Legendas

Do ímpeto de tentar consertar tudo antes de chamar um especialista à total falta de traquejo social para suportar gente estranha
Ilustração: Carina S. Santos
22/08/2024

Herdei de meu pai o ímpeto de simplesmente pegar e fazer as coisas. A gente só chama alguém quando não temos ou as ferramentas complexas ou o conhecimento mínimo para resolver sozinhos. E nem encontramos esse conhecimento mínimo oferecido no Youtube por alguma boa alma. Contratar um especialista é o último recurso, nunca o primeiro.

Preciso dar uma melhorada no sofá.

Compro espumas para fazer almofadas à guisa de estofado de sofá. Erro a medida, obviamente. Compro um cortador de espumas e decido fazer as correções com minhas próprias mãos. Talvez “correções” seja uma palavra forte. Fica torto, é claro. Não ligo. Funciona torto. Combina com a casa. Combina com a família. Combina comigo. Sou bem torta, na verdade. Somos.

Pessoalmente, eu culpo o meu pai. Filho de peixe, aquelas coisas. Como diz o meme, a culpa é minha e eu coloco em quem eu quiser.

Sinto falta de ter um ateliê fora de casa, mas o sofá torto é o que temos para hoje.

O casal se senta no sofá torto.

Hahaha é ela quem decide, sabe como é. Concordei. Fiz hahaha. Sorri. Respondi que sim, claro. Não sei como é. O casal, filho pequeno, filho minúsculo, de colo. Ele carrega o filho no colo. Amigo, para mim, você é um alienígena. Concordo educadamente, clientes. Sorria e acene, já me ensinaram os pinguins.

São 10 da manhã. Talvez seja um pouco demais tomar o sexto café do dia. Tomo o sexto café do dia.

Meu estômago dói.

Sou daquelas que, quando a baiana pergunta se é quente ou frio, sempre respondo quente. E, naturalmente, me arrependo na primeira mordida.

Me arrependo com uma certa frequência.

Me arrependo da/na primeira mordida com uma certa frequência.

E o casal ali, na conversa fiada, arrastada, polida, medida, rasa. Eu queria ser muito rica só para não precisar aguentar gente chata. O casal pergunta algo idiota. Respondo algo idiota.

Gostaram do que viram, consegui o freela. Vão embora satisfeitos. Eu fico, igualmente.

Mesmo dia, à noite, um paquera comemora seu aniversário em um bar da moda. Não fui. Tem gente. Interação social. Sorrisos. Apertos de mão. Olá como vai. Como você se chama. O que você faz. Como conheceu o F. Meu deus do céu. Que horror. Cruz credo. A vontade que eu tenho de inventar algo terrível: conheci o F. na cadeia. Melhor não ir mesmo. Vou morrer solteira.

Filminho e pipoca, é disso que é feito o paraíso.

Filho pede o código. Ó céus, que código. Respondo que gosto da terceiridade. Ele entende a piada e ri. Ah, o código do streaming, mãe, vai pro seu celular porque você é a titular. Contexto, filho, contexto é tudo nessa vida. É muito difícil ler o mundo sem uma legenda.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho