A beleza existe, mas nem sempre transcendente. Transcendente, por exemplo, está nos poemas de Marco Lucchesi, como se tem visto nos livros que escreveu e publicou. Existe a beleza, equivale dizer: existe a poesia, especialmente num tempo de equívocos e fraudes que se dizem poéticas. Por causa de poetas como Lucchesi, pode-se dizer que nem tudo se perdeu. O Brasil é um país poeticamente infeliz, com alguns déspotas determinando situações constrangedoras para a poesia brasileira. Poucos se salvam. Pouquíssimos. Por esse motivo, livros como Sphera representam uma imagem salvadora entre os naufrágios atuais. Eu sabia o que estava fazendo quando, como jurado, indiquei o livro Poemas reunidos, de Marco Lucchesi, para receber o Prêmio Jabuti de 2002, na área de poesia, o que não ocorreu. Isso, no entanto, não vem ao caso. Nada vem ao caso. Importante é bendizer este livro, esta poesia. Marco Lucchesi faz uma poesia de iluminação e brilho. Uma poesia limpa. “Escrevo sem/ deixar vestígios”, escreve num poema. É assim mesmo. Sem alarde. Silencioso nesse seu ofício de revelar um universo que não está à disposição do olhar comum. “…invoco/ uma palavra/ que me salve/ dos extremos”, observa num outro poema, a dar pistas da elaboração de uma poesia que está além e ao mesmo tempo dentro da palavra, do poema. Lucchesi diz num poema que não há segredo algum no corpo da palavra. Diz com sabedoria, porque sabe lidar com elas, sabe dar a elas o brilho que deve ter o poema. Sphera é uma viagem de iluminação da palavra, da poesia tantas vezes aviltada nos tempos atuais, numa inversão de valores lastimável. Nem tudo, no entanto, está perdido. Enquanto existir poesia assim, existirá a luz anunciando que a poesia está viva no aceno, na ausência, nos dedos, nas ruas, no rosto, na vida. “Não desejo/ outra/ quimera além/ do mal que/ me/ consola/ e desespera”, diz um dos poemas de brilho deste livro. Como se a dar uma sinalização do universo do poema, da alquimia ao chão, do espírito ao gesto de toda redescoberta. Por fim, é preciso atentar para o clima poético da obra de Lucchesi. Um clima feito de e para a poesia, com poemas que são gestos do mais fino cristal diante dos temporais do cotidiano de brutalidades vigente.
• Você poderia definir Sphera?
Sim. E Não. Poderia. Não poderia. Mas tento. Acho que preciso tentar. A poesia para mim transcende o poema e se confunde com o universo, paralelo, infinito, simpático, que tenha o sujeito como centro de uma razão emocionada, atravessada de furores, ou talvez sobre-humanos silêncios, matemáticos, metafísicos, apofáticos. Trata-se de uma força ígnea. Coisa de incêndios sutis. O poema são as cinzas deste incêndio. E devem as cinzas guardar de forma indelével o incêndio que as gerou. Trabalhamos com algumas brasas e cinzas. Em Sphera, trabalho sobre as cinzas. Penso, mas não sei definir o tamanho e a razão, de que poeta e alquimista trabalham com ácidos, sais e palavras. E sonham uma espécie de criação luminosa, usando suas bacias, seus pelicanos, fornos-atanores, tubos de ensaio, e sobretudo com a matéria viva de sua loucura apolínea e sobriedade dionisíaca. Trabalham em seus contrários. Poetas e alquimistas não obedecem o status quo da matéria e da palavra. Sonham combinações. Atrevimentos. Descobertas. Mas sabem — o poeta e o alquimista — que o ouro sutil não está fora de uma estrita empiria. Um empirismo provavelmente mágico e certamente transgressor. Transcriador. Buscam a tradição mais arcaica para justamente criar uma nova sensação de vida, palavra e liberdade. Sabem porém que a pedra filosofal do poema e do rebis alquímico jamais se alcançam. Tentei, tentei responder, mas acho que não pude…
• Qual foi sua trajetória poética, desde o primeiro livro?
A mais escondida e silenciosa possível. O estado de poesia muito cedo se exprimiu em versos. Mas eu precisava passar por muitos mares, e livros, e prateleiras, e amores, e desesperos, e lágrimas. Uma conversão que sofri — como outros e mais ilustres que eu — que se passou da erudição ao belo. Tentativas. Itinerários. Sonhos de máquinas do tempo, para frente e para trás, poeira de arquivos, areias de desertos e das profundezas do Brasil. Meus Orientes. Meus Ocidentes. A revolução. A mudança. Ciência e teologia. Mas fui trabalhando em mim. Uma visão mais consistente dessa trajetória encontra-se em Poemas reunidos, que saiu em 2000, mas além disso, outros passos foram trilhados na tradução poética — que abandonei — de muitas obras, inéditas sobretudo, e as que faliram (o número de minhas antitraduções superam de muito o das traduções!!), e as que vingaram como Rilke ou Pasternak, Trakl ou Khliébnikov, Quevedo ou San Juan de la Cruz. Todos os caminhos levam a Roma e a Meca. Sei que a literatura e a poesia me salvaram, permitindo uma articulação entre o plural e o singular, o particular e o universal. como se a possibilidade do poema representasse um caminho escondido e sublime, que se espalha para o passado e o futuro. Assim, os livros de Proclo e as Cartas de Platão, o poema que Camões não escreveu, e os futuros que não sei, mas que me atrevo a desenhar. A poesia serve de máquina do tempo — a que sonhava em menino, e que depois vim a estudar com as Curvas de Tempo Fechadas, com Gödel e Mario Novello —, ligando universos que poderiam não conversar entre si, extremos que talvez não se tocassem. Uma pergunta para muitas janelas. Assim, com lentes foscas e opacas, compreendo minha des-trajetória, como a entende a física moderna, cuja base repousa no colapso da trajetória. Mas insisto. Meço minha ignorância e minha vontade de viver.
• Num mundo conturbado como o atual, com valores invertidos em todos os sentidos, há ainda lugar para a poesia?
Vejo a poesia como valor. Ou como lugar da construção de. Máquina formidável, que resiste nas suas monumentais contradições, em sua matemática transcendental, em voragem de mistério que se exprime sem mistério. De quando em quando se declara a morte da poesia, como se ela fosse um impedimento depois de um tragédia humana. Não há dúvida de que os tempos, os de hoje, são árduos, ferinos, cruéis. E a cada qual foi reservada uma herança, como as dos que naufragam — sem ao menos contar com um espectador, e sua compaixão. Mas as obras fundamentais parecem que também foram escritas em períodos semelhantes. O exílio de Dante e de Ovídio — em tempos absolutamente duros. A poesia é a condição humana. Dos que podem contar com o feudo lírico da infância, pequenos senhores e vassalos de suas terras, com seus olhos marcados de orvalho, do primeiro orvalho, que seus olhos alcançaram, como o Adão do Paraíso perdido, de Milton. Vi poemas escritos (e belos!) em regiões que hoje se encontram em condições que humilham a Carta dos Direitos Humanos. A poesia é o lugar. A forma. A vontade. Todas as fontes que afirmam o mundo e que o recusam e que o transformam. As lágrimas de Ovídio e a ira de Castro Alves.
• Diante de certa “poesia” de valor discutível, mas que tem espaço garantido na mídia festiva e desonesta, como entender a poesia produzida por poetas como você, como Carpinejar, Astrid Cabral, Carlos Felipe Moisés, para citar apenas estes nomes?
São nomes que merecem meu aplauso, como você também, Álvaro, com seus luminosos quarenta anos de poesia. Gosto muito desses caminhos poéticos e sou amigo de Astrid e de Carpinejar. Nomes que vão ocupando seus espaços, fazendo seus leitores e criando amigos, nesse diálogo aéreo ou subterrâneo que as ligações literárias sabem estabelecer. Afinidades eletivas. Pontes invisíveis. O panorama da poesia brasileira hoje é extenso e fértil, e poderia citar muitos nomes, de norte a sul do país. O lado negativo — a meu ver — repousa nas igrejinhas, nos pequenos partidos, em certas mistificações, ou zelos excessivos, e na tremenda confusão de transformar a experiência literária num pretexto. Um exemplo disso: quando no campo de certa publicidade, uma questão ética é deslocada para o setor de marketing. Essa marquetização deve ser evitada no campo da literatura. Se os que a realizam esperam louros e resultados apenas… talvez estejam a desperdiçar o estado de ser mais visceral, o risco mais intenso e profundo, que o fazer poético pode produzir, ainda que em modos de fazer onde a emoção pareça de todo ausente.
• Existe crítica literária no Brasil?
Existem ótimos críticos literários em nosso país. Ocorre que a visibilidade hoje é problema de ordem astronômica no Brasil. Acho que é mais fácil ver a olho nu um satélite de Marte do que alguns textos de crítica que se publicam em revistas especializadas e que continuam paradoxalmente inéditos. Outro aspecto dessa visibilidade é que não se observa a hegemonia de um discurso ou a presença mais forte de um crítico-paradigma, como ocorria em outros tempos e lugares. Mas é claro que sonho com uma perspectiva aberta, livre e independente. Mas sobretudo criativa, dialógica, atenta ao panorama e ao sujeito, sem reduções do segundo ao primeiro, minuciosa e flexível, que não renegue sua paixão pela palavra, e que se torne um nobre interlocutor, realizando aquilo que Umberto Eco considerou a intenção do leitor, que não se deve perder de outras duas intentiones: do autor e da obra. Essa relação delicada faz com que a distância entre o crítico e o artista não apenas diminuam, mas se confundam. E isso vem acontecendo.
• E a poesia brasileira atual?
Posso dar um depoimento depois de ter editado os quatro números da revista Poesia Sempre, de 2000 a 2002. Tenho comigo que nesse período a revista se abriu realmente, terminando com algumas formas contrastantes, como o não diálogo (absurdo) entre Rio e São Paulo, do Sul com o Nordeste, do Amazonas com o Centro-Oeste. Decidi naquela ocasião seguir buscando autores que lá não houvessem publicado seus poemas, e fiz descobertas impressionantes, em termos de nomes, poemas e cidades. Tentei na medida do possível estabelecer um recorte de algumas dessas variantes. Aprendi muito. A existência de um Brasil escondido, vigoroso e subterrâneo.
• A poesia deve ser feita com emoção ou a emoção está proibida na poesia brasileira?
A legislação mais bela e complexa, mais cheia de regras e sem regras, mais limitada pela matéria e mais infinita pela sua combinação, mais clara e misteriosa, mais forte e mais frágil é a condição da poesia. Nada está proibido. O poema deverá justificar em seu próprio corpo, todas as suas razões. Trata-se de um universo de vastíssima mobilidade quântica. Tudo pode, mas o sistema, a trajetória, a combinação, o sentimento é que determinam se pode ou não. Os que adotam apriorismos frente ao poema, esses não deveriam ser críticos nem poetas. Existem caminhos, escolhas, horizontes. Se não se levam em conta essas variáveis, corre-se o risco de uma crítica náufraga, incerta, invertebrada…
• É fácil ou difícil ser poeta no Brasil especialmente?
Perché tu mi dici poeta?, perguntava o jovem Sérgio Corazzini. São tantos os desafios. Os dentes do Tigre e a Palavra-Cordeiro. Consciência. E abandono. Um permanente estado de não-saber. De espera. De palavra. De silêncio. O poeta deve guardar um compromisso que tende para o silêncio. Para o menos. Ainda que esse menos seja povoado, por mil ou dez mil versos, um livro ou cem mil. Mesmo assim, deve tender para o menos. Movido por uma nostalgia do mais, segue para o menos. O universo numa folha. Como Dante, em três versos, a falar de Deus. O errante infinito da poesia, que pode tudo. O verso e o universo — como já se disse algumas vezes. Os Sertões de Rosa e de Euclides — inteiros, absolutos — na vastidão de suas palavras. Ou tudo ou nada. Uma tarefa árdua. Mas, afinal de contas, perché tu mi dici, poeta?