Lançado em 1930, O Quinze, de Rachel de Queiroz, integra o chamado Ciclo das Secas, do qual analisei neste Rascunho, nos últimos quatro anos, Luzia-Homem (Domingos Olímpio), Dona Guidinha do Poço (Manuel de Oliveira Paiva), Aves de arribação (Antônio Sales), A bagaceira (José Américo de Almeida) e, dividido entre ficção e ensaio, Os sertões, de Euclides da Cunha.
Na verdade, o fenômeno da seca está longe de se esgotar enquanto tema literário. Sem esquecer as contribuições de Graciliano Ramos e José Lins do Rego, a seca e seus indissociáveis componentes — migração, relações de compadrio, cangaço, formas de religiosidade — ainda esperam pelo romancista, impregnado de senso épico, que realize trabalho semelhante ao de Erico Verissimo em O tempo e o vento.
É preciso construir uma trama que vá além do microcosmo; necessitamos de uma objetiva grande-angular, um escritor que não se prenda ao óbvio e demonstre como os dramas e suas interrelações não se restringem a causas ou consequências imediatas do problema climático. Abandonando cientificismos, ele deve mostrar o homem pleno, o homem da caatinga que, sofrendo, nem sempre se abandona à melancolia ou ao derrotismo. Precisamos do romance que supere a literatura ideológica e retrate o Nordeste com a diversidade cultural que nega, todos os dias, as teses simplistas, ainda repetidas entre nós, da dicotomia litoral/interior ou opressores/oprimidos.
Quando a literatura recusa as soluções sociológicas, quando se liberta da camisa de força determinista e marxista, então pode ver a realidade sem maniqueísmos.
Apesar de não preencher plenamente tal lacuna, O Quinze é um vislumbre do que, passados mais de oitenta anos, ainda não se concretizou.
Abandono da retórica
Em termos de linguagem, o romance está numa posição superior à dos que citei no primeiro parágrafo — como se tivesse apreendido, de cada um, as melhores características — e do que se escrevia no Brasil nas primeiras décadas do século 20.
Poucas vezes Rachel cede ao lugar-comum, como nesta descrição, em que o sol surge “rutilante”, comparado ao “fogo”:
Sacudido pela estrada larga do quartau, seguiu rápido, o peito entreaberto na blusa, todo vermelho e tostado do sol, que lá no céu, sozinho, rutilante, espalhava sobre a terra cinzenta e seca uma luz que era quase como fogo.
Ela utiliza formas sucintas:
Na grande mesa de jantar onde se esticava, engomada, uma toalha de xadrez vermelho, duas xícaras e um bule, sob o abafador bordado, anunciavam a ceia:
— Você não vem tomar o seu café com leite, Conceição?
Pode inserir detalhes inesperados, enriquecedores:
Lagartixas davam carreirinhas intermitentes por cima das folhas secas no chão que estalavam como papel queimado.
Conceição apressou-se em abrir a carta, rasgando o envelope com um grampo do cabelo.
Ou figuras que surpreendem, simples e enérgicas, destituídas de excessos retóricos:
O céu, transparente que doía, vibrava, tremendo feito uma gaze repuxada.
[…] Em geral as pobres árvores apareciam lamentáveis, mostrando os cotos dos galhos como membros amputados.
E o comboio, entrando numa curva, sibilando e rugindo, era como uma cobra que fugisse sobre o borralho ainda quente de uma coivara.
A saia roída se apertava na cintura em dobras sórdidas; e se enrolava nos ossos das pernas, como um pano posto a enxugar se enrola nas estacas da cerca.
Queria somente que a lembrança dela se sumisse, como se some um peixe que foge por entre as malhas da tarrafa e mergulha de vez na água revolta…
De fato, a verbosidade que contamina nossa literatura praticamente desaparece. Mas, aqui e ali, essa Hidra de Lerna tenta conspurcar o trabalho da jovem romancista:
Iam para o destino, que os chamara de tão longe, das terras secas e fulvas de Quixadá, e os trouxera entre a fome e mortes, e angústias infinitas, para os conduzir agora, por cima da água do mar, às terras longínquas onde sempre há farinha e sempre há inverno…
Percebam como a viciante retórica se insinua, no trecho a seguir, por meio do advérbio e do último adjetivo, ambos desnecessários:
A rapariga ficou na calçada, aconchegando ao peito o seu embrulho vivente, a silhueta vivamente destacada na luz crua do meio-dia, aparecendo-lhe as pernas finas através da saia rala.
Mas Rachel sabe derrotar o monstro. Veja-se esta descrição, em que não há ideologia, palavreado inútil ou influência naturalista, mas apenas literatura em boa língua portuguesa:
Chico Bento parou. Alongou os olhos pelo horizonte cinzento. O pasto, as várzeas, a caatinga, o marmeleiral esquelético, era tudo de um cinzento de borralho. O próprio leito das lagoas vidrara-se em torrões de lama ressequida, cortada aqui e além por alguma pacavira defunta que retorcia as folhas empapeladas.
Qualidades semelhantes ressurgem neste período cuja pontuação tenta recriar o movimento do vaqueiro:
Chico Bento entrou, no mesmo passo lento, a modo que curvado sob a cruz de remendos que ressaltava vivamente, como um agouro, nas costas desbotadas da velha blusa de mescla.
Complexidade do real
As personagens de Rachel têm vida própria, reagem a estímulos, revelam suas personalidades até mesmo num gesto automático:
Depois dobrou o papel, tornou a pô-lo no lugar, puxando o braço vivamente como se se libertasse, livrando-se do temor supersticioso que lhe travava as mãos, porque uma carta daquelas lhe parecia coisa amaldiçoada.
O Capítulo 7, quando Chico Bento e sua família transformam-se em retirantes, merece leitura atenta. Note-se o cuidado da autora na composição das cenas, no desenho das reações: a despedida da vaca Rendeira; as crianças “estirando a língua, com gestos insultuosos” contra o irmão escolhido para viajar na cangalha; o vestido engomado de Mocinha, seu “passo macio, tão rápido e leve que mal esmagava os torrões quebradiços do chão” — três dias depois, a vestimenta “já não parecia toilette de missa”; e “a generosidade matuta” do vaqueiro, pronto a dividir sua manta de carne com outros retirantes.
No Capítulo 12, quando chega o desvario provocado pela fome, certificamo-nos de que os exemplos acima não foram felizes acidentes:
Num súbito contraste, a memória do vaqueiro confusamente começou a recordar a Cordulina do tempo do casamento. Viu-a de branco, gorda e alegre, com um ramo de cravos no cabelo oleado e argolas de ouro nas orelhas… Depois sua pobre cabeça dolorida entrou a tresvariar; a vista turbou-se como as ideias; confundiu as duas imagens, a real e a evocada, e seus olhos visionaram uma Cordulina fantástica, magra como a morte, coberta de grandes panos brancos, pendendo-lhe das orelhas duas argolas de ouro, que cresciam, cresciam, até atingir o tamanho do sol.
O núcleo da obra encontra-se páginas à frente: Chico Bento e Pedro, um de seus filhos, dirigem-se a uma casinha de “telha encarnada” que brilha sob o sol. De repente, surge uma cabra. O gesto de matar e esfolar dura segundos, mas o dono do animal interrompe, com revolta, a preparação do banquete. Na sua narrativa ágil, de parágrafos curtos e precisos, a autora insere o dilema moral: a faca convida o vaqueiro a disputar o butim. A cena vai além do mero realismo. Rachel sabe que o papel da literatura não é somente ser espelho da realidade — trata-se, ao contrário, de desvendar a vida, de mostrar a rica complexidade do real, comprovar que nada é óbvio, raso. A alguns pode parecer incrível que ela não permita o crime, mas a escritora sabe que o homem não é apenas instinto, que até na degradação há limites:
Caindo quase de joelhos, com os olhos vermelhos cheios de lágrimas que lhe corriam pela face áspera, suplicou, de mãos juntas:
— Meu senhor, pelo amor de Deus! Me deixe um pedaço de carne, um taquinho ao menos, que dê um caldo para a mulher mais os meninos! Foi pra eles que eu matei! Já caíram com a fome!…
— Não dou nada! Ladrão! Sem-vergonha! Cabra sem-vergonha!
A energia abatida do vaqueiro não se estimulou nem mesmo diante daquela palavra.
Antes se abateu mais, e ele ficou na mesma atitude de súplica. E o homem disse afinal, num gesto brusco, arrancando as tripas da criação e atirando-as para o vaqueiro:
— Tome! Só se for isto! A um diabo que faz uma desgraça como você fez, dar-se tripas é até demais!…
A faca brilhava no chão, ainda ensanguentada, e atraiu os olhos de Chico Bento.
Veio-lhe um ímpeto de brandi-la e ir disputar a presa; mas foi ímpeto confuso e rápido. Ao gesto de estender a mão, faltou-lhe o ânimo.
O homem, sem se importar com o sangue, pusera no ombro o animal sumariamente envolvido no couro e marchava para a casa cujo telhado vermelhava, lá além.
Pedro, sem perder tempo, apanhou o fato que ficara no chão e correu para a mãe.
Chico Bento ainda esteve uns momentos na mesma postura, ajoelhado.
E antes de se erguer, chupou os dedos sujos de sangue, que lhe deixaram na boca um gosto amargo de vida.
Recusa do melodrama
Até mesmo nossa velha conhecida, a corrupção, se apresenta: nada pode ser feito contra o burocrata que vende as passagens doadas pelo governo — e assim condena os migrantes a viajarem a pé.
Um sentimento de completude acompanha a leitura. A firmeza de Dona Inácia, a independência de Conceição, o devotamento à terra de Vicente, o caráter infantil de suas irmãs, a partida de Chico Bento e do que restou de sua família para São Paulo: as peças quase sempre se encaixam.
Soa inverossímil, no Capítulo 16, o trecho em que se apresenta o encontro de Conceição com a família de Chico Bento, já instalada no campo de retirantes da cidade. O remendo que o narrador utiliza para justificar a relação de amizade, até ali desconhecida pelo leitor, é um truque ineficiente.
Pequenos desequilíbrios, contudo, não apagam as qualidades da obra.
Insisto: não há personagens planos. Nem Conceição, a professora que se impõe pela inteligência e caridade, escapa de ter ciúme e preconceitos. Deles, aliás, não se livra nem mesmo, no final, numa rápida cena, um “negro dos guindastes”. E Vicente, concentrado na luta contra a seca, incansável na proteção do patrimônio familiar, encontra tempo para refletir, questionar-se.
Devemos comemorar que Rachel não ceda ao melodramático ou ao romântico e obrigue Conceição a permanecer só. Ela também não se curva às receitas fáceis do modernismo — antes, permite-se um trecho lírico para comemorar o retorno da vida:
Lá adiante, em plena estrada, o pasto se enramava, e uma pelúcia verde, verde e macia, se estendia no chão até perder de vista.
A caatinga despontava toda em grelos verdes; pauis esverdeados, dum sujo tom de azinhavre líquido, onde as folhas verdes das pacaviras emergiam, e boiavam os verdes círculos de aguapé, enchiam os barreiros que marginavam os caminhos.
Insetos cor de folha — esperanças — saltavam sobre a rama.
E tudo era verde, e até no céu, periquitos verdes esvoaçavam gritando.
O borralho cinzento do verão vestira-se todo de esperança.
O Quinze não é, portanto, apenas mais um romance regionalista. Retrato fiel da nossa humanidade, retoma, independente da Semana de 22, longe dos pândegos paulistas, o eixo da nossa ficção, formado por Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Coelho Neto, Monteiro Lobato e Antônio de Alcântara Machado. A jovem Rachel de Queiroz estava, realmente, em busca da literatura.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Ribeiro Couto e Cabocla.