Cervantes deu para seu Quixote, até com Alexandre sendo um espelho menos ridículo de Sancho Pança. Joaquim José é um sonhador incorrigível que chegou a idealizar um novo sistema de abastecimento de água para o Rio de Janeiro, inclusive com a construção de moinhos públicos. O problema era o fato de ser o herói sempre preterido em tudo, até mesmo em seus desejos de ascensão na carreira militar.

Numa época de imensas injustiças, onde o mérito vinha do berço, não das qualidades intelectuais, numa sociedade fechada em suas castas, não havia espaço para os sonhos e muito menos para a força que os transforma em realidade. Daí a necessidade urgente de uma república, um regime onde supostamente há oportunidades e justiças igualitárias, nos lembra Fuad G. Yazbeck. Pena que a história, como suas determinações inegáveis, nos ensine outro modo de olhar a vida. Até mesmo nos Estados Unidos, berço da república e da democracia modernas, não há igualdade para todos.

Fica, então, de O barbeiro de Vila Rica, uma excelente experiência de leitura. Aqui a história foi esmiuçada em uma pesquisa refinada, onde todas as questões são respondidas e a aquarela do ambiente colonial é perfeita. Todo o clima de salve-se quem puder fez nascer uma nação não de oportunidades, mas de oportunismos, um mal que ainda nos aflige.

Uma leitura, enfim, rica no aspecto histórica e divertida em todos os sentidos.

O barbeiro de Vila Rica
Fuad G. Yazbeck
Record
349 págs.
Fuad G. Yazbeck
Nasceu em Juiz de Fora (MG). Trabalhou como economista no Ministério da Fazenda. Foi também professor de economia e cursou mestrado em Filosofia. Escreveu e publicou vários artigos acadêmicos. Estreou na literatura em 2008 com o romance O segundo degredado. O barbeiro de Vila Rica, seu segundo romance, foi publicado pouco depois de sua morte, em 2014.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho