Novo olhar sobre a frágil autoridade do autor

Já tive oportunidade, mais de uma vez, de tecer comentários a respeito da autoridade do autor sobre sua obra
30/11/2014

Já tive oportunidade, mais de uma vez, de tecer comentários a respeito da autoridade do autor sobre sua obra. Autoridade no sentido de decidir o sentido do texto e, de maneira mais abrangente, o significado de trechos centrais que chegam a definir a forma como o livro é percebido.

A dúvida sobre a traição ou não de Capitu já é por demais conhecida e comentada. Decidir-se pelo sim ou pelo não nesse ponto é algo que define sua maneira de ler e entender toda a trama. Não se trata absolutamente de um item trivial do romance.

Outra dúvida interessante sobre outro grande romance, este do peruano Mario Vargas Llosa: o Jaguar matou ou não seu colega Ricardo Arana (“el Esclavo”), em La ciudad y los perros? Não se trata de um ponto tão central do romance quanto o é a traição (ou não) de Capitu em Dom Casmurro. Mesmo assim, não deixa de ter seu charme — ou, dito de outra forma, não deixar de acrescentar uma camada a mais de fascínio ao romance.

Voltando ao livro de Vargas Llosa, o Jaguar, aparentemente, teria de fato assassinado o “Escravo”, pois o próprio personagem confessa o crime. Mas o texto não deixa de lançar dúvidas sobre o fato: a confissão parece frágil, extemporânea, e acaba caindo no vazio, pois prevalece a versão oficial de morte por acidente. Além do mais, o Jaguar parece não querer insistir na própria culpa. O leitor capta essa dúvida e a amplifica.

O autor, curiosamente, parecia ele mesmo não ter dúvidas: o Jaguar matara, sim, seu colega Arana. Vargas Llosa narra a história da dúvida em entrevista a um jornal de Lima: certa vez, no México, um crítico literário francês, diretor da comissão de literatura da Gallimard, lhe comentou haver gostado muito do personagem Jaguar, pelo fato de este atribuir a si mesmo um crime que não cometera, a fim de reconquistar sua autoridade. A reação de Vargas Llosa foi de surpresa: o Jaguar matara, sim, o “Escravo”. O crítico retrucou com atrevimento e segurança: você está enganado, não entende seu próprio romance; para o Jaguar, perder a liderança seria uma tragédia infinitamente pior do que ser considerado criminoso.

Vargas Llosa confessa, na entrevista, que a versão do crítico o convenceu, embora, segundo o autor, quando escreveu o romance, acreditava piamente que o Jaguar teria de fato cometido o crime. A conclusão do escritor peruano é interessante, embora nada original: o escritor não tem a última palavra sobre o que escreve; seria um grande erro pedir ao autor para explicar passagens de seu livro.

De fato, a conclusão não é nova. Já se disse que a publicação do livro marca a morte do autor e o nascimento do leitor — que chega com toda a autoridade para decidir sobre seu objeto. É com essa autoridade que o crítico francês declarou a absolvição do Jaguar, apesar de sua confissão. Há outro elemento de autoridade, também nada desprezível, oriundo de sua condição de diretor da comissão de literatura da Gallimard — mas essa é outra história.

O importante é notar que, embora possa parecer contrassenso, o leitor se situa em posição mais propícia do que o autor para decidir sobre muitos pontos do texto.

São profundas as implicações, para o tradutor e para a tradução, dessa falta de autoridade do autor sobre seu próprio texto. Valoriza-se o olhar do tradutor, como aquele que pode descobrir, na obra literária, pontos que escaparam ao próprio autor. A identificação de elementos importantes — como a dúvida que se encontra em La ciudad y los perros — é crucial para transmitir, ao leitor do texto traduzido, a mesma atmosfera produzida pelo original.

Numa simples leitura, a questão pode residir no campo da polêmica. Numa tradução, pode haver obstáculos consideráveis à manutenção de certas formas de dúvida ou ambiguidade.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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