A capa branca de Entre moscas faz muita gente abanar a mão para espantar o inseto pousado no livro. Mas ele não voa, eis a revelação da imagem, engano que provoca sorriso. Capa engenhosa. Ao mesmo tempo em que pode transmitir uma impressão errada sobre o conteúdo ser tão enxuto quanto sua clareza, revela o incômodo que esses vinte e cinco contos de Everardo Norões podem causar. Literatura não é sempre para agradar, é? Nem moscas.
Os dois contos que abrem o volume pequeno e confortável são O exercício do asco e Entre moscas, que empresta seu título ao livro. No primeiro quem dá nojo é um dos personagens, um homem que demonstra ter pouco respeito pelos outros, como percebe e conta um grande amigo dos tempos de escola. Há um discurso no texto contra elementos da elite social brasileira que se comportam mais ou menos da mesma maneira arrogante, embalada pelo poder — violento, endinheirado, político ou um pouco de cada, tudo junto. Gente ao mesmo tempo próxima e distante das pessoas mais comuns da sociedade.
Já Entre moscas faz do inseto um herói. Pode lembrar de longe uma crônica de Drummond chamada Visitante noturno, em que o inseto primeiro é um invasor e ao longo do texto vai se tornando praticamente um convidado ilustre, quase o dono do pedaço. A mosca de Everardo Norões também desperta no narrador curiosidade e apreço. Ele inclusive fecha as portas de casa para que não fuja e até lhe dá o que comer. A vítima de certo asco nesse conto acaba sendo a televisão, chamada de “grande mosca”.
O exercício do asco e Entre moscas são a porta de entrada do livro. E o que se tem de cara é bem representativo do que são os demais contos: muitas citações, referências culturais, precisão, uso de imagens poéticas.
Norões escolhe contar suas histórias de maneiras que normalmente não facilitam a vida do leitor. Há frequentes desvios no curso dos personagens, abrindo caminho para as citações e referências culturais que às vezes o próprio narrador explica, às vezes o leitor tem de ser tão culto quanto o autor ou ir estudar. O Google dá pistas de algumas referências, mas quase nunca suficientes. As velhas enciclopédias dariam conta? Eram pelo menos mais confiáveis que a maior parte do conteúdo livre de revisões na internet.
No poema O cacto, Manuel Bandeira obriga o leitor a saber o que significam as estátuas de Laocoonte e de Ugolino:
Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes
Ugolino e os filhos esfaimados
Quando sabemos do que se trata, o poema ganha muito em significado — a citação é também chave para o entendimento do texto. Norões é um poeta experiente. Provavelmente o bom conhecimento das referências que pinçou ao longo do livro também ajude o leitor a fazer conexões e a criar sentidos mais ricos para cada história. Aliás, para quem não tem toda essa cultura acumulada, descobrir mais sobre as citações pode se transformar na grande diversão desse livro, alcançando lances mais altos da escada do conhecimento humano, chegando um pouco mais perto do autor. Sem essa disposição do leitor, os textos podem se transformar em difícil fruição. Com o peso de uma enciclopédia que pousou na sua sopa, essa mosca ou espalha tudo para fora do prato ou fascina, como faz com o personagem do conto Entre moscas.
Na orelha, Ronaldo Correia de Brito classifica Everardo Norões como um seguidor da escola de Jorge Luis Borges, transitando pela Cultura de todos os tempos.
Questões humanas
À parte as participações eventuais do pensador Walter Benjamin, do ensaísta Montaigne, do pintor Paul Klee, do estrategista de guerra Clausewitz, e tantos outros habitantes da biblioteca, da memória ou novas pesquisas de Norões, estão seus personagens — criações que o ajudam a tratar de questões humanas em torno do asco, da mosca da capa. O medo, por exemplo, é tratado de diversas formas. Dentro de um elevador que de repente para e deixa os passageiros no escuro da incerteza e do abandono; numa desconfortável amizade com um homem cego mas muito sábio, que parece poder ver muito mais do que as pessoas que enxergam; o medo de encarar as desgraças do mundo, o medo que se disfarça de indiferença no homem que escuta um desastre mas de tão cansado prefere simplesmente não saber.
São contos muito mais intelectuais, de fazer pensar, do que provocar emoções.
Há um conto sobre um fabricante de histórias, que a certa altura diz: “tudo o que pensar sobre a alma humana está escrito na Bíblia e plagiado por Shakespeare”. E que ele é apenas “um cirurgião plástico da literatura”. Às vezes autores dão pistas, por meio de seus narradores, do que pensam sobre si próprios. Mas esse é um jogo bastante impreciso de interpretação.
Está dito no início deste texto que literatura não é sempre para agradar. Na verdade, uma pergunta retórica. Mas este livro agradou os jurados do Portugal Telecom de 2014, que o elegeram o vencedor na categoria contos/crônicas. Para leitores que tomam os principais prêmios como guias, essa é uma informação relevante. Há entrevistas de Norões dizendo-se contente pelo reconhecimento da qualidade do livro por parte de críticos de alto nível. Ao mesmo tempo em que se recusa a subir em pedestal, afirmando que o premiado é o livro, não o autor.
Vale registrar que os dois últimos contos, Um certo Padre Gomes e Um certo Góes, têm as frases cortadas como costumam ser os versos de um poema — ou são mesmo poemas que encerram a coletânea de contos. Ainda no impreciso caminho da interpretação, talvez sejam uma placa, indicando que após o passeio pela prosa, Everardo Norões estaria voltando a publicar poesia. E se for assim, Entre moscas é mais do que um livro, mas uma parte do quebra-cabeças que é a obra completa de um autor (nesse caso ainda em construção).