Inconsciência leve

"A Consciência de Zeno", obra-prima de Italo Svevo, continua perturbador
Italo Svevo, autor de “A consciência de Zeno”
01/05/2002

Há somente duas maneiras de ser feliz. Uma, é simplesmente sê-lo, por conta e mérito próprios. É a mais difícil, rara, raríssima. Duvide de quem se vangloria desta conquista. No mínimo, deve mentir para si mesmo. Resta, ser feliz proporcionando a felicidade aos outros. É uma atitude altruísta ou covarde, ou ambos. De qualquer modo, muito mais acessível que a primeira. Dispensa-se uma série de dificuldades existenciais: autoconhecimento, planejar metas e, finalmente, o quase impossível, atingi-las. É mais simples e cômodo ficar à espreita da felicidade alheia, pronto para dar junto o pontapé final e partilhar os louros da realização. Além de massagear um pouco o ego com a inexorável gratidão que o bom altruísta merece. Compensação obrigatória para não sucumbir ao depressivo fracasso da covardia em desistir de lutar pelas próprias convicções.

Este é o perfil de Zeno Cosini, o covarde heróico que tenta nos provar sua valentia nas 411 páginas do clássico A consciência de Zeno, do italiano Italo Svevo. Pobre Zeno, um iludido fracassado em permanente tormenta com sua consciência, psicanalista charlatão de si mesmo. A consciência de Zeno, no entanto, vive tão pesada a ponto de transbordar da balança. Isto torna o personagem riquíssimo, digno de compaixão e, ao mesmo tempo, repulsa em sua incansável batalha pela autopiedade.

A busca pela paz na consciência, entretanto, também é fruto do egoísmo. Uns lutam incessantemente pelo perdão para obter um alívio na consciência da culpa pelo erro cometido. Outros, como Zeno, barganham. Oferecem algo em troca para compensar a falta. Às vezes, o fazem em segredo, impedidos pelo medo de implorar o perdão e revelar a falha, numa atitude covarde. Em ambos os casos, impera o egoísmo. A verdadeira intenção é sentir-se melhor, nem que para isso seja preciso fazer o outro sentir-se melhor, mas sempre almejando o reflexo positivo da ação reparadora. A dor na consciência deveria ser perene. Aqueles que a carregam, sim, estão imunes à repetição do erro. Os que a descarregam, a deixam leve, mas tornam-se inconscientes, prontos a mostrar as garras novamente.

Mil vezes uma consciência pesada que uma inconsciência leve e inconseqüente, como a pretendida por Zeno. Ele é bem-sucedido inúmeras vezes, o que o deixa sempre propenso a pecar novamente. Já no início da obra, Zeno fracassa no objetivo de parar de fumar. Chega até a internar-se numa clínica, mas acaba subornando a enfermeira para esta lhe traga cigarros. Surge-lhe o primeiro peso na consciência, afastado rapidamente com uma desculpa para si mesmo: “À medida que envelheço, torno-me mais indulgente para com minhas fraquezas”. (A carapuça é tamanho GG). O fumo, aliás, é o pontapé inicial para os indecisos devaneios de Zeno, aconselhado pelo psicanalista a escrever sobre seus problemas. O médico sugere que comece a dissertação comentando sua propensão ao tabaco que, para Zeno, é não apenas um vício, mas uma estranha forma de viver.

E bota estranha nisto. É certo que o romance se passa no início do século passado, mas Zeno extrapola as raias do bom senso. Como no capítulo A história de meu casamento, o melhor do livro. Apaixonado pela bela Ada, vive atemorizado pelo momento adequado de revelar seu amor e pedir a moça em casamento. Mas o mancebo é cercado pelo pânico ao não observar nenhum aceno positivo de Ada enquanto lhe faz a corte desajeitadamente. O sentimento de rejeição é uma constante na consciência de Zeno. Quando um concorrente aparece, Zeno perde a noção do ridículo e apressa-se em pedir a mão de Ada. A recusa é inevitável. Mas as pretensões de Zeno mudam ao passar de uma sala para outra da casa dos ex-futuros sogros. Minutos após ser humilhado por Ada, ele se dá conta que se sua irmã mais jovem, Alberta, é igualmente bonita e elegante. Para não perder a visita, pede-lhe em casamento. O segundo não é um pouco mais educado, mas também definitivo. Nosso herói casadouro, no entanto, tinha sim, um plano C. A vítima é Augusta, a irmã mais feia da casa. O pedido é aceito, o noivado, confirmado, e os agora futuros sogros não se contêm de felicidade.

É a partir do casamento que Zeno deixa aflorar seu lado sórdido e covarde. Não casou por amor, mas porque não sabia o que fazer consigo mesmo. Logo cai nos braços de uma amante jovem e bonita. Cada vez que sai debaixo dos lençóis de Carla, Zeno tem as crises de consciência que são marcantes no livro (“Acontecia a Carla, às vezes, inconscientemente, reacender o meu amor por Augusta e o meu remorso”).

Ele procura compensar dando afeto à esposa, esforçando-se para fazê-la feliz. Puro egoísmo. Ver a mulher feliz é uma forma de perdoar-se pelo desrespeito que lhe tem em segredo. Zeno é tão falso que sua estratégia dá certo. Augusta sente-se amada a ponto de Zeno sentir-se constrangido e dispensar Carla, para arrepender-se no dia seguinte e suplicar-lhe a volta. Depois de Ada, desta vez é a amante que não o quer, em mais uma desilusão acachapante para Zeno, que se resigna a continuar proporcionando um amor possível a sua esposa.

As perturbações de Zeno não se restringem ao amor. No trabalho, também é um herói covarde. Não tem os colhões para dirigir o escritório comercial que herdou do pai, deixando o estabelecimento a cargo de um hábil procurador. Zeno vai buscar reconhecimento trabalhando com Guido, que é nada menos que o marido de Ada. A dedicação de Zeno no escritório de Guido é tanta que beira a inverossimilhança. Mas a intenção é clara. Ser feliz com o sucesso do outro e ainda mostrar a Ada o quanto é dedicado, como se assim ela pudesse perceber que casou com o homem errado. Acreditem, dá certo.

Zeno é um doente, como ele mesmo afirmou no início no livro (“A doença é uma convicção, e eu nasci com essa convicção”). Mas ele é tão convicto que a cura lhe seria uma desgraça ainda maior, num desafio à psicanálise, a qual é reservada o último capítulo do romance, de forma não muito lisonjeira:

“Acabei com a psicanálise, depois de havê-la praticado por três meses, sinto-me pior. Acho-me mais desequilibrado do que nunca e, escrevendo, creio que me livrarei mais facilmente do mal que a cura me provocou.”

Zeno é um canalha cínico que vive de suas fantasias, mas, mesmo assim, é difícil odiá-lo. Talvez a maneira como nos foi apresentado por Svevo lhe angarie até um pouco de simpatia e piedade (o que ele mais deseja). O texto forte, detalhoso e profundo do autor italiano abre totalmente as cortinas da consciência de Zeno e suas fraquezas. É difícil o leitor deixar de perceber ali um pedacinho que seja de si mesmo, afinal, que é o ser humano se não uma eterna luta contra a própria consciência?

E Zeno vence esta luta ou, pelo menos, a sua complacência pela doença é uma maneira de vencê-la. Dessa forma, vence também a Freud, à psicanálise, aos leitores. Tanto que, no final de sua autobiografia, já em meio à Primeira Guerra Mundial, permite-se avaliar o ser humano que atira as bombas que explodem ao seu redor, acusando-os de uma atitude tão imbecil e menor que a evolução da toupeira e do cavalo.

“A toupeira enterrou-se e todo o seu organismo se conformou a essa necessidade. O cavalo avolumou-se e seus pés se transformaram em cascos. O homem, este animal de óculos, ao contrário, inventa artefatos alheios ao seu corpo, e se há nobreza e valor em quem os inventa, quase sempre faltam a quem os usa. Precisávamos de algo melhor do que a psicanálise: sob a lei do possuidor do maior número de artefatos é que prosperam as doenças e os enfermos.”

Quase um século e algumas guerras depois, A consciência… continua perturbada e sem cura.

A consciência de Zeno
Italo Svevo
Nova Fronteira
411 págs.
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho