Caderno de Notas (9)

Em ensaio literário sobre o russo Mikhail Bakhtin, Cristovão Tezza trata temas complexos e cerrados com clareza e elegância notáveis
Cristovão Tezza nos surpreende com uma linguagem sofisticada, didática e, sobretudo, ousada
01/07/2003

É uma surpresa, uma grande e estimulante surpresa, a leitura de Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo, ensaio literário do escritor catarinense, radicado em Curitiba, Cristovão Tezza, que chega às livrarias agora em julho. Os motivos são variados. Primeiro, não é sempre que, ao trocar a ficção pelo ensaio, um escritor consegue conservar o padrão de qualidade que nele reconhecemos. Não é simples exercer essa “dupla identidade”, mas Tezza nos surpreende com uma linguagem sofisticada, didática e, sobretudo, ousada. Depois, não é costume (e é bom lembrar que o ensaio de Tezza é uma adaptação de tese de doutorado apresentada por ele à Universidade de São Paulo) que, diante de um tema tão distante e específico, no caso a obra do crítico literário russo Mikhail M. Bakhtin (1895-1975), um ensaísta consiga, sem perder um centímetro de rigor e lucidez, usar a incursão ao passado para, através dela, penetrar, de forma contundente, no debate literário contemporâneo. Enfim, atualizar e demonstrar o vigor interminável da obra de Bakhtin, um pensador de resto esquecido ou, no máximo, mal compreendido. Por fim, é obrigatório registrar o notável senso didático de Cristovão Tezza, que trata de temas complexos e cerrados com uma clareza e elegância notáveis. Enfim, se já tínhamos o Tezza grande ficcionista, agora temos também, duplamente, o Tezza ensaísta brilhante, de quem esperar — e cobrar — novas e provocativas incursões pelo cenário, em geral árido e repleto de obstáculos, da teoria literária.

Na verdade, e embora nos ofereça uma visão panorâmica, e até acadêmica, do pensamento particular de Bakhtin e de seu círculo de intelectuais, Cristovão Tezza vem usar a obra do pensador russo, corajosamente, com uma audácia incomum nos meios literários brasileiros, em geral marcado pelas regras do compadrio e também de certa teologia literária, para perfurar, e mesmo dinamitar, as leituras contemporâneas da poesia. Seu ensaio serve, em particular, àqueles que, como eu, não são especialistas na obra de Mikhail Bakhtin e que, portanto, não irão lê-lo em busca de interpretações rigorosas e até sagradas, mas sim para tomá-lo como fonte de inspiração e instrumento para diagnosticar e repensar o presente. É essa atualidade embutida em Bakhtin, é o modo como ele se oferece ao leitor contemporâneo, o que mais estimula na leitura de Entre a prosa e a poesia. Desse modo, o ensaio de Tezza se oferece como excelente combustível para reflexões livres, e até “irresponsáveis” — como a que venho aqui rascunhar. Irresponsável no sentido em que não é movida por nenhum rigor de escola e, mesmo, pelo respeito a alguma tradição; mas, ao contrário, vem fazer uso das teses de Bakhtin para, a partir delas, repensar as idéias prontas, e até congeladas, que norteiam, em geral, o mundo literário.

Até porque a obra de Mikhail Bakhtin, cuja autenticidade ainda hoje está, em parte, em debate, é dispersa e desprovida de um centro, servindo como chave para abrir muitas portas, que levam a caminhos diversos. Ela vem, como um soco violento, de encontro às tendências formalistas que, ainda hoje, predominam na análise literária, configurando uma espécie de “religião do texto puro”, com seus cardeais, príncipes discípulos e textos sagrados. Um dos eixos de suas teses é a distinção entre a “centralização autoritária” que define a poesia e a “descentralização democrática” que, a seu ver, caracteriza a prosa. Essa natureza centralizadora da poesia terminou por isolar e encampar os aspectos formalistas que nela predominam desde a metade do século 20.

Bakhtin, ao contrário, via a vida concreta como inseparável da literatura, homem e mundo ligados a um compromisso indissociável, elo que, numa tradição de formas puras e abstratas, parece antiga, quando é decisiva. Sem o outro, não há a palavra, dizia Bakhtin e, portanto, ela só é plena se considerarmos sua dimensão social e cultural; até porque nenhuma palavra existe sem o ouvinte, ou leitor, que a vem sorver. Por isso, por se tratar de um gênero polifônico no qual vozes de procedências distintas se entrelaçam e medem forças, o formalismo (desde os formalistas russos) foi sempre incapaz de dar conta do romance. A prosa lida exatamente com a linguagem comum, quer dizer, a linguagem prosaica. E esse discurso prosaico se ergue sobre falas antagônicas, sem a monotonia e fechamento que definem o discurso poético. Enquanto para a poesia o mundo está pronto, à espera da letra no coração do poeta, o romance trata de um mundo inacabado — e que nunca ficará pronto. Por esse caminho, Bakhtin chegou às limitações da poesia, e não a sua superioridade — dela que, em geral, é tida como um gênero puro, como “o gênero dos gêneros”. Enquanto o romance seria o lugar “do homem inacabado”, sujeito, na verdade, que caracteriza a vida contemporânea.

O mais interessante no livro de Tezza é que, não se limitando a reconstituir as idéias de Bakhtin, ele trata de confrontá-las, e mesmo testá-las, em contraste com o senso comum que norteia as teorias contemporâneas. Senso comum que se origina, ele nos alerta, no pensamento dos próprios poetas. Tezza lembra que “a obra de Bakhtin e de seu círculo desapareceu do horizonte já no início da década de 30, e o seu reaparecimento fragmentário nos anos 70 não vai influenciar significativamente o pensamento literário dominante”. Enfim, é um pensamento que ficou recalcado, e assim foi justamente porque toca no coração dos impasses vividos pela poesia ao longo do século 20.

Como definir a poesia? Borges tentou assim: “Poesia é a expressão do belo por meio de palavras habilmente entretecidas”. Eliot disse que “o poema se apresenta como um círculo ou uma esfera: algo que se fecha sobre si mesmo, universo auto-suficiente”. A poesia é vista então como depositária da “linguagem original”, ou arcaica, não contaminada pelas circunstâncias do mundo real, Tezza aponta. E continua a vasculhar as idéias que os poetas têm a seu próprio respeito. Brodsky a definiu como a “forma mais elevada de linguagem”, enfatizando assim seus aspectos sagrados. Octavio Paz veio afirmar que “o poema transcende a linguagem. O poema é a linguagem, mas é também mais alguma coisa”. Paul Valéry a viu como a busca da “voz absoluta”. Por contraste, observa Tezza, “vê-se a prosa, ou a vida da linguagem falada, como degradação da linguagem”.

Poucos escritores, como o polonês radicado na Argentina, Witold Gombrowicz, conseguiram dizer: “Confesso que os versos me desagradam e até me aborrecem um bocado”. E por isso parecia um herético. Sobre a suposta pureza da poesia, prossegue Gombrowicz: “Por que razão não gosto eu da poesia pura? Pelas mesmíssimas razões que me levam a não gostar do açúcar puro. O açúcar é coisa deliciosa quando se o toma no café, mas ninguém se poria a comer uma pratada de açúcar — seria demais”. É novamente Tezza que, lúcido, vai concluir: “Eis aí a teologia moderna temida por Cioran: a poesia como um valor sagrado, anti-racional, mas substancialmente laico”.

É a noção de utilidade, ou inutilidade (pense-se em Manoel de Barros, em Fabrício Carpinejar…) que rege hoje a poesia. Bem antes deles, Jean-Paul Sartre já dizia que o poeta é aquele que se recusa a utilizar a linguagem, Tezza prossegue em sua investigação. “O poeta está fora da linguagem e vê as palavras do avesso, como se não pertencesse à condição humana”, escreveu Sartre ainda. Então, diz Tezza, muitos vêem “o poeta como um mágico pairando acima do mundo concreto, fora da linguagem, capaz de chegar à coisa em si, que é a realização poética”. Tais afirmações, prossegue ele mais à frente, “pressupõem o mundo autônomo das palavras, o mistério indizível, as ressonâncias obscuras, o incompreensível”.

Ao contrário, os formalistas russos foram os primeiros a tentar entender a poesia como um fenômeno de linguagem a ser estudado friamente. Os formalistas buscavam uma “ciência literária”. O problema é que, ainda hoje, muitos teóricos da literatura acreditam nessa balela — quando Bakhtin, um século atrás, já apontava para sua superação. Não o retorno a uma visão mítica e ingênua, mas o avanço para além dos dois tipos de erro, o formalista e o “conteudista”. Os formalistas vão se esforçar, por exemplo, para “livrar a teoria literária de tudo o que não seja literário”, como se tal operação fosse realmente possível. Eles viam a poesia como uma máquina e propuseram uma crítica como um retorno ao “saber do artesão”. Mesmo renegando a metafísica, continuaram aferrados a um ideal inexistente. Os formalistas vão buscar a “literaturidade”, isto é, aquilo que é específico da literatura. Com isso, se submetem a leis internas regulares e exclusivas, que viessem garantir a completa separação entre a poesia e o real. O formalismo vai construir o ódio ao senso comum, ao bom senso, ao prosaico, através da distinção entre a “linguagem formal”, superior, e a “linguagem prosaica”, que lhe seria inferior. Visto assim, o crítico literário se torna um contra-senso, quer dizer, um “cientista da literatura”. E a teoria literária, uma “ciência da literatura”, solene e cheia de dedos diante de seu objeto. De um extremo, o da literatura vista como ideologia e conteúdo, os formalistas saltaram para o outro, o da literatura como forma solta e vazia.

Bakhtin, ao contrário, vai insistir que, na análise literária, o Eu não pode ser excluído, porque está sempre presente. Além disso, ele acrescenta, a linguagem deve ser investigada em todas as suas funções, e não só na poética. Para Bakhtin, os teóricos do formalismo russo não sabiam o que fazer com a prosa — e essa mistura de constrangimento e desinteresse, de certo modo, é dominante ainda hoje, podemos acrescentar. Ele sugere que, diante de um romance, em vez de o teórico se ater à visão técnica, ele deve expandi-la, desprender-se dela, para chegar a uma visão de mundo. Além disso, o leitor não pode se excluir do texto. “Compreender um objeto é compreender o meu dever em relação a ele”, disse. Quer dizer, é compreender a atitude ou posição que devo tomar diante dele. O crítico, em vez de se abstrair, de se ver como um leitor “neutro”, deve se encarar como alguém que tem uma participação responsável no texto que lê. O que Bakhtin tentou, em resumo, foi superar o divórcio entre uma análise abstrata, ou formal, e outra ideológica, que é igualmente abstrata. Só na conexão entre as duas é possível superar a abstração e cair no real. Bem, não era por outra motivo, Tezza explica, que Bakhtin tinha “horror à abstração teórica, à redução esquemática, à instrumentalização das categorias”. A palavra só pode dizer algo se estiver “em relação” com o mundo. Senão, será apenas forma vazia.

Para Bakhtin, em resumo, a arte é parte da vida, e não um objeto autônomo, regido por leis internas e próprias. O importante, então, é o contexto no qual o ato de criação se torna significante. Em resumo: Bakhtin, relido por Tezza, abre uma porta para que possamos reconectar a literatura à existência concreta e prosaica. Mas isso se faz por um avanço, a novas e mais complexas formas de conexão entre elas, e não por um recuo às velhas (e esquemáticas, lamentáveis) análises sociológicas dos esquerdistas clássicos. Esse Bakhtin que Tezza reencontra nos abre uma perspectiva para reverter, revirar e reordenar as leituras hoje dominantes a respeito da criação literária. E para reaproximar a arte e a vida, de modo que a literatura, em vez de letra morta, ou de assunto para especialistas, volte a ser um instrumento vivo e desafiador a remexer e ampliar nossas vidas reais. Não é por acaso, Cristovão Tezza nos recorda, que “os dois maiores poetas da língua portuguesa do século 20, Drummond e Pessoa, são dois poetas prosaicos”. Nem é preciso lembrar o forte prosaísmo do modernismo brasileiro. O que está em crise, hoje, diz Tezza, é “a autoridade poética”. Nem a esterilidade da abstração formal, nem só a vida concreta e caótica. “O segredo estará em não perder de vista nenhuma das pontas dessa passagem”, ele conclui.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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