Tradução de tradução: riscos dobrados?

Lendo o Alcorão outro dia, deparo-me logo na primeira página, no prefácio, com um dos preconceitos mais arraigados no campo da tradução
01/01/2002

Lendo o Alcorão outro dia, deparo-me logo na primeira página, no prefácio, com um dos preconceitos mais arraigados no campo da tradução. Um “vício”, segundo Aziz Ahmed, prefaciador de O Alcorão, traduzido do árabe para o português por Mansour Challita. Um vício que afasta, no sentido e no estilo, a tradução do original. A tradução da tradução. Causa de deturpações, deformações, desfigurações, traições e outras perversões ainda mais terríveis.

Paulo Rónai considerava o processo de “retradução” como um “mal necessário”. Um “mal” porque os riscos seriam maiores: uma só tradução já é suficientemente arriscada; que dirá duas, em seqüência, uma em cima da outra. Processo vicioso, muita sopa para o azar. Necessário porque, não fora ele, como teríamos tido acesso aos grandes clássicos das literaturas russa, chinesa, indiana?

Não vejo a coisa assim com tanto pessimismo. A retradução, às vezes chamada de tradução indireta, é sem dúvida necessária. Não só pela dificuldade de encontrar tradutores para línguas pouco difundidas, mas, não raro, porque o texto já não se acha na língua original. Necessária, sim, e boa. Vendo por outra ótica, duas traduções são também duas oportunidades de infundir um pouco mais de vida em palavras mortas.

O desejo de encontrar o original puríssimo tem um quê de mórbido. Uma espécie de arqueologia mórbida, beirando a tanatofilia. Culto à morte, à la Bin Laden. Conservadorismo arraigado, empoeirado

Não que toda retradução seja necessariamente boa. Mesmo as necessárias não são necessariamente boas, dos pontos de vista estilístico e semântico. Não sugiro a aceitação cega de qualquer coisa malfeita, apressada. Também não enveredo pela via estreita da rejeição por princípio, do preconceito puro e simples. Há, certamente, retraduções e retraduções, como há boas e más traduções, como há bons e maus textos em geral.

Só sugiro uma visão mais positiva do processo tradutório como um todo, do processo retradutório em especial. Traduzir é também inseminar, dar vida nova a letras mortas. Insuflar vida em corpo inerte. Só pela leitura a vida volta a fluir nos veios secos e poeirentos daquela mistura letárgica de tinta e papel. A tradução, como leitura privilegiada, lenta, medida e refletida, pode jorrar vida com força no papel e tinta.

O conflito entre morte e vida, original e tradução, nessa associação que faço não sem boa dose de capricho, é também o conflito entre o velho e o novo, entre o conservador e o inovador. Na inovação nem sempre se acha qualidade, assim como a conservação faz chegar até nós tesouros inestimáveis. A chave, porém, está no sentido único da vida e do texto. A vida não faz meia-volta, como também um texto não retrocede ao original. O sentido é sempre à frente. A tradução é o veículo. A retradução são dois passos à frente.

Traduzir certamente não é copiar, e talvez aí esteja a razão mais forte do preconceito contra a tradução em geral e a retradução em particular. Cópia que não é cópia, como a tradução, está no pior dos mundos. Não sendo processo copiador, não tem como gerar cópia. Mas é isso que cobram dela, da tradução. Não a tradução, mas a cópia. Cobram-lhe o que nunca poderá ser, até por definição. Mais sensato seria tentar ver na tradução não a cópia, mas nada menos que a transformação.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho