Marpa, erudito e lama tibetano do século XII d.C., a princípio pode não sugerir nada a quem se interessa por tradução. Mas é um nome inspirador, não só pelo fato nada desprezível de ser chamado “o tradutor”, mas também pelo realce que lhe deu outro grande tradutor: Octavio Paz.
Marpa o tradutor entrou para a história do budismo como autor de numerosas traduções de manuscritos indianos, especialmente de ioga tântrica, e como mestre de um dos mais renomados santos do budismo tibetano, Milarepa. A biografia desse santo budista, desse iogue, nos chegou através da tradução para o português de uma tradução inglesa de originais tibetanos. Uma tradução indireta, portanto, dessas que assustam os defensores da possibilidade de acesso a “originais”. O livro se chama Milarepa — História de um Yogi Tibetano, publicado pela Pensamento.
Conheci Marpa por meio de uma tradução para o castelhano do mesmo livro. Era Marpa, el traductor. Foi um contato inspirador, desses que mudam rumos da vida. É à sua inspiração que devo as venturas e desventuras de me ter tornado tradutor. Anos depois, foi também na língua castelhana que pela segunda vez me deparei com Marpa, num ensaio de Octavio Paz, Lectura y Contemplación.
Paz, que nesse ensaio se refere ao erudito tibetano como “o famoso Marpa, mestre do ainda mais famoso Milarepa”, nos chama a atenção para um fato curioso, importante para quantos se interessam por tradução: poucos filósofos e poetas do nosso tempo aceitariam ser chamados de “tradutor”. Sartre, o tradutor? Becket, o tradutor? Neruda, o tradutor? Inadmissível.
Talvez ao próprio Paz não soasse bem, para si, o título “tradutor”. Ainda mais ele, que podia escolher outros títulos de mais prestígio social — poeta, ensaísta, dramaturgo, diplomata, quem sabe “homem de letras”. Mas como tradutor que era, e sabedor das agruras do ofício, soube também sair em defesa da “classe”.
O fato é que Paz deve ter sentido na carne a falta de reconhecimento que ainda paira sobre o ofício do tradutor. Especialmente porque compreendeu como poucos a dificuldade desse trabalho espinhoso, meândrico, cheio de minúcias e armadilhas. Não é sem razão, portanto, que o escritor mexicano, prêmio Nobel de literatura em 1990, fez algumas inspiradas reflexões sobre o ato de traduzir.
Suas idéias são muitas e variadas, algumas francamente de cunho “essencialista” (supondo a estabilidade de significados), outras desbragadamente pós-estruturalistas, embora ele certamente não possa ser tido como pós-estruturalista. Dentre as que mais me agradam, cito apenas uma, que nos dá uma sensação de eterno diferimento do significado, no melhor estilo derridiano: “Dê um lado, o mundo se nos apresenta como uma coleção de semelhanças; de outro, como uma pilha cada vez maior de textos, cada qual ligeiramente diferente daquele que o antecedeu: traduções de traduções de traduções. Todo texto é único, mas ao mesmo tempo é tradução de outro texto” (do ensaio Translation: Literature and Letters).
É nessa teia de semelhanças e diferenças que nos encontramos e nos perdemos. Se somos as nossas idéias, se somos moldados pelas idéias, somos também traduções de traduções de traduções. Marpa, além de tradutor, era também tradução.