Caminhando no apocalipse

Os muitos desafios de um casal para fazer uma simples caminhada num mundo em colapso ambiental
Ilustração: Bruno Schier
18/09/2024

Em um futuro distópico, onde o cotidiano se funde às catástrofes ambientais, um casal tenta manter um resquício de normalidade em meio ao caos climático.

— Dei uma olhada lá fora, tá bom pra uma caminhada. Bora?

— Hummm, termômetro marcando 62 graus, friozinho…

— Então, vamos lá, coragem!

— Deixa eu só ver se tem gelo em cima do Tiago. Às vezes, ele se descobre dormindo.

— Vai ver o garoto que eu vou botando o traje de amianto.

— E vê se limpa os visores da tua máscara, Alberico, tá uma porquice aquilo, nem sei como você enxerga.

— Enxergar pra quê, Jana, pra ver fumaça preta?

— Eu sei, mas é mais pelos outros. Vão achar que a gente é uma família anti-higiênica.

— E eles, por acaso, veem a gente? Poxa, vai olhar se o menino não cozinhou, vai!

— Espera! Esqueci de uma coisa: hoje, a gente vai ter que fazer um trajeto diferente. A rota da rua debaixo, a que andamos sempre, está interditada.

— Ué, por quê?

— Vi no celular. Um posto de gasolina antigo explodiu e o trecho está pegando fogo desde anteontem.

— Esses postos de gasolina são verdadeiras minas. Vira e mexe vão pelos ares.

— Tudo bem, vamos andar na praça São José.

— Negativo.

— O quê?

— A praça se autoinflamou, do nada. Não tem mais nem o coreto lá.

— Hummm, a gente desce e consulta o Google Flames antes do passeio.

— Melhor prevenir que remediar, né? Mas falando sério, Alberico, como é que vamos sair de casa? Até a calçada em frente tá cheia de brasas.

— Não é um problema, Jana. Eu vi um tutorial ontem no YouFire. O pessoal tá usando aquelas raquetes de fritar mosquito nas botas pra andar por cima das cinzas. Parece bem eficiente.

— Boa! Vou levar as nossas.

— Olha só, acabei de ver aqui no app: temos uma janela de 15 minutos antes que os ventos de fogo voltem com tudo. É a nossa chance de ir.

— Eu só tô meio preocupada com o Tiago, sabe? Ele anda meio pálido esses dias. Já chequei a temperatura, está normal, mas será que a máscara dele ainda aguenta esse inverno rigoroso?

— Pois é, boa pergunta. Ele não tem tido mais problemas de visão, tipo, as coisas parecendo derretidas?

— Só aquela vez que ele disse que o cachorro da mamãe parecia uma poça de lama. Mas, pensando bem, o cachorro estava derretendo de verdade naquele dia.

— É a vida nesse século, né? Antes era só trânsito e preços altos, agora é posto de gasolina explodindo, chamas espontâneas, e pets evaporando. Quem diria?

— Alberico, esquece o Google Flames, vamos arriscar. A gente dá uma volta no quarteirão, respira um ar — quer dizer, pelo menos tenta — e volta. Se a gente der sorte, só vai ser uma camada fina de fumaça tóxica hoje.

— Fechou. Só me dá um minuto pra eu achar as chaves.

— Chaves? Pra quê, homem? Nem porta a gente tem mais. Incinerou há mais dois meses, lembra?

— É mesmo… Desculpa, força do hábito.

— Vamos lá, meu bem. Mas só por garantia, deixa eu pegar um extintor. Vai que a gente precise apagar algum foco de incêndio no caminho.

— Ai, Jana, você realmente sabe como apimentar um passeio, hein? Amo!

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

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