Assim como Lavoura arcaica, o livro de Raduan Nassar do qual foi extraído, Lavoura arcaica, o filme de Luiz Fernando Carvalho, é uma obra do limbo da alma. Limbo porque trata do mundo pastoso das relações familiares em um momento de crise, no qual se demonstra o que há de mole e quente nos contornos tidos até então como firmes, sólidos. Da alma porque trata sim da alma humana e está muito atento a um viés que, mais que religioso, é litúrgico. Quando aqueles pais e filhos falam, é como se estivessem em uma celebração religiosa. Tudo se diz com a seriedade e a unção das cerimônias realizadas nas igrejas e há seguidas apropriações do universo do catolicismo brasileiro de algumas décadas atrás. Tudo é intencional. Seria fácil atender à pasteurização característica de grande parte do cinema consumido atualmente, seria fácil fazer uma fita de pegada naturalista, que facilitasse o texto de Raduan Nassar para o espectador, que diria satisfeito “não li o livro, mas vi o filme”. Há que se ler o livro, há que se ver o filme, antes de mais nada porque são dois trabalhos de excepcional qualidade, duas obras que existem porque era forçoso que existissem, pois emanam de seus realizadores como uma voz que não quer calar. E o nome disto é força.
Atendendo a esta força e esta voz, o cineasta não quis agradar ao público com mais um produto fácil de ver. São três horas de projeção com longos silêncios, longas falas que são quase monólogos, atmosferas opressivas. Tal como na vertiginosa novela publicada pelo escritor paulista em 1975, o longa-metragem que agora chega às telas é pleno de uma inquietante mistura de economia e derramamento: o texto nassariano constrói um universo de cenários reduzidos, poucos personagens e linguagem torrencial, uma verdadeira volúpia da palavra; a película tem os mesmos cenários reduzidos (um quarto de pensão, uma rápida passagem pela praça de uma cidadezinha do interior, uma rápida passagem por um bordel, um vagão de trem e a fazenda da família de imigrantes árabes), os mesmos poucos personagens, a mesma torrente verbal que se materializa principalmente pela interpretação equilibrada e madura de Raul Cortez (o pai) e pelo exagero declamativo de Selton Mello (André, o filho protagonista). Ao lado deles, o irmão que quase não fala e também as silenciosas mulheres da família. Chegando aqui, todos indagamos: que mistério tem Ana, interpretada por Simone Spoladore, qual o sortilégio desta menina pastora que conduz ovelhas e dança voluptuosamente com os pés descalços no terreiro? Ana não fala: movimenta-se e reza quieta enquanto o mundo desaba ao seu redor.
E é mesmo de lastimar que aquele pequeno mundo venha abaixo, que a nota mais aguda venha para rasgar a harmonia familiar. Mas era inevitável: à custa dos sermões do pai e do profundo amor que os une a todos, esta família aprendeu a bastar-se a si mesma, e será fatal que desta seara brote a paixão incestuosa. Eis o cerne de tudo, eis o visgo da vida se manifestando violento, imperioso, ao mesmo tempo que puro e delicado. É daqui que brotará, como uma flor absurda, a tragédia. Quando André, um dos filhos do meio, sai de casa, dando início à versão árabe-brasileira da parábola evangélica do filho pródigo, o núcleo familiar vive seu tempo de escândalo e desespero. O desgarrado voltará para receber o amor e o perdão, mas a foice do destino espreita, famélica. Num dos seus momentos de exaltação, o jovem prometeu ao Senhor Deus “uma ovelha do rebanho do meu pai”. Será feito o holocausto.
Assim como na Crônica da casa assassinada (1959) de Lúcio Cardoso, na história escrita por Raduan Nassar e filmada por Luiz Fernando Carvalho temos uma família que, isolada em sua propriedade rural, vive de consumir-se a si mesma. Tanto o enredo cardosiano como o nassariano têm apenas um homem e apenas uma mulher que são alvo das paixões. No romance de Lúcio, a construção é mais caudalosa, com muitas vozes, enquanto em Raduan as páginas são em número mais reduzido e há apenas um narrador. Não obstante estas diferenças formais, são obras e autores da mesma linhagem literária — a linhagem dos que descem à selva escura da alma. Tal qual estes dois livros, o filme de Luiz Fernando Carvalho é uma ave rara, é desses trabalhos que têm algo de aberto e assimétrico e ainda assim guardam em si uma força vertiginosa que nos faz querer que sejam exatamente deste modo, sem o artifício do acabamento fechado e perfeito, mas com o caráter desparelho e irrecusável que a vida sabe ter.
Sobre este filme, a imprensa tem publicado muito, e o que mais se discute não são as estratégias para angariar financiamento, as possibilidades de premiação internacional. Sobre isso, é preciso mesmo dizer que não havia porque ele ser o nosso concorrente ao Oscar, já que não se pauta pela pasteurização hollywoodiana. É antes um filme brasileiro, e tanto mais brasileiro na medida em que não nos folcloriza, não mostra a nossa miséria transformada em produto de exportação, não é macumba pra turista: o que está ali é “o Brasil que o Brasil desconhece”, aquilo que podemos chamar de Brasil profundo, a vida que rola num dos corações do Brasil. Na nossa cinematografia recente, tivemos algo disto nos dois primeiros longas de Beto Brant. Certamente haverá mais exemplos. Dirão os incautos que, com uma família de imigrantes árabes, Luiz Fernando Carvalho não fala de Brasil. Ora, este é um país de imigrantes e os “turcos” fazem parte do nosso panorama.
E é preciso fazer festa e alegrar-se, porque nas folhas dos jornais e nas nossas rodas de bate-papo depois que saímos da sala de projeção estamos a discutir escolhas estéticas, esta filha pródiga que gosta de dissipar recursos financeiros, mas que sabe bailar diante dos nossos olhos e faz nossa alegria.
Por tudo isso, Lavoura arcaica é uma boa nova, um evangelho de piedade e crueldade. Nele, corre o sangue, mas não o sangue hollywoodiano das mortes em série e sim um líquido econômico e precioso demais, porque nos ensina a redenção.