O Sentido da Grandeza e da Subversão em Miguel Torga

Em 2001, a literatura portuguesa contempla a realidade de já seis anos sem Miguel Torga, pseudônimo literário do médico português Adolfo Correia da Rocha.
O escritor português Miguel Torga, morto há 6 anos: sem concessões e nada de estripulias de enredo
01/02/2001

Por Daniela Greco, Elize Ribas, Fábio Sousa, Francis Riedi, Heliani Nagakawa, Hiran Brandalize, Lucinéia Santiago Alunos do curso de Letras da PUC/PR e Marcella Guimarães Professora de Literatura Portuguesa da PUC/PR

Em 2001, a literatura portuguesa contempla a realidade de já seis anos sem Miguel Torga, pseudônimo literário do médico português Adolfo Correia da Rocha. A editora Nova Fronteira tem lançado a obra do autor que, em toda a sua vida, fez questão de cuidar pessoalmente de suas edições, sempre pela Coimbra. Conhecido por um temperamento que não admitia concessões, Torga precisa ser lembrado, e sobretudo lido, como autor de uma obra monumental em todas as proporções. De acordo com a ficha técnica da própria Nova Fronteira, são 61 volumes, dentre os quais podemos contar diários, romances, livros de contos e poemas, antologias e peças teatrais, tudo isto sem nunca abandonar a medicina.

Os críticos têm concordado em apontar os contos como a parte mais rica da produção do autor. Mais conhecido no Brasil pelo volume Bichos, Miguel Torga ainda publicou outras quatro coletâneas de contos. Alguns desses ainda permanecem inéditos em nosso país, como, por exemplo, os do livro Rua.

Entre novembro e dezembro de 2000, oito pessoas se reuniram na Pontifícia Universidade Católica do Paraná para estudar três obras de Torga — Bichos, Contos da Montanha e Rua — em um curso de extensão. A leitura despertou o desejo da escrita, assim este texto, aberto com a força do “Sésamo” da primeira aula, reúne algumas reflexões feitas na classe. A cada aula, foi-se formando a consciência de que por trás da simplicidade dos personagens e de seu meio, havia a contundência de cada gesto, tirado a frio para convencer o homem da sua própria humanidade. A partir daí, não foi difícil começar a descortinar o sentido da grandeza que cada conto desenhava.

Em Bichos (Nova Fronteira, 1996), publicado pela primeira vez em 1940, pode-se observar a transmutação de homens em bichos e vice-versa, mas também um questionamento sobre atitudes, olhares e principalmente sobre pensamentos e sentimentos humanos. Na nova arca construída, toda a vida animal é convocada. No primeiro conto da obra, sentimentos humanos são outorgados ao cão fiel que, apesar do estatuto diferenciado em relação aos outros animais com os quais convive, lamenta a sua morte solitária, o que eleva o questionamento sobre a condição que nos iguala, a de mortais. Também no conto Mago, questiona-se o apego a uma vida sem sobressaltos, mesmo quando o instinto quer o oposto. Depois de uma briga com velhos companheiros de vagabundagem e em que quase vê a sua vida escorrer através dos socos de um gato mais forte, o protagonista retorna para a conciliação, “sem poder aceitar a sua degradação, Mago entrou pelo postigo da cozinha e foi-se deitar entre os braços balofos de Dona Sância” (pág. 35).

Em um dos raros  contos em que a participação humana protagoniza a ação, Jesus reatualiza o mito do menino Deus. Ao dizer a fórmula “sei um ninho”, o menino interrompe o jantar que absorvia as atenções da família para inaugurar o momento da deflagração da vida: a narração do seu beijo no ovo de um passarinho, “ao simples calor de sua boca, a casca estalara ao meio e nascera lá de dentro um pintassilgo depenadinho” (pág. 80). Se em “Jesus” a vida aflora diante do leitor, que, como os pais da criança, se enternece com a narração do Menino Deus, em Miúra se renuncia à vida.

Torga encerra Bichos com a valorização do caráter subversivo do ser tradicionalmente mais desprezível da mítica Arca de Noé: o corvo. Depois de renunciar à comodidade do seu meio sobrevivente em conseqüência dos ditames do Pai, o corvo Vicente parte para a aventura sem volta que eleva a força da criatura em detrimento do criador. Ao lado da simplicidade do pequeno cume em que se erguia Vicente, a grandiosidade do gesto que garante a vida já sem raízes, pronta a alçar vôo.

Se, de repente, remexermos as nossas memórias portuguesas encontraremos outros Vicentes. Em Camões, por exemplo, no primeiro canto, estância três de Os Lusíadas — “Cesse tudo o que a Musa antiga canta,/Que outro valor mais alto se alevanta.”; no próprio Torga em Orfeu Rebelde — “Eu ergo a voz assim, num desafio;/que o céu e a terra, pedras conjugadas/do moinho cruel que me tritura,/Saibam que há gritos com há nortadas,/Violências famintas de ternura”; em Álvaro de Campos — “Arre, que estou farto de semideuses!/Onde é que há gente no mundo?/Então sou só eu que sou vil e errôneo nesta terra?”; em Pessoa — “Sou um povo que quer o mar que é teu;/e mais que o mostrengo, que me a alma teme/E roda nas trevas do fim do mundo,/manda a vontade que me ata ao leme”; e até na voz da doce Maria em Frei Luís de Souza — “Que Deus é esse que está nesse altar, e quer roubar o pai e a mãe a sua filha? Vós quem sois, espectros fatais?(…) Esta é minha mãe, este é meu pai…Que me importa a mim com o outro? Que morresse ou não, que esteja com os mortos ou com os vivos, que se fique na cova ou que ressuscite agora para me matar?… Mate-me, mate-me, se quer, mas deixe-me este pai, esta mãe que são meus”.

Nos contos de Bichos, a liberdade ou a falta dela parece estar presente implícita ou explicitamente, por exemplo: através da morte, como em Nero e Miúra, ou no conforto carcerário a que Mago se submete por não saber mais ser bicho que se preze. Também na liberdade que o pequeno Jesus concede ao pintassilgo quando o beija enquanto ovo devolvendo-o ao ninho em forma de vida palpitante, e a liberdade do corajoso Vicente que enfrenta Deus em um duelo, dando ao Senhor apenas duas escolhas: ou deixá-lo morrer e assim matar a sua própria criação ou salvá-lo e dar a ele o livre arbítrio. O homem conseguiu o livre arbítrio porque um corvo duelou com Deus por ele…

Em Contos da Montanha (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996), publicado em 1941, destaca-se a humanidade, personagens fortes e ao mesmo tempo ingênuos recuperam o cotidiano na aventura especial de viver e, em cada gesto simples, experimentam a grandiosidade de serem autênticos. Assim, em Maria Lionça, a realidade de aceitação do destino por parte de uma mulher forte mas submissa pode provocar sentimentos contraditórios no leitor. Sua aparente frieza cria um sentimento de coragem e superação diante dos acontecimentos, elevando seu amor pelo filho e a fidelidade ao casamento, forças que a sustentam na superação solitária dos sofrimentos.

A exaltação do amor é feita através de cores bastantes diversificadas. No conto Amor, a protagonista encara duas forças capazes de suscitar atos extremos em seus amados, a beleza e a ingenuidade movem o seu oposto. No conto O Cavaquinho, não há concertos para a fama dos protagonistas, mas sim o desejo de um pai de presentear o filho por um bom desempenho na escola. Em A Vindima, as canções da moça apaixonada se elevam na realidade do trabalho pesado e não temem o olhar frio do patrão, só se calam no momento da morte do amado. A esta morte segue-se a morte da voz, o que confirma a crença no amor como única força capaz de operar mudanças.

Sem fugir do lugar comum que aponta como característica forte na produção de Torga a ligação com temas agrário-pastoris, vemos em O Bruxedo como uma simples rixa entre vizinhas pode fazer com que a ofendida conclame as forças ocultas da natureza para conspirarem contra a outra. O gesto do mal reatualiza práticas mágicas ancestrais, ligadas ao domínio do oculto e, com elas, é trazida a própria história da terra. No panorama metafísico de Contos da Montanha surge a sensação de embriaguez ao nos maravilharmos com as paisagens e com a própria existência dos seres na integração alegre entrevista em seu caleidoscópio telúrico.

Longe dos “campos impreciso que vão de braços abertos às montanhas” e que abraçam boa parte da produção de Torga, insinua-se o volume de contos Rua (Coimbra: Coimbra, 1985), publicado pela primeira vez em 1942, formado a partir de um mosaico de cidades que logo se transformam em um universo francamente inventado pela Literatura. Cada conto da obra trabalha com um ponto da existência humana e sintetiza a acepção de grandiosidade que parece importar para Torga, a que se tece a partir de atos de coragem no enfrentamento do dia-a-dia.

Torga traz ao mundo a mulher companheira e apaixonada, em Não Venha Mais; o carteiro que se sabe cúmplice nas alegrias e tristezas que entrega diariamente, em A Carta; o casal feliz que dá “bons-dias” à vida diariamente só depois das 11 da manhã, em O Estrela e a Mulher; um homem devastador e apaixonado pela noite, em Pensão Central, e um Orfeu português, em Música.

Irresistíveis são a importância e o caráter da subversão de certos personagens de Rua. No conto A Carta, o envolvimento emocional do carteiro com a jovem apaixonada transforma-o em agente de uma saudável conspiração para garantir a felicidade da moça. Em Música, o homem que deveria ser sapateiro foge ao controle do pai para tocar órgão na Igreja. Aliás, mesmo diante da impossibilidade de realização amorosa, fator que motiva o seu suicídio, o que o torna mesmo especial é a paixão pela música, capaz de dominar o estado emocional daqueles que o ouviam tocar. Macedo, em “Pensão Central”, suporta as críticas daqueles que pautam a sua vida pelo horário comum das refeições e mantém o seu desejo de apreciar a noite. Trocando o dia pela noite, o protagonista abraça os mistérios da segunda ao mesmo tempo em que se deixa levar pela promessa contida no vagido de uma criança que acaba de nascer. Como Vicente, de Bichos, esses subversivos buscam a sua realização pessoal assumindo a sua subversão, independentemente das oposições de ocasião.

Toda a grandiloqüência em Torga parece definitivamente ligada à narração de atos que fazem da vida o lugar para amar, sofrer, trabalhar e, sobretudo, conviver. Nada de estripulias de enredo, mas a própria aventura de encarar a existência dentro dos limites da verdade de cada um. Assim, seis anos da morte de Torga não devem significar seis anos sem Torga!

Marcella Guimarães

Professora de Literatura Portuguesa da PUC/PR

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