Nunca esqueci aquele olhar. Oscilava, fixo por segundos intermináveis, entre o chão frio e um ponto no horizonte inexistente. Estava encolhida como se quisesse fundir-se, perder-se, na napa vagabunda do sofá recostado à parede. Uma cruz de metal, cravejada de detalhes, com um Cristo bem desenhado, músculos à mostra, alertava-nos de que precisávamos ter fé. As mãos espremidas entre as pernas. As roupas simples. A pele gasta aumentava sua idade. Era uma mulher indefinível. Um olhar menos curioso não a enxergaria. Eu acabara de voltar da sala ao lado. Estava sentado à mesa, em frente à loura atrapalhada que agia com frieza desconcertante diante da morte alheia, anônima. Sem prestar muita atenção, escolhi o kit de menor valor para a decoração do velório da mãe. Caixão ordinário, flores de plástico e duas velas brancas. O desgosto da loura com a venda era visível. A tristeza da mulher no sofá preenchia toda a funerária.
Os caixões estavam encostados em pé na parede. Um exército à espera do inimigo morto. Em cada modelo, uma etiqueta com o preço. Senti-me numa loja em busca do cobiçado objeto de desejo. O mórbido termo paletó de madeira roçou minha infeliz capacidade irônica. A cada novo caixão, a loura sacava uma palavra para animar minha ânsia consumista. Um deles era de graça. Analisei com carinho a madeira ordinária, sem detalhes, nenhum ornamento. Uma grande caixa de sapatos onde caberia perfeitamente uma mãe morta. Imaginei o corpo duro e frio acomodado na pobreza daquele caixão. Após avaliar todas as possibilidades, optei pelo mais barato. Seria um sacrilégio enterrar a mãe no caixão gratuito. Não faria nenhuma diferença. Mas a culpa sempre fica deste lado do mundo.
O filho dela morreu. Sem que eu perguntasse, a loura — com parte do seio direito à mostra pelo decote — conta-me uma das histórias mais tristes que carrego. A mulher no sofá precisa escolher o caixão para transportar o filho de volta para casa. Ou melhor, para o cemitério localizado do outro lado do país. O menino, de dois ou três anos, tinha um grave problema no coração. Do Piauí, a mãe o trouxera a Campo Largo para uma cirurgia. Não entendi muito bem por quê.
Mas a longa viagem fora perda de tempo. O menino morreu logo após o médico lhe rasgar o peito. Agora, a mãe tem de retornar com o filho morto. Se ela fosse minha mãe, estaríamos felizes: eu teria uma mãe; ela, um filho. Não somos. Somos um filho a escolher um caixão para a mãe e uma mãe a escolher um caixão para o filho. O reflexo num espelho quebrado. Entre nós, apenas a morte. E a sensação de que alguma coisa deu muito errado.
Os caixões para criança estavam no canto da sala. Eram somente três modelos. Todos brancos. Talvez para lembrar algo angelical. Não sei. Impossível não notá-los, mesmo quando se escolhe o caixão para a mãe encontrada morta sobre as cobertas no início do dia. No menor caixão talvez caiba uma criança recém-nascida até uma de três anos. É o ideal para o filho da mulher no sofá. Diferentemente dos calçados e roupas para crianças, os caixões não encolhem com facilidade.
A loura me apresenta a conta do caixão, flores de plástico, velas e traslado do corpo até o cemitério. Nada excessivo. Mesmo assim divido em três vezes no cartão de crédito. A mãe levará o filho de avião até o Piauí. Não sei quem pagará a conta. Talvez o governo. A loura sabe coisas pela metade. E as conta como se conversasse com a vizinha na soleira da porta. Será que o pequeno caixão iria juntamente com as demais cargas? A mãe na poltrona 3D, corredor. O filho nos porões ao lado das malas. A solidão talvez seja isto: um menino morto num caixão a dez mil metros de altura.
Ao sair, olho outra vez para a mulher no sofá. Ela não me enxerga. Logo, a mãe estará num caixão grande. O menino, num caixão pequeno. Um dia, teremos todos o mesmo tamanho.
NOTA
A crônica A mulher no sofá foi publicada originalmente no Vida Breve.