Fiordilatte, segunda obra escrita e desenhada por Miguel Vila, surpreende de imediato pelo design elegante e sofisticado, próximo a um roteiro de cinema. O primeiro livro do autor, Padovaland, recebeu o prêmio Cecchetto de “Artista revelação”, em 2021.
Não é difícil notar que nada neste livro existe por acaso. As imagens e os diálogos estão cheios de intenções. Num livro ilustrado, em geral, as imagens possuem diferentes status: podem ser isoladas (livros com ilustrações independentes, sem que haja uma sequência narrativa); sequenciais (imagens que pertencem a uma narrativa articulada, na qual um quadrinho é parte do todo); e associadas (entre os polos das isoladas e das sequenciais, são imagens justapostas e articuladas, nem independentes nem dependentes por completo). Nos quadrinhos é mais recorrente que a narrativa esteja apoiada em imagens sequenciais. No entanto, em Fiordilatte, o autor mescla imagens sequenciais com associadas e cria inusitados movimentos de câmera e um forte apelo artístico. Como diz o francês Benoît Peeters (romancista, roteirista e estudioso de quadrinhos), “a tensão da imagem da história em quadrinhos está entre seu desejo de autonomia e sua inserção na narrativa”. Essa mesma tensão entre autonomia e dependência é estendida também aos personagens desta história.
O design “livre”, segundo o autor, o ajudou a descrever cada cena de maneira adequada. A proporção dos quadrinhos (o letramento acompanha) varia entre tomadas de página inteira e quadradinhos bem pequenos, cerca de 2 cm ou menos, para mostrar uma única e discreta ação. O contraste de tamanho intensifica detalhes-chave da narrativa. “É como controlar o espaço e o tempo”, diz Vila. Os quadrinhos nem sempre são quadrados. Muitas vezes, são circulares. O layout, segundo Vila, teve influência de Chris Ware, autor indie dos EUA, principalmente na mistura de painéis quadrados e circulares na páginas.
Há também a inserção de brancos, seja entre os quadrinhos ou numa página inteira. Para o autor, esses espaços silenciosos têm a função de remodelar o layout para que a leitura flua melhor com os elementos geometricamente harmonizados.
O caráter voyeurístico da obra, desde a capa, traz uma tensão, algo prestes a cair, seja um sutiã, uma vida a dois (ou a três) ou um tempo presente. A tensão se potencializa pelo resultado de mensagens opostas: uma paleta de cor suave em rosa e bege sugere um mundo quase cor-de-rosa, em oposição à aparência um tanto grotesca da personagem em plano americano, seminua, com olhar sinistro e traços não muito agradáveis. Logo na primeiríssima página do livro, antes mesmo do frontispício, reconhecemos a personagem da capa — agora mais jovem — unicamente por sua verruga no queixo. Somos surpreendidos por uma breve cena de sexo entre ela e um outro, que não aparece. A cena se encontra fora de contexto, dando a sensação de um lapso, uma lembrança fora do lugar. Só então nos deparamos com a página de rosto, o ponto de partida de uma história. Os outros dois protagonistas dão início à narrativa: o casal Marco e Stella. Fiel ao jogo de opostos, Stella é atrevida, briguenta e provocativa, enquanto Marco usa panos quentes para evitar brigas e discussões. Esse ponto de tensão entre eles aumenta na medida em que ele se mostra inerte às provocações (também sexuais) da parceira. Estamos diante das forças do desejo e da brochada.
As cenas são carregadas de humor, ora sutil, ora debochado, que nos aproximam dos personagens, ainda que, logo adiante, possamos sentir repulsa por eles, por suas ambiguidades, contradições e obsessões eróticas.
A escolha das cores — uma paleta suave, dessaturada — é um sinalizador do tempo. A narrativa incorpora momentos simultâneos do presente com lembranças do passado. A história em tempo linear do presente — colorida — é entrecortada por flashbacks monocromáticos. Segundo o autor, a paleta de cor, que imita a estética real da periferia veneziana com as fachadas dos prédios em tons pastéis, destaca uma “sensibilidade visual” em cada elemento da história, com a qual o leitor saboreia desde os doces até o seio de uma mulher.
Outro recurso interessante é o contraste entre aproximação e distanciamento das cenas. Como num filme, cenas aéreas e supercloses compartilham o espaço das páginas duplas, intensificando ambas as tomadas.
O narrador onisciente nos revela facetas dos personagens que são ignoradas entre eles. O autor põe em xeque os desejos, as aparências e joga luz (ou holofote) nos cantos mais escuros e escondidos de todos em cena. Ao leitor, resta ser cúmplice de todas as contradições que existem ali.
Pelos diálogos também se constrói o personagem. A ausência de vocabulário de Ludovica, a Lulu, personagem da capa, vai de encontro à sua falta de autoestima, de higiene e de escrúpulo. Aos olhos de Stella, Lulu “parece um elfo com duas tetonas caídas”. Em meio a desejos obscuros, o julgamento de um é o desejo do outro.
Aqui um parêntese: enquanto pensava sobre Fiordilatte, fui tomada pela sensação de voyerismo e procurei o autor nas redes sociais. Depois de nos seguirmos mutuamente, tomei a liberdade de lhe enviar uma mensagem no particular sobre a escrita dessa resenha e mais três perguntas. Ele, muito solícito, respondeu e agora finalizo o texto com a nossa breve conversa:
• Como surgiu a ideia para Fiordilatte?
O livro nasceu de maneira acidental. Inventei a personagem da Lulu para o Instagram. Desenhei, sem motivo, a personagem borrifando leite materno em uma xícara de café. Pensei que seria apenas uma arte engraçada e grosseira, no entanto, a personagem me inspirou para criar a história. Estava tão convencido de que daria um livro que propus à minha editora logo após meu projeto anterior, Padovaland. A história se passa em uma cidade fictícia no nordeste da Itália. Os novos subúrbios lá embaixo parecem muito kitsch e têm cores pastéis, assim como nas páginas de Fiordilatte. Além disso, o livro em si é uma jornada “sensível”: seja sobre degustação de sorvetes ou de carne humana. Aquelas cores rosadas pareciam perfeitas para representar o mundo em que a história se passa.
• Conte-nos um pouco sobre a construção de seus personagens, suas ambivalências e suas obsessões eróticas.
As pessoas dizem que meus personagens são pura maldade e nojentos, como se não tivessem nada a ver com eles. No entanto, para mim, eles são realmente pessoas normais, com suas fraquezas e desejos sexuais estranhos. Talvez eles simplesmente não sejam como esperamos vê-los. Além disso, é mais interessante trabalhar com um personagem que não pode ser definido como “bom” ou “mal”, pois enriquece a história em múltiplos cenários.”
• Percebi uma linguagem cinematográfica na sua narrativa, na forma como você fez os enquadramentos e os movimentos das cenas. Os filmes são uma influência para você? Existem outras?
Claro, acho que o cinema é a fonte de inspiração mais eficaz para a arte em quadrinhos. Ambas as mídias compartilham, por exemplo, a edição dos planos (que podem ser os próprios painéis), os gestos dos personagens, os silêncios nas entrelinhas etc. Esses detalhes técnicos podem parecer simples, mas são essenciais para que os iniciantes entendam o quão figurativo funciona a narração de histórias. Acima de tudo, o que sempre sugiro é que se inspirar na arte em quadrinhos nunca será suficiente para fazer a própria arte em quadrinhos. É preciso encontrar inspiração em outros lugares como a pintura, a literatura, a fotografia e, claro, o cinema.
Fiordilatte e Vidas passadas
Já que Miguel Vila tem o cinema como grande inspiração, ressalto uma das semelhanças entre Fiordilatte e Vidas passadas, dirigido por Celine Song (2023). No filme algumas cenas nas quais é retratado o reencontro de um casal (um amor de infância), a câmera isola cada personagem no espaço da tela ao invés de filmar os dois juntos, dando a sensação de que se trata muito mais de um mergulho individual em cada um do que da própria relação entre eles. O mesmo acontece na cena de sexo com Ludovica na primeiríssima página do livro. No entanto, Vila mergulha ainda mais fundo. Não parece estar em busca de um amor adolescente, mas de um amor (ou desamor) primeiro: o da mãe. E o do pai.