Transa trans: tributo às tribos extintas

Texto de apresentação da antologia Geração 90: os transgressores, organizada para a editora Boitempo, a ser lançada este mês.
01/03/2003

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Esta é uma antologia de prosadores — dos melhores contistas e romancistas surgidos na década de 90 — e não de contos, que são todos inéditos e foram escritos exclusivamente para este projeto pelos dezesseis escritores convidados. A essa altura do campeonato você deve estar se perguntando: “Os transgressores? Que diabos de subtítulo é esse? Que significa ser um transgressor hoje em dia?” A resposta a essas questões é toda a justificativa desta antologia, cujo propósito é o de dar continuidade à primeira, organizada por mim e lançada pela Boitempo — Geração 90: manuscritos de computador —, e se possível enriquecê-la.

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Que há em comum entre os dezesseis autores aqui reunidos, além do fato de terem estreado na década de 90? Muita coisa. O nonsense (Ademir Assunção, André Sant’Anna, Arnaldo Bloch, Daniel Pellizzari, Fausto Fawcett, Simone Campos, Joca Reiners Terron), a ironia (André, Ivana Arruda Leite, Luci Collin, Marcelino Freire, Ronaldo Bressane), a insanidade (Ademir, Jorge Pieiro, Ronaldo), a fragmentação lírica (Ademir, Claudio Galperin, Edyr Augusto, Luci, Joca), o fluxo de consciência (André, Edyr, Fausto, Jorge, Ronaldo), as divagações cínicas e rancorosas (Daniel, Marcelino, Marcelo), a delicadeza do absurdo (Altair Martins, Claudio, Luci, Simone), o gosto pela prosa malcomportada e o desprezo pelo discurso linear (todos).

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“Um escritor argentino muito amigo do boxe me dizia que, no combate que se dá entre um texto apaixonante e seu leitor, o romance sempre ganha por pontos, ao passo que o conto precisa ganhar por nocaute.” Se Cortázar recebesse R$ 10,00 cada vez que essa sentença aparecesse no prefácio de uma antologia de contos, seus herdeiros triplicariam sua fortuna. Também cometi esse crime, não nego; toma lá as dez pratas. Nossa sorte é que o próprio Cortázar, malandro que era, jamais seguiu à risca todas as diretrizes que levantou, as mesmas que, anos depois, os tolos insistem em enfiar nas fuças dos contistas. Qual a novidade nisso? Enquanto o gênio aponta a lua e as estrelas, o idiota olha para o dedo.

Sentenças de efeito são como a piada mais ou menos bem sucedida durante uma festa chata. Certas classificações também funcionam assim: na falta de assunto, alegram o ambiente. Repetida ad nauseam no período em que os concretistas dominavam a cena poética, a classificação poundiana dos escritores não deixa de ter seu charme. Ezra Pound classificava os escritores nas seguintes categorias: 1. inventores, os que descobrem um novo processo, ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo, 2. mestres, os que combinam certo número de tais processos e os usam tão bem ou melhor do que os inventores, 3. diluidores, os que andam na cola das primeiras duas espécies de escritor, mas não são capazes de realizar tão bem o trabalho, 4. bons escritores sem qualidades salientes, os que produzem a maior parte do que se escreve, gente que faz mais ou menos boa literatura em mais ou menos bom estilo do período, 5. beletristas, os que realmente não inventam nada, mas se especializam em uma parte particular da arte de escrever, e 6. lançadores de moda, aqueles cuja onda se mantém por alguns séculos ou algumas décadas e de repente entra em recesso, deixando as coisas como estavam.

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Biblioteca básica dos transgressores: os clássicos

Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Macunaíma, de Mário de Andrade. Serafim Ponte Grande e Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. O púcaro búlgaro, de Campos de Carvalho. Doramundo, de Geraldo Ferraz. O sofredor do ver, de Maura Lopes Cançado. Panamérica, de José Agrippino de Paula. A festa, de Ivan Angelo. Reflexos do baile, de Antonio Callado. No coração dos boatos, de Uilcon Pereira. Avalovara e Nove, novena, de Osman Lins. Catatau e Agora é que são elas, de Paulo Leminski.

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Duas palavrinhas sobre os mocinhos e os bandidos. Os mocinhos são, é óbvio, os inventores e os mestres; os bandidos, os diluidores e os beletristas. No plano da generalização, tudo se resolve bem. No plano da especificação é que são elas. As divertidas categorias de Pound, quando aplicadas ingenuamente por ele e por seus seguidores menos inspirados, dão margem a todo o tipo de equívoco. Isso porque não há autores que sejam cem por cento inventores ou cem por cento diluidores. O mundo não funciona assim. O que há é a mescla de características e talentos, em contextos específicos e também mesclados.

O século 20 foi o da modernidade na arte européia e da tentativa, quase sempre frutífera, de modernidade na arte brasileira, que, com dois ou três passos de atraso, procurou manter-se no encalço do modelo estrangeiro. A ideologia do moderno emprestou valor positivo a palavras como invenção e transgressão. Em contrapartida, conferiu valor negativo a termos como conservação e tradição. Por isso, em literatura, ninguém gosta de ser chamado de conservador nem de tradicionalista, mas acha o máximo ser considerado transgressor. No âmbito desta rápida apresentação, preciso que você, leitor, se esforce para deixar de lado a conotação apenas positiva do termo transgressão e a meramente negativa de conservação. Preciso que você os veja como forças equivalentes, ambas trazendo no bojo cargas igualmente positivas e negativas.

Penso que foi a partir da década de 1950 que o termo invenção — o preferido dos poetas concretos e de seus seguidores — passou a ser usado insistentemente nos manifestos literários e até na imprensa, por apresentar, é claro, sentido contrário ao de reprodução. Mas reprodução do quê? Em poesia, dos modelos parnasianos e simbolistas, das formas clássicas de poesia, principalmente das que se pautam pela métrica e pela rima. Em prosa, das fórmulas do discurso realista, que privilegiam a representação mimética da realidade, a trama linear — com começo, meio e fim — e a postura contemplativa do leitor, a imersão total deste na narrativa. No início, fazia bastante sentido colar a etiqueta de inventor nos escritores que exploravam caminhos novos e renegavam furiosamente os formatos tradicionais. Mas com o tempo o número de inventores cresceu tanto que “rejeitar furiosamente os formatos tradicionais” acabou virando norma. As transgressões individuais foram ficando muito parecidas com certo modelo básico de invenção, proposto pelos precursores, e hoje em dia é praticamente impossível distinguir, na prosa e na poesia, a invenção da simples reprodução de fórmulas modernistas.

A paisagem ficou mais fora de foco ainda quando poetas inventores, como José Lino Grünewald e Glauco Mattoso, passaram a trabalhar com formatos tradicionais — o secular soneto, por exemplo — e poetas tidos como conservadores, como Bruno Tolentino e Antonio Cicero, demonstraram que é possível fazer mágica nova a partir de velhos truques. Na prosa, o desempenho dos transgressores — Sérgio Sant’Anna, Hilda Hilst, Márcia Denser — e dos conservadores — Lygia Fagundes Telles, Luiz Vilela, Milton Hatoum — também atingiu o equilíbrio qualitativo. Sempre é bom frisar, para evitar mal-entendidos, que o valor é positivo-negativo tanto para o primeiro termo quanto para o segundo.

Passado o impacto dessa guerra santa, nem a vanguarda nem a retaguarda saíram ilesas: somaram e subtraíram muita coisa uma da outra. Hoje as duas tribos convivem de maneira mais ou menos pacífica. Duas tribos? Não sejamos tão simplistas. Na verdade parecem ser quatro, oito, dezesseis tribos, e até mais do que isso, dada a multiplicidade de vozes e de modos de compor da gigantesca nação de escritores brasileiros.

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Biblioteca básica dos transgressores: os contemporâneos

Fluxo-floema e A obscena senhora D, de Hilda Hilst. Em nome do desejo, de João Silvério Trevisan. Diana caçadora, de Márcia Denser. O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, de Sérgio Sant’Anna. Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, O rosto da memória e Panteros, de Décio Pignatari. O jardim, a tempestade, de Jamil Snege. Mar paraguayo, de Wilson Bueno. O mez da grippe e Minha mãe morrendo & O menino mentido, de Valêncio Xavier. As sombrias ruínas da alma, de Raimundo Carrero. (os sobreviventes) e Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, Pescoço ladeado por parafusos, de Manoel Carlos Karam. A múmia do rosto dourado do Rio de Janeiro, de Fernando Monteiro. Sabedoria do nunca, Ignorância do sempre e Certeza do agora, de Juliano Garcia Pessanha. Grogotó! e Araã! de Evandro Affonso Ferreira. Contracanto, de Álvaro Cardoso Gomes.

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O que todo escritor, em particular, e todo artista, em geral, buscam com sua arte é representar as múltiplas faces da realidade. Mesmo quando o escritor ou o artista criam obras abstratas, o objetivo implícito dessas obras é transmitir às outras pessoas, por meio da síntese ou da análise, certos aspectos do mundo real. A fim de construir modelos coerentes e verossímeis da realidade, desde o século 18 muitos escritores optaram pela fidelidade documentária, que privilegia a representação objetiva do instante narrado. Esses autores são conhecidos como realistas e sua estética se baseia na mimese, que por sua vez se baseia no tratamento cuidadoso dos pormenores e de suas alterações no decorrer do tempo. A prosa realista, noutras palavras, faz uso de técnicas ilusionistas para que o leitor sinta-se como se estivesse participando da trama.

Mas, já no século 20, muitos críticos perceberam que o olhar realista, na sua tentativa de abarcar a natureza e a sociedade, pára na superfície das coisas, não vai ao cerne. Isso levou-os à paradoxal conclusão de que a realidade se encontra mais nos elementos que transcendem a mera aparência dos fatos do que neles próprios. Na era das Cinco lições de psicanálise, de Freud, e da Teoria Especial da Relatividade, de Einstein, o realismo, concebido como representação mimética do mundo, deixou de ser o melhor e mais fiel condutor da realidade.

Para melhor representar o mundo moderno, pautado pela velocidade e pela variedade ideológica, os antigos transgressores lançavam mão, na prosa, dos mais diversos estratagemas: substituição do narrador onisciente por diversos narradores inconscientes, quebra das normas sintáticas e da linearidade narrativa, mistura de gêneros literários (ensaio, crônica, poesia, peça de teatro, roteiro de cinema), apreço pelo monólogo interior e pela divagação minimalista, introdução no texto de elementos estranhos (fotos, desenhos, anúncios, recortes de jornal), mistura de discurso direto com discurso indireto, criação de palavras-montagens, uso de diferentes tipologias de letra. Esses recursos estilísticos tinham e ainda têm como objetivo sacudir o leitor, impedir que este adote a tradicional postura contemplativa. O humor negro, por vezes, é o complemento mais utilizado para manter coesos todos os elementos do texto.

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O que se procura com essas excentricidades é fixar a Verdade. Ou seja, expor e descrever a lei geral capaz de unificar os fatos e boatos, infinitos, produzidos na superfície do tempo pela alta velocidade das ações humanas. Do paradoxo não há escapatória: os transgressores — para Antonio Candido, transrealistas — ainda hoje, por conta dessa transa trans, conseguem ser mais realistas do que o rei.

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Na antologia anterior, Geração 90: manuscritos de computador, eu procurei acolher os representantes de todas as tribos existentes. Santo ecumenismo! Só assim o painel do novo conto brasileiro poderia ser minimamente fiel à realidade. Nesta nova antologia, a editora e eu optamos por privilegiar apenas a facção transgressora da Geração 90. Por quê? Mais do que qualquer coisa, por razões pessoais. Sempre tive mais afinidade, enquanto contista pertencente a esta mesma geração, com a ficção dita experimental, filhote legítimo das vanguardas do início do século 20. Se isso jamais me impediu de ler os escritores que freqüentam templos diferentes e rezam por outra cartilha, há momentos, como agora, em que é preciso tomar partido. Esta antologia é o melhor tributo possível às vanguardas — à tribo de Joyce, à de Breton, à de Oswald, tão distintas —, hoje todas extintas, e ao seu legado, que continua vivo e presente na corrente sangüínea da cultura ocidental.

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Os autores, a editora e eu dedicamos este livro a Evandro Affonso Ferreira, Juliano Garcia Pessanha e Luiz Ruffato, transgressores que, convidados, por razões diversas não puderam participar da antologia. Também dedicamos este trabalho a todos os que dão ouvidos ao bom senso e entram numa livraria, antes de repetir o lugar-comum de que nada de novo tem surgido na literatura brasileira.

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Vamos aos contos?

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho