João Cabral de Melo Neto dizia que carregava “um buraco no peito”. Reclamava com os médicos — temia um problema cardíaco —, mas eles lhe receitavam antidepressivos e lhe falavam de uma tristeza própria da idade avançada. Mal saía do consultório, na primeira lixeira de rua, Cabral jogava a receita fora. “Esses médicos não entendem nada. Não é depressão o que sinto, é melancolia. A mesma de que sofriam os poetas do século 19”, me disse, certa vez.
Como sabem, visitei Cabral regularmente, durante um ano e meio, para gravar as entrevistas que resultaram em meu livro João Cabral: o homem sem alma/ Diário de tudo, relançado pela Bertrand Brasil em 2006. Durante minhas visitas, o poeta freqüentemente reclamava desse buraco na altura do coração que, em vez de aliviá-lo, em vez de lhe ventilar a alma, lhe pesava. “Não é dor. Não é mal-estar. Não é nada. Ao contrário: falta alguma coisa”, me disse também. “Falta uma coisa, fica o buraco, e você tem de carregá-lo”.
A poeta Marly de Oliveira, sua dedicada mulher, o obrigava a tomar os antidepressivos. Ela mesmo passou a comprá-los e a vigiar os horários prescritos pelo médico. Cabral, porém, guardava o comprimido em um canto da boca e, mal a Marly virava as costa, ia à janela e o cuspia. “Plantei muitos antidepressivos nos jardins da entrada do prédio”, orgulhava-se. Perseverava na melancolia — como quem rega um cacto. Apesar do incômodo, preferia mantê-la viva. Para dela fazer um motor, ou um vaso, quem sabe, onde cultivava novos poemas.
Essa história de Cabral me volta à mente enquanto leio Melancolia (variação), poema do português Nuno Júdice, guardado em seu livro Fórmulas de uma luz inexplicável. Nos versos luminosos de Júdice está muito do que Cabral me dizia. O poeta se encontra regularmente com certa mulher, sempre no mesmo bar de Lisboa. Tinha o costume de ocupar a mesma mesa de canto, “talvez porque aquele canto conservasse melhor/ as suas palavras”. Preferia o claro-escuro, fugindo da luz excessiva, para que ela “não desfizesse o mistério dos seus olhos”.
Os encontros, como tudo, terminam. O tempo passa. O poeta resolve, um dia, revisitar o mesmo café. “… tinham mudado as mesas e/ já não havia nada no canto/ para além/ de um armário de garrafas e copos”. A iluminação do bar também se alterara: “uma luz uniforme apagava as sombras”. A realidade, com seu peso, esmagava a memória. Escreve o poeta: “Eis como o tempo passa, e muda/ as coisas/ Ali, onde se tinham encontrado/… nem um breve/ relance de memória me traz de volta o seu rosto”.
Não precisa nomear o sentimento que o empurra para o chão: basta-lhe que esteja no título do poema. Basta que o sinta. E, mesmo assim, está tudo dito. A melancolia não chega a ser uma tristeza, nem um pesar, tampouco precisa se manifestar através de apreensões. Certamente não é uma depressão. A bile negra (no grego: mélanos = negro + kholé = bile) é, como dizia Cabral, “um buraco”. Dizendo talvez melhor: é algo que escorre desse buraco, algo que ele produz. Sem o rombo no peito, não vazaria. É preciso que o buraco esteja ali para que um humor doloroso e inexplicável escorra.
É, em conseqüência, um buraco construtivo — como aquele raspado pelas escavadeiras para que, só depois, um edifício possa ser erguido. Está na base de tudo. Daí Cabral reclamar que os médicos pretendiam, na verdade, “calar” sua poesia. Talvez por isso (arrisco-me a pensar) haja tão pouco lugar para a poesia no mundo de hoje. Vivemos a era das próteses, dos tampões, dos substitutos, das vedações. Um pequeno buraquinho surge em um dente, algo que você nem tinha notado, algo que nem chega a doer, e o dentista logo lhe sugere uma obturação. Um pequeno defeito no corpo, uma falta, e você não sossega enquanto não faz uma plástica.
Vivemos em um mundo obturado: basta ver os seios e as coxas e os músculos artificiais exibidos, com glória e descaramento, nas academias de ginástica e nas telas. Um mundo que glorifica o “cheio”, que ama a saturação, e que não suporta o vazio. Como diz Gerry Maretzki, a corpoanalista: o mundo que não suporta “o espaço entre”. Nas academias, rapazes e moças erguem e soltam pesos, em ritmo espartano e metódico. Não respiram entre eles. Não provam do “entre” de que Gerry tanto nos fala. Não suportam o intervalo, a espera, o silêncio. O vazio.
Não agüentam provar da melancolia, que é amarga, mas fértil. É como no teatro, ou no cinema: é preciso a sala escura (bile negra) para que, em um foco de luz, a ação enfim se desenrole. Para que algo, enfim, aconteça. Sem a mesa de canto vazia do bar, o poeta não chegaria a seu poema. Nada haveria a (tentar) preencher. Tudo estaria pronto, como nos restaurantes self-service. Bastaria que nos servíssemos da vida — como alguém pede uma pizza pelo telefone. Não haveria espaço (entre) para que a poesia possa escorrer.
Não é que não suportemos a poesia, ou que não a “entendamos”. Não é que ela seja uma tolice de românticos. É coisa bem diferente: não agüentamos encarar o buraco de onde ela flui. Se há poesia, há falta. Homens “cheios de si” não suportam poemas. Não precisam deles. Contentam-se com sua ilusão de preenchimento e nela se enforcam. Lembro que Cabral, falando de sua melancolia, certa tarde me sugeriu: “Fique um pouco em silêncio. Feche os olhos. Pare”. Não é fácil. Parecia um místico — logo ele, o poeta da matéria.
Misticismo da matéria: eis onde chego. Luz inexplicável — para usar a expressão que Nuno Júdice me oferece. Luz em que explicação alguma, fórmula alguma, enchimento algum lhe é suficiente. Nada parecido com as luzes feéricas que cegam nosso século 21. Explosão de imagens, de flashes, de brilhos: nenhuma relação com a poesia, que precisa da escuridão — como Teseu em seu labirinto — para só então enfrentar seu monstro.
NOTA
O texto Uma defesa da melancolia foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.