É preciso não vê-la nem possuí-la,
mas procurá-la nesse vale obscuro.
Jorge de Lima, Livro de sonetos.
1.
O que mais surpreende na trajetória literária e pessoal de Osman Lins é a sua integridade moral. Vivendo no surgimento da onda concretista e da suposta contracultura dos anos 1960 e 70, Lins foi um escritor que conseguiu, com uma disciplina e um esforço inigualáveis, realizar uma obra que supera qualquer linha dos contemporâneos. Seus três principais livros — Nove, novena (1966), Avalovara (1973) e A rainha dos cárceres da Grécia (1976) — representam uma ascensão ímpar na literatura brasileira, mas também explicita os problemas que nos consumiriam até hoje: a questão da linguagem como raiz de uma realidade autônoma e se ela capta ou não as sinuosidades da alma humana sem corromper o mundo que nos cerca.
Para ele, ser um escritor em um mundo onde a opressão às atividades do Espírito é constante torna-se uma forma de resistência que exige do sujeito, antes de tudo, uma firme determinação psíquica. Mas esta não é a condição de qualquer um que queira atravessar este mundo com alguma dignidade? Esta é a questão que Osman Lins se propõe a meditar no seu primeiro grande romance, O fiel e a pedra (1961). Após ter lançado a novela O visitante (1955) e o livro de contos Os gestos (1957), ele finalmente descobriu o eixo temático de sua obra: a luta do indivíduo contra um meio que tenta aniquilá-lo a qualquer custo. O problema era qual seria a melhor forma para narrar este tema, desenvolvido na história de Bernardo Vieira Cedro e sua mulher Teresa, que são obrigados a encarar a malícia de Nestor Benício, assassino de seu irmão Miguel devido a uma herança de terras. Lins escolhe a forma do romance tradicional, mas o que importa ali não é o conflito exterior e sim as dimensões metafísicas que a decisão de Bernardo implica, se aceitar o jogo de Nestor Benício ou então matá-lo em legítima defesa.
O fiel e a pedra confirmaria o talento de Osman Lins, mas ninguém esperava o que viria logo a seguir. Nascido em 1924 em uma pequena cidade do interior de Pernambuco, Vitória de Santo Antão, ele sempre soube que sua vida neste mundo tinha uma grande responsabilidade, já que, como o próprio disse, “o fato de minha mãe ter morrido no parto significava, a meu ver, que esta mulher veio ao mundo somente para me dar à luz”. A vocação de escritor foi conquistada ao custo de um emprego como funcionário do Banco do Brasil, que quase o massacrou espiritualmente, mas que também possibilitou certa estabilidade para os anos de aprendizagem. Logo após o lançamento de O fiel e a pedra, Osman Lins decide viver de sua literatura; viaja pela primeira vez ao exterior e fica deslumbrado com as catedrais de Chartres e Notre-Dame, na França; começa a se interessar pela obra de Mircea Eliade e C. G. Jung; suas afinidades com Dante Alighieri se acentuam e surge, em seu íntimo, a concepção de um romance que refletisse a ordem do cosmos e que inserisse o Brasil nesta mesma ordem, mesmo com as suas tentativas falhadas.
Todavia, ele sabia que ainda não estava pronto. Precisava dar o primeiro salto — e este foi Nove, novena. Uma das características mais admiráveis da obra de Osman Lins é o fato de que cada livro seu não é um mero exercício de malabarismo verbal, mas sim um calculado aprendizado, em que o autor quer experimentar até que ponto ele pode chegar, antes de dar o passo decisivo.
Assim, as narrativas de Nove, novena apresentam um novo Osman Lins: se em O fiel e a pedra temos um escritor que ainda se prende a um esquema rigoroso e linear ao contar sua história, em Nove, novena, vamos ter um romancista que não hesita em misturar o tempo da memória com o tempo da realidade; brinca com as várias possibilidades de contar um mesmo final; caracteriza a personalidade de cada personagem com um desenho gráfico, retirado de símbolos alquímicos; e que domina o uso de cada palavra, verbo e adjetivo.
A literatura torna-se uma liturgia em que o escritor precisa se manter são e completo para captar a eternidade que circunda o mundo real. Contudo, ele sabe que esta forma de vida se aproxima da loucura e, de fato, a única forma de realizá-la sem perder o prumo — o rigor, a ordem, a estrutura das coisas — é agir como um caçador, em busca de algo no qual as palavras serão suas armas, suas iscas, mas que também se revelam como futuras armadilhas.
Ora, se Osman Lins é um caçador, devemos saber o que está caçando pois, como sabemos, não se pode caçar o nada. Temos de caçar alguma coisa. E sua caçada pode estar fadada ao fracasso, uma vez que o animal que persegue não é algo que se toca com facilidade; ele devora a todos com muita calma, mas também dá a chance de fazermos o justo em nossas vidas; sua presença não é sentida, mas todos sabem que está lá. É desnecessário dizer o que Osman Lins procura na sua literatura — nada mais nada menos que o Tempo.
Por que tudo passa? O que fica, afinal de contas? Qual o sentido nesta vida em que tudo parece se desfazer em uma questão de segundos? Estas são as questões que Osman Lins traduz na grande novela que é Retábulo de Santa Joana Carolina, a peça central de Nove, novena. Inspirado em incidentes ocorridos com sua avó Joana Carolina, Retábulo conta a saga de uma mulher que luta contra um mundo que tenta corrompê-la, vive uma vida miserável no interior de Pernambuco, tinha de tudo para ser um fracasso completo, mas que termina a sua trajetória sendo recebida por santos e anjos, por causa da retidão e da coragem ao salvar a vida de um casal, a de um menino que seria vítima de uma tocaia, e a de seus próprios filhos, obrigados a ver os sofrimentos da mãe em uma viuvez fiel ao marido morto.
A história é tocante, sem dúvida, e Osman Lins mostra como é possível relacionar uma vida em segredo, guardada na brutalidade do Nordeste, com a vida do cosmos e da eternidade, ao combinar cada milagre de Joana Carolina com um signo do Zodíaco e jogando com as multiplicações de significado que a palavra tem como a semente de uma ordem no mundo. Retábulo mostra um escritor na recuperação de uma pessoa do passado, revestindo-a de uma figura mítica, justamente para eternizá-la e não torná-la perecível aos olhos de outras pessoas. Joana Carolina poderia ter sido mais uma; mas seu neto, através do poder da escrita, a transforma em uma santa. A literatura é a prece do último julgamento, a da finitude que aceita as regras do Tempo, para depois subvertê-las. Neste sentido, Osman Lins supera a problemática filosófica de que o Tempo consome a tudo e a todos e supera também a perspectiva de ver nas palavras a única maneira de recriar o passado na forma de mito.
Quando Nove, novena foi lançado, estamos no ano de 1966 e os militares cometeram a besteira de fazer uma das ditaduras mais desastrosas já realizadas. A opressão será institucionalizada, mas não é a opressão política que preocupa Osman Lins. Sua busca é pelo eterno e o questionamento que importa agora é como ele será revelado em um país que sequer meditou sobre o seu começo dentro do cosmos, o seu próprio papel na existência do Universo. Ele percebe que o Tempo está devorando cada momento, cada sopro de vida do brasileiro, por meio da cultura ou da política. Sua alma vive a ansiedade entre um Além que não se manifesta e um Começo que não se sabe bem como e quando começou. Finalmente, chegou a hora de expor estes seus dilemas — e eles estarão cifrados neste tapete de enigmas que é Avalovara.
2.
Mas, afinal de contas, do que se trata Avalovara? Fazer uma sinopse normal é quase impossível: Seria a história de Abel, aprendiz de escritor, que busca uma Cidade misteriosa que, na verdade, não existe em lugar nenhum? Seria a história de Abel com Cecília nos tempos de um Recife que há somente na memória? Ou a história de Abel com Anielise Roos, uma mulher européia que contém cidades em seu corpo? Ou a história de Abel com uma mulher misteriosa, que não possui nome e é designada por um símbolo alquímico — um círculo com um ponto no centro e duas hastes apontando para cima — e onde vivem dois seres dentro de seu corpo composto de palavras encarnadas?
E também pode ser a história da criação do maior palíndromo já inventado, a frase SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS, que coordena os movimentos desses personagens numa simetria implacável, dentro dos limites de um quadrado (que representa o mundo) e que gira conforme o ritmo de uma espiral (o Tempo). Pode ser também a história de Julius Heckethorn, que deseja construir um relógio que reflita a ordem e, simultaneamente, a desordem da existência; também é a história de como a Inominável (a mulher misteriosa de Abel, como passaremos a chamá-la neste ensaio) nasceu e morreu duas vezes, recebendo em seu corpo um pássaro composto de pássaros, o Avalovara do título; e é bem provável que seja a história do próprio Osman Lins ao fazer uma nova literatura num país em que qualquer espécie de novidade seria oprimida sem misericórdia.
Sim, Avalovara é tudo isso. É um romance cosmológico que se baseia em regras únicas e, como já dissemos, é estruturado a partir de um palíndromo: SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Existem dois sentidos para esta frase: “O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos” ou “O lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita”. Ambos fazem alusões ao modo de como o Criador organiza o mundo em que vivemos; na verdade, é uma sentença sobre a certeza de uma ordem que, talvez, poucos percebam. O palíndromo pode ser lido de qualquer maneira — e terá o mesmo sentido e a mesma ordem. Distribuído num quadrado com vinte e cinco pequenos quadrados emoldurando cada letra da frase, Osman Lins — inspirado num manuscrito sobre a sentença, encontrado pelo personagem Abel na Biblioteca Verona em Veneza — sobrepõe uma espiral, que nasce fora do quadrado e dirige-se para o centro da figura, exatamente na letra N da palavra TENET.
Este plano parece mostrar os fundamentos de Avalovara, mas é apenas o início. O quadrado é o mundo — e o romance se deslocará de Ubatuba para São Paulo, do Recife para Paris, de Paris para Amsterdam; mas a espiral é o tempo, seja exterior como interior, e assim iremos da Roma Antiga para a Europa da Segunda Guerra Mundial, do Recife dos anos 50 para a cidade de São Paulo na década de 60.
Entretanto, temos de tomar cuidado na nossa análise. Se ficarmos somente na relação entre o quadrado e a espiral com o palíndromo, cairemos no erro do estruturalismo. Osman Lins já nos mostrou as bases de seu romance; agora é hora de olharmos sobre o que ele fala a todos nós, como seres humanos. E o que temos é uma bela história de amor, mesmo que tenha seus momentos estranhos e que possuem um significado próprio na linguagem simbólica do livro.
Avalovara começa com dois amantes em um quarto, amando-se na penumbra de um final de tarde em São Paulo. São Abel e a Inominável. Será neste quarto que toda a história de um mundo colidirá com a trajetória de cada um destes personagens, em busca de uma eternidade que foge no efêmero que os persegue. Abel e a Inominável se encontraram em um dia de eclipse do sol e se tornaram amantes logo depois; ela é casada com Olavo Hayano, homem misterioso que possui duas faces, como o deus Jano. A Inominável é também um ser dúplice; nasceu e morreu duas vezes: a primeira ao cair de um elevador (teria sido uma tentativa de suicídio?) e a segunda ao dar um tiro no peito logo após a primeira noite de núpcias com Olavo Hayano. Ela é composta de palavras e tudo o que toca transforma-se em ser vivo; no quarto onde faz amor com Abel, do tapete onde se deitam saltam leões e serpentes; melodias de Carmina Burana, de Carl Orff, enchem a sala.
Na verdade, a história entre a Inominável e Abel começa muito antes. Sem dúvida, o personagem principal de Avalovara é Abel. A escolha do nome é singular e podemos adivinhar o seu destino: ele será o sacrificado. As visões de um cordeiro que o persegue em sua temporada européia e que aparece, anos depois, na mesma sala onde está com a Inominável, confirmam esta triste sina. Quem será o seu carrasco? E por que o sacrifício? Tudo tem seu começo no Recife, quando Abel, olhando a água de uma cisterna perto de sua casa, vê a imagem de uma Cidade. A epifania o marca profundamente e, durante muito tempo, ele procurará o lugar desta Cidade, assumindo sua condição de peregrino, seja na terra natal do Recife, na Europa ou em São Paulo.
Três mulheres serão os símbolos máximos de cada etapa da busca: Cecília, Anielise Roos e a Inominável. A primeira, apesar das observações de Regina Dalcastagnè em seu ensaio A garganta das coisas, ao colocá-la após o episódio de Abel com Roos na temporada européia, se passa, a meu ver, como a fase de inocência que Abel terá de enfrentar no Recife. Cecília é vislumbrada com seis anos de antecedência, no mesmo instante em que Abel vê a imagem da Cidade na cisterna; os dois se conheceram na casa das gêmeas Hermelinda e Hermenilda, mulheres solitárias que esperam a morte para se libertarem da vida. É uma época de transformações para Abel: sua mãe, a Gorda, prostituta aposentada, está entrevada; seu pai se suicida; seus irmãos e suas irmãs se espalham pelo mundo; e, finalmente, ele descobre a vocação de escritor ao terminar seu primeiro conto. O relacionamento com Cecília tem lances de perigo: os irmãos não gostam de Abel porque ele seria um homem casado (sua esposa teria se matado com um tiro no ouvido). Uma noite, os irmãos batem em Abel e em Cecília; ao se limparem do sangue e da sujeira numa praia, Abel descobre que Cecília é hermafrodita.
Um dos motivos que me leva a discordar da afirmação de Dalcastagnè que Cecília seria a segunda mulher na vida de Abel, após Anielise Roos, são dois detalhes do romance. O primeiro é que Osman Lins mistura os tempos dos acontecimentos para criar uma simultaneidade e assim dar a impressão que não vemos apenas um único Abel, mas três Abéis diferentes, ainda que seja o mesmo; o segundo é o fato de Cecília ser uma hermafrodita — ou seja, os aspectos feminino e masculino da personalidade de Abel ainda estão fundidos, já que a sua consciência não os discriminou. É necessário que ele passe pela experiência dilacerante da perda e da morte da parte feminina, como o que acontece com Cecília quando cai de um cabriolé numa praia e quebra o pescoço, para procurar a integração de sua alma na Europa, na companhia de Roos.
Anielise Roos é a mulher que será a concretização carnal da Cidade que Abel busca — mas ele não a encontrará nela. Roos se esquiva o tempo todo, viaja para inúmeras cidades européias e Abel, amparado por uma bolsa de estudos, a segue até que consuma o seu amor. Juntos vão à catedral de Chartres, onde Abel se depara com a visão do cordeiro que também estará com ele no quarto da Inominável em São Paulo. Ali, Abel conhece um cosmo em miniatura que mostra uma ordem divina relacionada com a ordem humana. Roos afirma que tem de ir embora porque é obrigada a cuidar do amante moribundo; Abel a vê ir embora, sufocado por uma dolorosa solidão.
No Brasil, ao presenciar um dia de eclipse solar, Abel conhece a Inominável. Ela é a carne no Verbo; sua vida é repleta de fatos enigmáticos: seu nascimento e renascimento, seu pai composto por próteses, seu avô jurista que desconhece as verdadeiras leis e, em especial, seu relacionamento com Inácio Gabriel, moço puro e fraco que, ao ser diagnosticado com tuberculose, espera com tranquilidade a morte, sem se esquecer de dar de presente à amada um pássaro feito de vários pássaros que se chama justamente Avalovara. O nome deste estranho pássaro (semelhante a uma iluminura medieval) é uma síncope de Avalokitesvara, divindade budista da compaixão infinita que, ao alcançar a consciência suprema, optou por não entrar no nirvana, permanecendo no umbral para poder socorrer os aflitos. O presente de Inácio Gabriel — que fica encravado na alma da Inominável — se petrifica quando Olavo Hayano deflora a esposa e só recupera a sua beleza ao encontrar-se com Abel.
A Inominável é uma fantástica criação de Osman Lins para mostrar a totalidade da personalidade. É a anima em estado puro, pois é quem guiará Abel na escuridão do mundo para que ele possa, finalmente, encontrar a Cidade que tanto procura. Abel percebe que tanto Cecília como Roos eram antecipações da Inominável e que tudo convergia para aquele momento em que os amantes celebravam um amor adúltero, mas paradoxalmente puro e capaz de transcender as prisões do Tempo. Contudo, a própria Inominável é a prova de que o Tempo pode ser alterado. Sua natureza é dúplice: seu rosto, olhos e boca mostram outra mulher por trás do atual corpo. Como seu marido Olavo Hayano, sua alma bipartida assusta os amantes. Só Abel compreende aquilo. Assim, os dois se amam como se fosse a última noite de suas vidas, prestes a entrarem na Cidade que Abel tanto deseja, Cidade que se revela como sendo o Paraíso e que será alcançado com a morte.
Avalovara é uma profunda meditação de como a arte é um dos meios de impedir a chegada da “indesejada” em nossas vidas. A verdadeira opressão do mundo não é apenas no seu aspecto político; é também a morte de cada espírito que se afoga na tensão entre o efêmero e o eterno. Talvez a arte seja a única forma que pode salvar o ser humano desta tensão — mas ela também pode levá-lo a uma ordem petrificada, se não aceitar a desordem inerente à nossa condição. Aqui entra uma das histórias do livro, a de Julius Heckethorn e seu relógio que reflete a ordem do cosmo. Relojoeiro alemão, vivendo às vésperas do nazismo, Julius é um amante de Mozart e Scriabin que pretende que sua obra máxima seja a reprodução exata da tensão existente no mundo, como nas nossas almas. Seu relógio é engenhoso: cada hora emite o som de um trecho de uma sonata de Scriabin, mas não de forma linear. A distribuição é aleatória e os sons nunca reproduzem o trecho da sonata na sua totalidade porque Heckethorn fez questão de esconder o décimo-terceiro fragmento — que surgirá no dia em que as conjunções astrológicas indicarem o aparecimento de um eclipse solar.
A obra de Heckethorn será a única prova da genialidade do seu criador: ele é assassinado pelos nazistas, seus papéis serão queimados e o relógio será vendido ao embaixador brasileiro na Suíça que, anos depois, venderá para um empresário de São Paulo, que transferirá ao seu filho — justamente Olavo Hayano, deixando abandonado o relógio no seu quarto, o mesmo quarto onde estão Abel e a Inominável; eles ficam surpresos ao escutarem a sonata de Scriabin por inteiro no exato momento em que a visão da Cidade surge diante deles, quando Hayano aparece com um revólver, pronto para matá-los.
A estrutura de Avalovara abarca um mundo de tensões, mas nada se compara à tensão da linguagem que Osman Lins elaborou para seguir os movimentos do espírito de cada um dos personagens. E é aqui que chegamos ao xis da questão. Neste romance, a linguagem não é um mero instrumento de descrição; ela é o Verbo que transforma a realidade. Contudo, ela não transforma para criar outro mundo de fantasia pois Lins capta com exatidão o poder transfigurador da palavra. Avalovara não é um livro sobre a realidade tal como é; é um romance sobre uma realidade em permanente declínio e que precisa de um novo Começo. Entramos aqui numa área perigosa, o da especulação gnóstica. Quando o artista cria um espelho de cosmogonia para ser a substituição de um cosmo que, a seu ver, está em permanente desordem ou que abandonou a verdadeira ordem, e se utiliza do dom do Verbo para modificá-la não somente em seu aspecto exterior, mas principalmente em seu aspecto interior, imaginando como poderia ser a existência se recomeçássemos — então não estamos mais no terreno da mera literatura e sim de algo que está em jogo há muito tempo: a integridade do ser.
Osman Lins usa a palavra como uma arma para um novo conhecimento do cosmos. Mas como podemos ter um “novo conhecimento”, se o cosmos é uma realidade de facto? Mesmo com as revelações judaicas e cristãs, a ordem cosmológica, como nos mostra Eric Voegelin em A era ecumênica, nunca deixou de existir. Ela continua presente na consciência humana — e isso dá ensejo aos fenômenos da Gnose e da Historiogenesis, especulações sobre o Começo da História, tentando dominá-la por meio de mitos e sistemas ideais, para depois determinar quando será o Além, geralmente em função do ser humano e nunca do mistério da divindade. O artista toma o lugar do profeta e do apóstolo. Quem tem o domínio do Verbo terá a certeza de um contato mais íntimo com o próprio Deus.
Dessa forma, a cosmologia de Osman Lins se revela como uma especulação gnóstica em que a abertura da alma fica restrita apenas aos domínios do cosmo e não a uma ordem transcendente. Deus existe, sem dúvida, mas está um pouco distante; a eternidade está lá, mas temos de nos contentar com o pálido reflexo que é o cosmos. O novo Começo entre Abel e a Inominável no Paraíso só acontecerá se houver morte e sacrifício; não temos nenhum aceno de uma possível ressurreição.
Isto não significa que Osman Lins seja um gnóstico. Em hipótese nenhuma: Avalovara é o retrato da luta que acontecia dentro da alma deste homem, consciente de seus deveres como ser humano e como artista, e o seu espírito foi o único que conseguiu captar, através da transfiguração da realidade pela palavra, a enrascada metafísica que o Brasil entrara. Para ele, a literatura era a arma de uma caçada perigosa, que não era mais atrás do Tempo, mas sim do tempo perdido. E onde erramos? Como foi possível o nosso erro se prolongar por tanto tempo? Avalovara mostra como um escritor, ansioso para encontrar a eternidade, se perde na tensão da condição humana e percebe que a literatura só terá sentido se usar a única coisa que nos liga ao sagrado: a memória.
3.
O tempo perdido caçado por Osman Lins não é o mesmo de Proust. Para o francês, a obra de arte pode recuperar o que já não existe mais porque sabe que ela não passa de uma representação da realidade; já os personagens do brasileiro acreditam que a literatura capta a essência da realidade. Esta é a armadilha em que cai o ensaísta-narrador de A rainha dos cárceres da Grécia, o último romance de Lins. Sob a forma de um ensaio, um professor de Biologia com pretensões literárias tem em mãos o único romance escrito por sua amante, Julia Marquezim Enone, que também se chama A rainha dos cárceres da Grécia, e tenta fazer um estudo literário, por dois motivos: o primeiro, para divulgar o livro, ainda inédito; e o segundo, para aplacar a saudade da mulher que lhe deu um pouco de conforto e amor em uma vida dominada pela solidão.
A rainha dos cárceres da Grécia, o romance de Osman Lins e não o de Julia Enone, é sobretudo uma história de amor. Aliás, a presença da mulher é importante na obra do pernambucano. Para ele, o relacionamento entre os sexos não é uma mera questão fisiológica ou emocional; é uma união espiritual. As mulheres são musas, que inspiram ou atormentam os homens, geralmente artistas que tentam impedir o ataque da finitude, enganando-a com a suposta eternidade da arte. Elas são como a Mira-Celi de Jorge de Lima, imagens da Virgem, da alma em sua totalidade, que ajudam o poeta na sua caçada por um tempo que nunca existiu: “Há necessidade de tua vinda, Mira-Celi:/ Milhares de ventres virginais te esperam/ através de séculos e séculos de insônia!”.
A Mira-Celi de Abel, em Avalovara, é a Inominável; a do solitário professor de Biologia é Julia Marquezim Enone. A Inominável é o Verbo em carne; já Julia Enone escreve um romance que conta a história de Maria de França, demente mental que realiza um calvário para ter direito a uma aposentadoria por invalidez no INPS, torna-se prostituta, e que conta em primeira pessoa sua aventura num estilo alucinado, barroco, como se estivesse em um programa de rádio, comprimindo o tempo e o espaço, numa fusão do Recife dos tempos da invasão holandesa com o dos anos 70.
Paralelamente, o professor se questiona sobre o que se passava dentro do íntimo de Julia enquanto escrevia o romance; uma observação de sua sobrinha — a de que o livro possui muito de suas expressões e seus tiques — faz o professor imaginar se o manuscrito não seria uma última carta de amor ao solitário amante. A forma de um ensaio disfarçado de diário permite a Osman Lins que o leitor descubra que, afinal de contas, “as grandes mudanças sempre se operam em silêncio”. Ao analisar parte por parte do romance — observando as relações com a quiromancia, a astrologia, a história do Brasil, músicas populares, referências autobiográficas e míticas, principalmente a lenda de uma mulher chamada Ana, que atravessava todas as prisões da Grécia para aprisionar a passagem do Tempo —, o professor se transforma, aos poucos, em um personagem do livro que lê. Ele se retrata como o Espantalho que Maria da França monta conforme o passar do tempo e que simbolizaria o encontro da demente com alguma espécie de Eterno que se importa com ela. Na identificação com o Espantalho, o professor percebe que sua vida nunca teve muito sentido, exceto aos olhos da única mulher que amou, a misteriosa Julia, que se jogou embaixo de um caminhão na Avenida Paulista.
Osman Lins monta um quebra-cabeça para resolver o seu próprio mistério. O romance de Julia Marquezim Enone é uma paródia de Avalovara, com sua linguagem transfigurada e estrutura hermética; o ensaio em formato de diário que o professor escreve compara dados da realidade com os incidentes da ficção, privilegiando estes últimos em relação aos primeiros. Dessa maneira, uma anotação sobre a precariedade do sistema previdenciário existe apenas em função do romance e não porque faça parte de uma realidade maior. Pouco a pouco, o narrador substitui a sua vida pela ficção e o seu sentido só se dá quando se transforma no Espantalho que Julia vislumbrou num momento de transfiguração silenciosa. Em Avalovara temos um novo Começo; em A rainha um novo Além — mas ambos são sistemas ideais, construídos pela literatura para transformar a realidade.
E tudo isso acontece por um motivo: o desaparecimento da memória. Ao observar um detalhe do romance de Julia Enone que havia ficado despercebido — o nome do gato de Maria de França e seu singular destino —, o narrador descobre que a chave do enigma estava em suas mãos e ninguém notou. O gato chamado Memosia ou Mimosia remete à palavra grega mnemósine, o nome dado para um ser criado pelo deus Urano e que guardaria os tempos passados dos deuses antigos. Mnemósine é claramente a Memória. O destino do gato é triste: abandonado pela dona, por causa de sua demência, perde-se nas ruas de Recife e morre entalado em um buraco ao perseguir um rato. A sua morte é a morte da própria memória de Maria da França — e talvez da de Julia Enone que, ao saber disso, tira a própria vida; e da do narrador, agora fragmentado no discurso incoerente do Espantalho.
Mas a morte da memória é também a morte da passagem do Tempo e este depende da primeira para que o ser humano tenha conhecimento do sentido da sua vida e de que ela terá um fim. A Memória nos faz relembrar que morreremos; o sentido da vida ressurge justamente desta consciência da finitude. Quando a Memória desaparece, o Tempo também se esfarela — e o ser humano perde a razão de sua existência. E só podemos perder a Memória se desejamos desesperadamente recriar nosso Começo para ter nosso próprio Além, jamais integrado ao mistério da divindade. A especulação gnóstica de Avalovara se reverte na trapaça da realidade transfigurada de A rainha. Quando a vida é vivida como um jogo lúdico, a única consequência possível é a insanidade total.
Será que não foi por acaso que, logo após o lançamento do seu último romance, Osman Lins faleceu em meados de 1977? Será que ele também caiu na mesma armadilha que percebeu como poucos? Ele não teria suportado o fato de que sua obra era a denúncia de uma doença espiritual que se alastrava como um vírus na sociedade brasileira? Um homem com um caráter tão forte precisaria de outras forças para manter-se íntegro — ou então só a morte o libertaria dos tormentos desta vida de guerreiro silencioso. O criador de Avalovara teve a coragem de enfrentar os paradoxos do espírito — mas o preço a pagar foi alto demais. Contudo, alguém tinha de começar a caçada, mesmo que ela estivesse fadada ao fracasso. Ele sabia que o tempo perdido jamais seria reencontrado, exceto se submetesse aos ditames da realidade — e, se isso não aconteceu durante a sua vida, foi porque permaneceu procurando-a naquele vale obscuro aonde todos nós iremos algum dia, na esperança de finalmente vê-la tal como é ou então de a possuirmos como sempre sonhamos.