Releio, devagar, bem devagar, Morte em Veneza, a novela que Thomas Mann publicou em 1912 e que Luchino Visconti transpôs para o cinema. A imagem de Dirk Bogarde, interpretando o compositor Aschenbach, se infiltra, insistente, em minha leitura. A música de Gustav Mahler, enérgica e fatal, ecoa ao fundo.
Na página 19 de minha velha edição da Nova Fronteira, o deslumbramento é rasgado pelo pensamento. Habituado a filosofar a respeito da própria arte, Gustav von Aschenbach, o personagem de Mann, disse uma vez que “quase tudo o que existe de grandioso existe como um apesar de”. Para que algo nasça e se erga, ele medita, é preciso, primeiro, um obstáculo. Uma resistência. A força que se opõe ao movimento é fundamental para que o movimento exista. Sem a inércia, nada acontece.
Prossegue o narrador de Thomas Mann: “E isso era mais que uma simples observação, era uma vivência, era justamente a fórmula de sua vida e de seu sucesso, a chave de sua obra”. A arte de Aschenbach — e, por extensão, a do próprio Mann — só se realizou “apesar da pobreza, do abandono, da fragilidade física, do vício, da paixão e de mil outros obstáculos”. Em vez de desanimar e sucumbir, a adversidade potencializa a criação.
De repente, empurrado para um desses abismos aos quais a memória sempre me leva, surge à minha frente a figura infeliz do senhor Sandrelli, meu professor de latim. Chegava de banho tomado e arrastava uma pasta atulhada de gramáticas e dicionários. Visto assim, de relance, era um professor virtuoso, pronto para encantar seus alunos. Triste engano.
Mal entrava na sala de aula, o professor Sandrelli era alvejado por bolinhas de papel que, resignado e triste, ele recolhia pelo chão. Apático, instalava-se em sua bancada de mestre e começava a ditar. Em vez de anotar suas preleções, os alunos o ignoravam. Não só o ignoravam, mas o molestavam. Mesmo aqueles que, como eu, por estupidez, ou por covardia, ainda tinham alguma esperança de aprender.
Não que o professor Sandrelli fosse um gênio, como o Aschenbach de Mann. Tampouco o imagino como um santo largado entre os impuros. Nos corredores do colégio comentavam que, com um chicote de tiras, ele espancava sua mulher, a secretária Lurdes. O boato era ampliado por notícias imprecisas de que, nas noites de desilusão, Sandrelli espancava a si mesmo. Seu nome, apesar da origem italiana nobre, era enxovalhado e ofendido. Tornou-se um traste.
Eu havia esquecido por completo da figura de nosso professor de latim. Ela só emergiu em minha mente, vinda das profundezas do passado, não sei por quê, enquanto eu relia o Morte em Veneza. Surgiu devagar, infiltrando-se entre as linhas, entre os parágrafos. Durante muito tempo, não notei sua presença. Até que, na página 19, Paolo Sandrelli se manifestou. Apareceu de pé à minha frente, frio como uma estátua. Tomou corpo, materializou-se, e aqui está. O que ele quer de mim, não tenho ideia.
Sempre guiado pelo sopro de Mann, decido revisitar meu passado. Havia muitos anos, eu não inspecionava nosso velho colégio, em Botafogo. Um impulso — um alvoroço interior — me levou de volta até ele. Peguei o 136, o mesmo ônibus que usava na infância. Saltei no mesmo ponto, defronte a uma pastelaria, que não existe mais. Vacilei diante da igreja. O que eu buscava? Não sabia. Se ainda estivesse vivo, o miserável Sandrelli seria um nonagenário. Teria a memória aos frangalhos.
O caos se instalou. Misturada à figura asquerosa de Sandrelli, me veio à lembrança a voz grave do padre Weber que, desde a infância, foi meu confessor. Era muito velho — era surdo. Prescrevia sempre a mesma penitência, “três pais-nossos e três ave-marias”. Avancei pela nave escura. Achei que ainda me lembrava da posição de seu confessionário. Guiei-me pelas velas, que tremulavam sobre bancadas de bronze. O confessionário estava logo à direita. Era o terceiro depois da entrada. Na porta, havia uma lâmpada acesa, o que significava que alguém me esperava para a confissão.
Ajoelhei-me. “Não vim me confessar”, avisei. A voz incerta respondeu: “Mas, se não é para se confessar, por que veio?”. Seria absurdo falar do professor Sandrelli. Não naquela escuridão. Não de joelhos perante meu passado. “Achei que, talvez, o senhor pudesse…” Não consegui concluir. Acreditei ouvir, ao longe, a sinfonia nº 5 de Mahler — a mesma que sustenta o filme de Visconti. Esperei, mas o silêncio era cada vez mais pesado. “Terá morrido?” — me veio à mente. “Com minha confissão, eu o matei?”
“Talvez o senhor tenha conhecido o professor”, arrisquei-me. Um vento gelado, soprado da sacristia, me entortou as costas. Os vitrais piscavam. As velas, a muito custo, se mantinham acesas. “Sandrelli?” — perguntou enfim o sacerdote. E logo acrescentou: “Foi meu contemporâneo”. Misturado aos suspiros do padre Weber, já não era Mahler, mas um lobo que uivava. Então, a portinhola do confessionário se abriu. Depois de empurrar a cortina, sem me olhar ou se despedir, o sacerdote se foi. Já estava de costas quando disse: “Apesar de você, você é um homem bom”. Eis Aschenbach de volta, eu pensei.
Apesar de meu medo, uma conexão se abria. Um sentido. Apesar de minha ignorância, cheguei ao velho sacerdote. Tudo se interligava. Achei que ouvia os golpes de chicote que o professor Sandrelli aplicava em suas vítimas. Sim, era verdade — só que, dessa vez, era a mim que ele chicoteava. As chicotadas que não me eram dadas doíam. Só então percebi que eu continuava ajoelhado no confessionário vazio. Ergui-me. Minhas pernas estavam dormentes, mal conseguia andar. Precisava fugir, deixar aquela igreja e todo o passado para trás. Agarrar-me ao livro de Thomas Mann.
Esse é o grande risco da crônica: você começa a escrever sobre uma coisa, e logo chega a outra. Esse é o abismo. As sinalizações são ambíguas. As encruzilhadas, perigosas. Assim que cheguei de volta em casa, retornei à página 19 de Morte em Veneza. Reli em voz alta, devagar, bem devagar, dois ou três parágrafos. Nada daquilo, agora, fazia sentido. Apesar disso, continuava a ser um grande livro. Voltou-me então, como uma facada, a sentença do padre Weber: “Apesar de você, você é um homem bom”. Que seja.