Dignidade. Essa é a palavra correta para explicar a postura de Afonso Felix de Souza diante da poesia. Uma trajetória poeticamente coerente, que não se deixou seduzir pelas facilidades. Isso se pode ver na reunião dos seus poemas na antologia Chamados e escolhidos, livro que remete ao preceito bíblico, como bem lembra Antonio Carlos Secchin, ao dizer que também “no reino dos poetas, muitos são os chamados e muito poucos são os eleitos. Entre esses, seguramente, se encontra Afonso Felix de Souza, que acaba de ganhar o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. Cronista, dramaturgo, impecável tradutor de Villon, Done e Garcia Lorca, mas sobretudo poeta — por tudo que nos deu louvado seja”. Que de fato seja louvado o percurso desse poeta ligado à vida pela poesia e pelo poema, pela palavra necessária como salvação.
Não é fácil manter-se por tantos anos seguidos fiel ao seu princípio de dar ao poema a luz que pede a poesia. Afonso faz no Brasil uma poesia das mais significativas entre seus companheiros da chamada Geração 45. Darcy Damasceno esclarece que a obra de Afonso revela uma densidade lírica das mais singulares entre as de outros poetas de sua geração. Numa antologia do poeta, de 1976 (Pretérito perfeito, Civilização Brasileira), Damasceno observa que “jogando com a dualidade indivíduo/universo, pessoal/social, que o faz confessar seu mundo interior e ao mesmo tempo testemunhar o mundo do real, alcança Afonso Felix de Souza a harmonia de contrários e a ela empresta a inocência de seu canto cheio de amor”.
Já Joaquim Cardozo ressaltou — e vale repetir aqui — o domínio lingüístico-psicocólgico com que Afonso Felix de Souza exerce o seu ofício. Cardozo observou que os poemas de Afonso são fecundados por “um largo e livre canto trespassado de valores emocionais, ligados à terra e à vida das regiões por onde passou e onde viveu”. Também escreveu que na poesia do “cantor goiano” há um ritmo de romance, uma ressonância de poesia popular, cadências naturais desse lirismo ibérico, característica principal dos poetas do Século de Ouro, a mesma que se cristalizou na Espanha moderna com Lorca, Machado e Alberti. Afonso Felix de Souza é econômico nas palavras ao falar de sua geração: “A Geração 45 apareceu quando a modernista, cujos vultos mais importantes, já maduros e dominando a cena, começavam a apresentar mudanças em seus próprios caminhos, numa espécie de reconciliação com as formas tradicionais que a nossa geração acabara de adotar”.
O que significa para Afonso o lançamento destes poemas reunidos, retrato de toda sua obra? Ele diz ser estranho. Relendo sua obra agora reeditada, não tem uma idéia muito clara de algumas de suas passagens quando parece fugir de si mesmo, principalmente nos primeiros livros. “Talvez por isso mesmo não me sinta à vontade para aceitá-la em seu conjunto. Não sei se acontece o mesmo com outros poetas, mas a minha obra às vezes me soa estranha quando vou relê-la. É como se eu fosse outro no momento da leitura”. Afonso lembra o poeta do primeiro livro e o poeta de hoje: “Quando mal saído da adolescência, escrevi o primeiro livro, tinha idéia pessimista sobre o futuro do homem, talvez por efeito da guerra mundial, mas nem mesmo a paz posterior me deu trégua. Agora, já praticamente próximo do final, continuo o mesmo. Procurei libertar-me desse sentimento, mas jamais consegui, a despeito de fatores positivos na minha vida”.
Ainda existe lugar para a poesia? “Sim. A poesia, entre outras coisas, é um meio de dar ao homem momentos fugazes de trégua. Como escrevi uma vez: A vida é meia vida/ se não há mais paisagens/ e nem mesmo miragens/ da terra prometida”. É um poeta que não sabe como definir a poesia: “Por mais que tentemos, nunca conseguimos defini-la em todos seus aspectos misteriosos. A poesia, quando a abordamos, ora se revela, ora se esconde. Daí as passagens claras e as passagens obscuras do poema. Eu digo que a poesia é, sem nunca atinar com todos os sentidos que a abrangem”.
Afonso Felix de Souza acredita que a poesia é inútil para muita gente: “Podemos concordar desde que a tomemos em seu sentido mais terra a terra. Óbvio ou não, o sentido da poesia pode alcançar a muitos de nós. Nunca me esqueci de uma passagem narrada pelo crítico Roberto Alvim Correia: a de um soldado que, ao ir para a guerra de 1914, levou um livro de poemas como companhia”. Afonso observa que hoje há poesia para todos os gostos. A produção poética nos dias de hoje é extremamente diversificada. Não apresenta o denominador comum de uma escola ou movimento. Os poetas são cada vez mais independentes. O poeta assinala que em relação à produção brasileira, nenhuma poesia de autor vivo atinge a altura das principais obras de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Jorge de Lima. E também, quase no mesmo nível, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Mário Quintana, Murilo Mendes, João Cabral, Joaquim Cardoso e Dante Milano. Afonso diz que a crítica literária morreu, pelo menos como aquela praticada nos antigos rodapés: “Resta, porém, o verdadeiro Quixote, Wilson Martins. O mais são trabalhos universitários recheados de hermetismo ou resenhas superficiais. Nenhuma dessas modalidades concorre para o progresso da literatura”.
Existem poetas e escritores fabricados pela chamada mídia cultural? “Existem escritores de reputação fabricada pela mídia, mas trata-se, em geral, de escritores de obra destinada a pouca duração.” O poema tem de ser feito com emoção ou basta apenas um jogo de palavras? “O poema tem de ser feito. Poema é fruto tanto de emoção como de jogo de palavras. Há nesses dois fatores diferenças e semelhanças que muitas vezes se encontram”. O poeta crê que existe interesse pela poesia no Brasil. E isso abrange todas as gerações e regiões. Ele explica o significado do tom bíblico e a presença de Deus em grande parte de sua obra: “A presença de Deus, revestida pela cultura cristã do Novo Testamento, vem me acompanhando ao longo da vida, desde os tempos de sacristão na igreja de Jaraguá. Quem estuda minha poesia logo se dá conta dessa fé, que só oscila em termos de grau, mas sempre está presente de forma da busca ou do encontro. Em 2000, a professora e poeta Darcy França Denófilo publicou um longo estudo sobre a trajetória do sentimento religioso na minha obra. Não encontro melhor resposta”. O tom bíblico está no título desta poesia reunida, Chamados e escolhidos. O poeta sabe bem onde pisa com pés que tentam voar a possibilidade do vôo, que é o poema elaborado na intimidade do ser, onde vivem apenas as paisagens pessoais, essa fotografia de dentro. São poemas escritos desde 1945 até agora, palavras feitas da dura argila do tempo, das ocorrências e circunstâncias. Um dos livros mais pungentes do poeta é A beira de teu corpo, que ele abre com uma epígrafe de Domingos Carvalho da Silva: “A luz se apaga e a poesia/ se transforma em epitáfio”. Aqui o poeta se joga nos abismos de uma dor sem tamanha e sem reparo, sem volta, retorno impossível: “À beira de teu corpo eu busco, e alcanço-a, e agarro-a/ a mão que, de onde estás, já não me estendes, a mão/ que em criança, com toda a confiança, me estendias”. Uma longa elegia ao filho morto, esse mergulho na escuridão do grito: “A taça de amargura que em gotas vou bebendo/ quanto mais dela bebo mais ela enche e transborda”. O filho, da mesma forma que Murilo Mendes, nasceu para assistir ao fim do mundo, escreveu num dos poemas, observando: “E assim como se deu com o poeta/ o mundo te arrancou do mundo/ antes do fim do mundo/ e permanece o mesmo mundo/ indiferente ao fato de ainda sermos/ ou já não sermos”.
Essa mesma narrativa poética se estende nos Sonetos aos pés de Deus: “Por mais que eu busque nos desvãos da vida/ e alto, bem alto, atire o pensamento/ jamais alcanço o que alcançar tento/ ou a meu próprio ser eu dou guarida”. Destaque-se, também, o rigor na realização do poema que se vê em toda a obra de Afonso e, como exemplo, cite-se Íntima parábola, de 1960, livro composto de versos alexandrinos em 36 sonetos ingleses que enobrecem a poesia brasileira e enobreceriam a poesia de qualquer país. A poesia de Afonso Felix de Souza é sobretudo generosa com o mundo e com o homem, mesmo nas situações de absoluto ferimento. O poeta tem na vida o tema de sua poesia, seu propósito. Por isso é poeta, catador de papel nas esquinas e nos parques, onde dormem os videntes e certamente os esquecidos.
Poeta de cantos e de silêncio, desses que percorrem a intimidade do homem, onde se escondem as apreensões e também alegrias possíveis, acenos derradeiros e gestos de solidariedade num tempo de manchas escuras e ausências de toda ordem.