Em busca da literatura

O Quinze, de Rachel de Queiroz, ao tratar da seca e de retirantes nordestinos, é um retrato fiel da nossa humanidade
Rachel de Queiroz por Robson Vilalba
01/03/2015

 

Lançado em 1930, O Quinze, de Rachel de Queiroz, integra o chamado Ciclo das Secas, do qual analisei neste Rascunho, nos últimos quatro anos, Luzia-Homem (Domingos Olímpio), Dona Guidinha do Poço (Manuel de Oliveira Paiva), Aves de arribação (Antônio Sales), A bagaceira (José Américo de Almeida) e, dividido entre ficção e ensaio, Os sertões, de Euclides da Cunha.

Na verdade, o fenômeno da seca está longe de se esgotar enquanto tema literário. Sem esquecer as contribuições de Graciliano Ramos e José Lins do Rego, a seca e seus indissociáveis componentes — migração, relações de compadrio, cangaço, formas de religiosidade — ainda esperam pelo romancista, impregnado de senso épico, que realize trabalho semelhante ao de Erico Verissimo em O tempo e o vento.

É preciso construir uma trama que vá além do microcosmo; necessitamos de uma objetiva grande-angular, um escritor que não se prenda ao óbvio e demonstre como os dramas e suas interrelações não se restringem a causas ou consequências imediatas do problema climático. Abandonando cientificismos, ele deve mostrar o homem pleno, o homem da caatinga que, sofrendo, nem sempre se abandona à melancolia ou ao derrotismo. Precisamos do romance que supere a literatura ideológica e retrate o Nordeste com a diversidade cultural que nega, todos os dias, as teses simplistas, ainda repetidas entre nós, da dicotomia litoral/interior ou opressores/oprimidos.

Quando a literatura recusa as soluções sociológicas, quando se liberta da camisa de força determinista e marxista, então pode ver a realidade sem maniqueísmos.

Apesar de não preencher plenamente tal lacuna, O Quinze é um vislumbre do que, passados mais de oitenta anos, ainda não se concretizou.

Abandono da retórica
Em termos de linguagem, o romance está numa posição superior à dos que citei no primeiro parágrafo — como se tivesse apreendido, de cada um, as melhores características — e do que se escrevia no Brasil nas primeiras décadas do século 20.

Poucas vezes Rachel cede ao lugar-comum, como nesta descrição, em que o sol surge “rutilante”, comparado ao “fogo”:

Sacudido pela estrada larga do quartau, seguiu rápido, o peito entreaberto na blusa, todo vermelho e tostado do sol, que lá no céu, sozinho, rutilante, espalhava sobre a terra cinzenta e seca uma luz que era quase como fogo.

Ela utiliza formas sucintas:

Na grande mesa de jantar onde se esticava, engomada, uma toalha de xadrez vermelho, duas xícaras e um bule, sob o abafador bordado, anunciavam a ceia:

— Você não vem tomar o seu café com leite, Conceição?

Pode inserir detalhes inesperados, enriquecedores:

Lagartixas davam carreirinhas intermitentes por cima das folhas secas no chão que estalavam como papel queimado.

Conceição apressou-se em abrir a carta, rasgando o envelope com um grampo do cabelo.

Ou figuras que surpreendem, simples e enérgicas, destituídas de excessos retóricos:

O céu, transparente que doía, vibrava, tremendo feito uma gaze repuxada.

[…] Em geral as pobres árvores apareciam lamentáveis, mostrando os cotos dos galhos como membros amputados.

E o comboio, entrando numa curva, sibilando e rugindo, era como uma cobra que fugisse sobre o borralho ainda quente de uma coivara.

A saia roída se apertava na cintura em dobras sórdidas; e se enrolava nos ossos das pernas, como um pano posto a enxugar se enrola nas estacas da cerca.

Queria somente que a lembrança dela se sumisse, como se some um peixe que foge por entre as malhas da tarrafa e mergulha de vez na água revolta…

De fato, a verbosidade que contamina nossa literatura praticamente desaparece. Mas, aqui e ali, essa Hidra de Lerna tenta conspurcar o trabalho da jovem romancista:

Iam para o destino, que os chamara de tão longe, das terras secas e fulvas de Quixadá, e os trouxera entre a fome e mortes, e angústias infinitas, para os conduzir agora, por cima da água do mar, às terras longínquas onde sempre há farinha e sempre há inverno…

Percebam como a viciante retórica se insinua, no trecho a seguir, por meio do advérbio e do último adjetivo, ambos desnecessários:

A rapariga ficou na calçada, aconchegando ao peito o seu embrulho vivente, a silhueta vivamente destacada na luz crua do meio-dia, aparecendo-lhe as pernas finas através da saia rala.

Mas Rachel sabe derrotar o monstro. Veja-se esta descrição, em que não há ideologia, palavreado inútil ou influência naturalista, mas apenas literatura em boa língua portuguesa:

Chico Bento parou. Alongou os olhos pelo horizonte cinzento. O pasto, as várzeas, a caatinga, o marmeleiral esquelético, era tudo de um cinzento de borralho. O próprio leito das lagoas vidrara-se em torrões de lama ressequida, cortada aqui e além por alguma pacavira defunta que retorcia as folhas empapeladas.

Qualidades semelhantes ressurgem neste período cuja pontuação tenta recriar o movimento do vaqueiro:

Chico Bento entrou, no mesmo passo lento, a modo que curvado sob a cruz de remendos que ressaltava vivamente, como um agouro, nas costas desbotadas da velha blusa de mescla.

Complexidade do real
As personagens de Rachel têm vida própria, reagem a estímulos, revelam suas personalidades até mesmo num gesto automático:

Depois dobrou o papel, tornou a pô-lo no lugar, puxando o braço vivamente como se se libertasse, livrando-se do temor supersticioso que lhe travava as mãos, porque uma carta daquelas lhe parecia coisa amaldiçoada.

O Capítulo 7, quando Chico Bento e sua família transformam-se em retirantes, merece leitura atenta. Note-se o cuidado da autora na composição das cenas, no desenho das reações: a despedida da vaca Rendeira; as crianças “estirando a língua, com gestos insultuosos” contra o irmão escolhido para viajar na cangalha; o vestido engomado de Mocinha, seu “passo macio, tão rápido e leve que mal esmagava os torrões quebradiços do chão” — três dias depois, a vestimenta “já não parecia toilette de missa”; e “a generosidade matuta” do vaqueiro, pronto a dividir sua manta de carne com outros retirantes.

No Capítulo 12, quando chega o desvario provocado pela fome, certificamo-nos de que os exemplos acima não foram felizes acidentes:

Num súbito contraste, a memória do vaqueiro confusamente começou a recordar a Cordulina do tempo do casamento. Viu-a de branco, gorda e alegre, com um ramo de cravos no cabelo oleado e argolas de ouro nas orelhas… Depois sua pobre cabeça dolorida entrou a tresvariar; a vista turbou-se como as ideias; confundiu as duas imagens, a real e a evocada, e seus olhos visionaram uma Cordulina fantástica, magra como a morte, coberta de grandes panos brancos, pendendo-lhe das orelhas duas argolas de ouro, que cresciam, cresciam, até atingir o tamanho do sol.

O núcleo da obra encontra-se páginas à frente: Chico Bento e Pedro, um de seus filhos, dirigem-se a uma casinha de “telha encarnada” que brilha sob o sol. De repente, surge uma cabra. O gesto de matar e esfolar dura segundos, mas o dono do animal interrompe, com revolta, a preparação do banquete. Na sua narrativa ágil, de parágrafos curtos e precisos, a autora insere o dilema moral: a faca convida o vaqueiro a disputar o butim. A cena vai além do mero realismo. Rachel sabe que o papel da literatura não é somente ser espelho da realidade — trata-se, ao contrário, de desvendar a vida, de mostrar a rica complexidade do real, comprovar que nada é óbvio, raso. A alguns pode parecer incrível que ela não permita o crime, mas a escritora sabe que o homem não é apenas instinto, que até na degradação há limites:

Caindo quase de joelhos, com os olhos vermelhos cheios de lágrimas que lhe corriam pela face áspera, suplicou, de mãos juntas:

— Meu senhor, pelo amor de Deus! Me deixe um pedaço de carne, um taquinho ao menos, que dê um caldo para a mulher mais os meninos! Foi pra eles que eu matei! Já caíram com a fome!…

— Não dou nada! Ladrão! Sem-vergonha! Cabra sem-vergonha!

A energia abatida do vaqueiro não se estimulou nem mesmo diante daquela palavra.

Antes se abateu mais, e ele ficou na mesma atitude de súplica. E o homem disse afinal, num gesto brusco, arrancando as tripas da criação e atirando-as para o vaqueiro:

— Tome! Só se for isto! A um diabo que faz uma desgraça como você fez, dar-se tripas é até demais!…

A faca brilhava no chão, ainda ensanguentada, e atraiu os olhos de Chico Bento.

Veio-lhe um ímpeto de brandi-la e ir disputar a presa; mas foi ímpeto confuso e rápido. Ao gesto de estender a mão, faltou-lhe o ânimo.

O homem, sem se importar com o sangue, pusera no ombro o animal sumariamente envolvido no couro e marchava para a casa cujo telhado vermelhava, lá além.

Pedro, sem perder tempo, apanhou o fato que ficara no chão e correu para a mãe.

Chico Bento ainda esteve uns momentos na mesma postura, ajoelhado.

E antes de se erguer, chupou os dedos sujos de sangue, que lhe deixaram na boca um gosto amargo de vida.

Recusa do melodrama
Até mesmo nossa velha conhecida, a corrupção, se apresenta: nada pode ser feito contra o burocrata que vende as passagens doadas pelo governo — e assim condena os migrantes a viajarem a pé.

Um sentimento de completude acompanha a leitura. A firmeza de Dona Inácia, a independência de Conceição, o devotamento à terra de Vicente, o caráter infantil de suas irmãs, a partida de Chico Bento e do que restou de sua família para São Paulo: as peças quase sempre se encaixam.

Soa inverossímil, no Capítulo 16, o trecho em que se apresenta o encontro de Conceição com a família de Chico Bento, já instalada no campo de retirantes da cidade. O remendo que o narrador utiliza para justificar a relação de amizade, até ali desconhecida pelo leitor, é um truque ineficiente.

Pequenos desequilíbrios, contudo, não apagam as qualidades da obra.

Insisto: não há personagens planos. Nem Conceição, a professora que se impõe pela inteligência e caridade, escapa de ter ciúme e preconceitos. Deles, aliás, não se livra nem mesmo, no final, numa rápida cena, um “negro dos guindastes”. E Vicente, concentrado na luta contra a seca, incansável na proteção do patrimônio familiar, encontra tempo para refletir, questionar-se.

Devemos comemorar que Rachel não ceda ao melodramático ou ao romântico e obrigue Conceição a permanecer só. Ela também não se curva às receitas fáceis do modernismo — antes, permite-se um trecho lírico para comemorar o retorno da vida:

Lá adiante, em plena estrada, o pasto se enramava, e uma pelúcia verde, verde e macia, se estendia no chão até perder de vista.

A caatinga despontava toda em grelos verdes; pauis esverdeados, dum sujo tom de azinhavre líquido, onde as folhas verdes das pacaviras emergiam, e boiavam os verdes círculos de aguapé, enchiam os barreiros que marginavam os caminhos.

Insetos cor de folha — esperanças — saltavam sobre a rama.

E tudo era verde, e até no céu, periquitos verdes esvoaçavam gritando.

O borralho cinzento do verão vestira-se todo de esperança.

O Quinze não é, portanto, apenas mais um romance regionalista. Retrato fiel da nossa humanidade, retoma, independente da Semana de 22, longe dos pândegos paulistas, o eixo da nossa ficção, formado por Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Coelho Neto, Monteiro Lobato e Antônio de Alcântara Machado. A jovem Rachel de Queiroz estava, realmente, em busca da literatura.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Ribeiro Couto e Cabocla.

Rachel de Queiroz
Nasceu em Fortaleza (CE), em 17 de novembro de 1910, e faleceu no Rio de Janeiro (RJ) em 4 de novembro de 2003. Em 1917, chega, com os pais, ao Rio de Janeiro, fugindo dos horrores da seca de 1915, que mais tarde iria aproveitar como tema de O Quinze, seu livro de estreia. A família, contudo, acaba por se fixar em Belém (PA). Em 1919, regressam a Fortaleza, onde a escritora se diploma professora aos 15 anos. Cronista emérita, publicou mais de duas mil crônicas. Foi membro do Conselho Federal de Cultura, desde a sua fundação, em 1967, até sua extinção, em 1989. Participou da 21ª Sessão da Assembléia Geral da ONU, em 1966, onde serviu como delegada do Brasil, trabalhando especialmente na Comissão dos Direitos do Homem. Deixou os romances: João Miguel (1932), Caminho de pedras (1937), As três Marias (1939), Dora, Doralina (1975); O galo de ouro (1985) e Memorial de Maria Moura (1992).
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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