Tradução, ou a arte de romper com as línguas

Um dia perguntaram ao tradutor americano Gregory Rabassa o que diferencia a cultura latino-americana de língua portuguesa da de língua espanhola
Gregory Rabassa, tradutor americano
01/04/2003

Um dia perguntaram ao tradutor americano Gregory Rabassa o que diferencia a cultura latino-americana de língua portuguesa da de língua espanhola. A resposta desse que traduziu García Márquez, Cortázar, Jorge Amado e Machado de Assis para o inglês merece algumas linhas de reflexão, com grossos respingos sobre o ofício de traduzir.

Disse que o português brasileiro é uma língua em aberto: a grandeza de um autor estaria em saber controlá-la. Quem escreve em espanhol, língua que rotulou de “uma saia justa”, deveria, pelo contrário, tentar romper com ela. Talvez nada se aplique melhor à tradução, de um lado e de outro. É preciso extrapolar, sem dúvida, quem sabe além do razoável. Mas quem traduz se vê a braços com essa sempre presente tensão entre controlar as línguas e saber romper com elas. Não apenas com uma, mas com as duas. A do original e a da tradução. Controlar a língua do original para que não transborde excessivamente sobre o texto traduzido, produzindo uma espécie de frankenstein lingüístico, algo tão comum em traduções que vemos e lemos por aí. Vigiar de perto a língua da tradução, para que não tolha demais, especialmente do ponto de vista sintático, os volteios criativos e mesmo os vôos mais extravagantes do texto original.

Por outro lado, controlar a língua do original é também saber romper com ela, aqui e ali. Não deixar que prevaleça sempre, evitando doses exageradas de estranhamento. E, na banda de lá da equação, é preciso romper com a língua da tradução, por vezes com energia e toda a ousadia que a situação requeira: violar padrões sintáticos, quebrar (ou criar) palavras, inverter colocações, promover desordem sã. Romper com a tradição, criar o choque e até a indignação. Eis aí, talvez, aquele que seria o lema de um bom tradutor: saber romper com a língua. Não acatá-la, não venerar os cânones, pelo menos não sempre; não tentar jamais preservá-la. Ao tentar preservar é que se mata a língua, que se lhe coíbem as expansões, as variantes e inovações que refrescam e revigoram as estruturas sintáticas e o acervo lexical. Açoitar, vez em quando, é preciso: os termos, as frases, os tempos, as colocações especialmente. Ai do tradutor que se pauta sempre pelas colocações mais consagradas: o texto, um caldo de clichês refogados a afogar o leitor com seus lugares-comuns intragáveis.

Romper é preciso, não só para quem escreve em espanhol. Em português, essa língua “em aberto”, ainda em construção de tão viva, ainda há muito a romper. O dicionário guia, mas amarra. A gramática ilumina e encarcera. Outro bom lema do tradutor seria “conhecer para transgredir”. Que no rompimento e na transgressão se revela a criatividade do bom fazedor de textos. O século 20 chamou a atenção, na literatura e na tradução, para o fenômeno da expansão da criatividade. Contida no terreno das idéias, rompeu e invadiu o terreiro da linguagem, da gramática — e dos gramáticos. A reação não tardou. Mas criar não era mais só contar boas histórias, e com engenho; era contar boas histórias com engenho e inovação lingüística. Na tradução, criar é recontar ou recriar boas histórias com engenho e inovação lingüística. E o pior é que, como diria a Tecla, personagem de Godofredo de Oliveira Neto, tudo o que se escrever será lido segundo a cabeça do leitor. Aí já é demais! Tanto esforço pra nada? O leitor espertalhão lê um texto que não escrevi? Pior: traduz um texto que não li.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho