Dois recentes lançamentos dissertam sobre a história e o papel das bibliotecas na sociedade. Frutos de trabalhos com origem similar, mas não idêntica, A biblioteca à noite, do argentino Alberto Manguel, e A conturbada história das bibliotecas, de Matthew Battles, podem parecer livros para iniciados em biblioteconomia, posto que ambos têm como objeto central a discussão acerca das bibliotecas. Contudo, se os interessados se deixarem levar nas páginas dos volumes poderão notar que a relação estabelecida, antes de ser tecnocrata, é passional, pois a paixão do ensaísta argentino e a do bibliotecário norte-americano são os livros e a leitura.
Alberto Manguel, de certa maneira, é um autor conhecido entre os leitores brasileiros. Nos últimos anos, a mesma Companhia das Letras que agora edita seu novo livro já publicara, entre outros, Uma história da leitura, O amante detalhista e Os livros e os dias. A despeito de uma variação aqui e ali, uma análise geral de suas obras mostra que, para ele, o livro é um verdadeiro objeto de desejo. Nesse sentido, como fiel discípulo de Jorge Luis Borges, não restam dúvidas ao longo de seu texto que sua opinião acerca das bibliotecas é que elas são templos sagrados não tanto pela idade que têm ou pelo status junto à sociedade que pertence. De acordo com Manguel, as bibliotecas são lugares especiais porque abrigam livros, que, por si só, são objetos peculiares (o grifo e o termo são deste resenhista).
Que não se engane o leitor desta resenha, no entanto. Manguel não cultua os livros porque eles trazem as respostas para uma vida melhor, como querem os manuais de auto-ajuda, ou porque sugerem que seus donos são dignos de um status elevado porque “têm cultura”. O autor ressalta — isto, sim — a importância dos livros porque, se suas histórias não podem mudar o mundo em que vivemos, sua presença é capaz de moldar o desenvolvimento de uma civilização, uma vez que a importância da educação e do aprimoramento intelectual está sempre relacionada às bibliotecas. Tais conclusões não são expressas de maneira tão simples. Manguel investiga os elementos que compõem uma biblioteca e, a partir disso, tece uma instigante crônica histórica, pontuando esse relato com a experiência de construção de sua própria biblioteca. Desse modo, o escritor trata desde questões relacionadas à organização dos títulos (com a explicação das razões para o uso do sistema de Dewey, aquele que provavelmente você usa para consultar livros na biblioteca mais próxima) até temas mais abstratos, como a permanência da leitura durante a Segunda Guerra Mundial (comentando de que maneira a literatura manteve o senso de resistência dos judeus nos campos de concentração), tratando, ainda, da forma das principais bibliotecas pelo mundo (destaque, aqui, para o relato a respeito da biblioteca projetada por Michelangelo na Itália).
A esses relatos o autor traz, também, alusões e lembranças de suas leituras favoritas e correlatas, como Henry James, Miguel de Cervantes, Jorge Luis Borges, Robert Musil e tantos outros (de suma importância, a propósito, as notas ao fim do texto, com comentários explicativos). Em uma dessas referências, logo no início do livro, Manguel expressa sua opinião acerca da internet como catalisador da esperança dos que aguardam por uma biblioteca de Alexandria Digital. Nas suas palavras:
A web e sua promessa de voz e espaço para todos é o nosso equivalente para o mar desconhecido que seduzia os navegantes antigos com a tentação da descoberta (…) Como mar, a web é volátil: 70% de seus conteúdos duram menos de quatro meses. Sua virtude (sua virtualidade) produz um presente constante — o que para os pensadores medievais [Santo Agostinho] era uma das definições do inferno.
Ao contrário do que se possa imaginar, Manguel não desanca a web por preconceito. O que ele rechaça com veemência é a tentativa de transformar em virtualidade algo que é por natureza manual e, como dizem alguns, analógico.
A Biblioteca à noite, entretanto, não se destaca pelas opiniões polêmicas de um casmurro avesso à tecnologia. Antes, o que aparece é a eterna afeição de Alberto Manguel pelos livros e por sua recém formada biblioteca. Com isso, à medida que o livro avança, o leitor tem a sensível impressão de que a coleção do ensaísta esteve condicionada às suas viagens e às suas pesquisas das principais bibliotecas e casas de cultura de todo mundo. Essa experiência, todavia, é contada de forma elegante e única, dada a formação intelectual de Manguel e o seu papel como pensador da cultura e da literatura. Nesse itinerário, o leitor é convidado especial, uma vez que o texto prima pela fluência e, sobretudo, pela coesão entre um capítulo e outro, algo um tanto complexo se se considerar que a obra não pertence ao gênero de ficção. Ainda assim, não só pelas já citadas referências, mas também pelo estilo literário A Biblioteca à noite é um convite aos prazeres desconhecidos da leitura e dos livros.
Trajetória das bibliotecas
Ao contrário de Manguel, o bibliotecário Matthew Battles, muito embora seja colaborador de importantes veículos de cultura nos Estados Unidos — como a revista Harper’s Bazar — não é conhecido do público brasileiro. Tampouco tem outras obras publicadas acerca do tema da leitura ou do universo dos livros. Com efeito, é sua atividade como bibliotecário de um importante acervo, o da Universidade de Harvard, que o gabarita a realizar um interessante relato sobre a trajetória das bibliotecas em A conturbada história das bibliotecas. Nesse sentido, em vez de tecer uma narrativa sentimental sobre o prazer proporcionado pelas bibliotecas, Battles prefere se aprofundar na relação existente entre as bibliotecas e a sociedade. Mas, em muitos momentos, o relato do bibliotecário se aproxima do texto de Manguel, posto que algumas histórias se repetem, como na citação a Jorge Luis Borges e também à biblioteca de Alexandria. Essas “repetições”, numa análise comparada, dizem mais do está sugerido.
Battles faz um recorte não-literário da história das bibliotecas e, assim, preenche o livro não somente com as citações literárias, mas principalmente com dados pontuais. A análise comparada, aqui, feita por qualquer leitor, há de mostrar que a razão por essa escrita, digamos, mais factual se deve ao estilo conciso e objetivo de Battles. Desse modo, mesmo quando as divagações aparecem, elas são menos extensas e logo voltam para o relato em ordem cronológica, indicando que, antes do escritor, está o bibliotecário, cioso de organização e de método mesmo para relatar uma história dos livros. Exemplo cristalino: em Manguel, sempre que mencionados, os escritores “conversam” entre si sobre literatura, idéias, política até, e não apenas sobre livros e bibliotecas. Para falar da visão de Daniel Defoe como leitor, o argentino busca um trecho de Robinson Crusoé em que o personagem seleciona livros para uma ilha. Já Battles encontra uma referência mais objetiva da obra de William Shakespeare, quando Lavínia, da peça Tito Andrônico, é levada à biblioteca para distrair seu sofrimento.
Uma outra passagem que ilustra a variação sobre o mesmo tema versa exatamente acerca do papel centralizador das bibliotecas. Battles observa que a centralização estava ligada à concentração de poder, interessante tanto para intelectuais como para os governantes, concluindo, assim, que o destino dos livros sempre ficava comprometido — o que explica, por exemplo, o fato de apenas as coleções particulares terem resistido à ira dos fanáticos e dos bárbaros no passado. Em que pese essa visão um tanto crua, Manguel enxerga uma luz, assinalando que, para além da vaidade, poder entrar num local em que os livros parecem inumeráveis, todos à sua disposição, por si só, é uma alegria. É esse sentimento, aliás, que parece mover tanto Alberto Manguel como Matthew Battles. Seja em uma coleção privada, seja em um acervo público, o que ambos os autores ressaltam é a importância dos livros para os homens e como a sociedade ainda se vê influenciada pelo livro, esse fantástico objeto de desejo.