Você vai começar uma resenha sobre o novo livro de Italo Calvino, Eremita em Paris — Páginas autobiográficas. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo à sua volta se dissolva no indefinido… Parodiando as primeiras linhas de Se um viajante numa noite de inverno, a partir da tradução de Nilson Moulin, o resenhista pega o leitor do Rascunho pela mão e o leva ao encontro do Eremita em Paris, um apanhado de diversos textos de Calvino, que, assim como Se um viajante…, pode ser visto como uma série de começos interrompidos. O leitor de Se um viajante… frustra-se ao procurar um romance e encontrar vários inícios de histórias inacabadas. O leitor que for atrás de uma biografia tradicional de Italo Calvino também não vai encontrá-la neste romance, mas sim diversos textos mais ou menos concluídos que apontam para vários destinos, de diferentes momentos da vida do autor, que se cruzam nestes relatos, entrevistas e fragmentos. Relatos que se completam e entrelaçam com os textos igualmente autobiográficos do também inacabado O caminho de San Giovanni, publicado pela Companhia das Letras, em 2000.
Em nome da coerência, os textos foram organizados em ordem cronológica pela viúva de Calvino, Esther Calvino, mas não será por isso que contam uma história concatenada. Fatos, pessoas e mesmo impressões repetem-se ao longo das narrativas. Apenas ao final da leitura, conseguimos ter um panorama ordenado da história e da personalidade de Calvino, com detalhes de sua infância até a maturidade, com ênfase em sua formação, relacionamento com os pais, buscas políticas até o definitivo e duradouro encontro com a literatura e a consciência de ser um escritor. Do ponto de vista biográfico, o objetivo é alcançado. Há espaço para a história de alguns de seus livros, e um bom número de páginas diversas de reflexão sobre seu percurso político, explicando a aproximação e depois o afastamento do comunismo, seu posicionamento diante do fascismo, sua atuação como partigiano, a milícia italiana de resistência ao nazifascismo, e seu crescente recolhimento até tornar-se um eremita em Paris, ao lado da esposa e filha.
A tradutora Roberta Barni meio que pede desculpas por um estilo não de todo Calvino nesses textos, não por culpa da tradução, mas do próprio autor. Ela alerta que “o registro das impressões, as abreviações e a pontuação poderão causar estranheza”, mas que isso se deu também com os leitores do original. A justificativa para uma escrita com alguns tropeços seria o caráter momentâneo, fotográfico, dos relatos. No entanto, a tradutora não precisa se desculpar. Em diversas passagens dos textos, inclusive do diário da viagem aos Estados Unidos, reencontramos o Calvino de O barão nas árvores, O visconde partido ao meio, O cavaleiro inexistente, As cosmicômicas ou As cidades invisíveis. Uma frase ou trechos inteiros remetem-nos à sua prosa breve e precisa, coerente com os preceitos descritos em suas Seis propostas para o próximo milênio: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade. No entanto, as propostas para uma literatura do novo milênio são a essência da própria literatura de Calvino. No texto Por trás do sucesso, de 1984, ano anterior às conferências incluídas em Seis propostas, Calvino diz:
Agora que tenho sessenta anos, já compreendi que a tarefa do escritor reside apenas em fazer o que sabe fazer: no caso do narrador, isso reside no narrar, no representar, no inventar. Há muitos anos parei de estabelecer preceitos sobre como se deveria escrever: de que adianta pregar certo tipo de literatura ou outro, se depois as coisas que se tem vontade de escrever são talvez totalmente diferentes? Levei algum tempo para entender que as intenções não contam, conta o que alguém realiza.
Pode parecer contraditório alguém falar em propostas para uma literatura da posteridade e ao mesmo tempo dizer que deixou de estabelecer preceitos sobre como se deveria escrever. No entanto, no texto de abertura das seis propostas, ele também diz “querer dedicar as conferências a alguns valores ou qualidades ou especificidades da literatura que me são particularmente caros, buscando situá-los na perspectiva do novo milênio”. Portanto, os valores podem ser entendidos não necessariamente como preceitos de escrita, mas como chaves de leitura da obra do próprio Calvino. E estão todos presentes nestas páginas autobiográficas, que não escapam nem mesmo de seu tom fabulístico, como na descrição do oceano Pacífico:
Sob a superfície da água e na margem é nem areia nem rocha: é um poroso e respirante aglomerado de organismos marinhos. O solo marinho é vivo: pavimentado de moluscos abertos como olhos que se contraem e se dilatam a cada onda.
Esse oceano Pacífico com olhos poderia estar no caminho de um de seus fantásticos personagens, aos pés de Cosme, o barão-tarzã, ou no caminho do cavaleiro oco, Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura. As descrições de Calvino, com destaque para as impressões de viagem em seu périplo pelos Estados Unidos, são de uma claridade, por assim dizer, mediterrânea. Sua visita às instalações da IBM, por exemplo, é um conto acabado, ainda que não passe de uma descrição absolutamente objetiva, incluindo aí suas impressões subjetivas:
Muitas caixas de doces em todas as bancadas e trabalho; é Natal. No meio dos cérebros eletrônicos decorações e dizeres natalinos; aos operários da técnica mais avançada do mundo os alto-falantes transmitem christmas carols oferecidas pela direção da IBM.
Os seis meses que Calvino passa nos Estados Unidos, com uma bolsa da Fundação Ford, constituem o trecho mais longo do livro. As grandes corporações, a bolsa de valores, enfim, o capitalismo em sua plenitude é algo que o fascina, e os Estados Unidos são percebidos como o Aleph, o início e o fim da economia mundial. “O tédio da viagem foi amplamente compensado pela emoção da chegada a Nova York, a visão mais espetacular que nos é dada nesta terra. Os arranha-céus despontam cinzentos no céu que mal clareou, e parecem ruínas enormes de uma monstruosa Nova York abandonada daqui a mil anos.” A visão apocalíptica de Nova York, num texto de 1959, posteriormente transformada em lugar-comum pelo cinema, e parcialmente concretizada em 11 de setembro de 2001, revela-se a Calvino em sua chegada aos EUA. O intelectual italiano e ex-comunista, então com 36 anos, está em busca da “verdadeira América”, um mundo de criação e destruição simultâneas.
No entanto, é em Paris que Calvino escolhe morar em sua maturidade, onde casa e cria uma filha. No texto Eremita em Paris, de 1974, ele explica que, como escritor, parte de seu trabalho pode ser feita em solidão, numa casa isolada no meio do campo ou numa ilha e essa casa ele a tem “bem no meio de Paris”. Trata-se da velha e conhecida necessidade de distanciamento de que falam alguns escritores. Com isso, Calvino declara que não poderia viver na Liguria ou em Turim, para escrever. Boa parte de suas histórias se passa na Riviera, onde viveu a infância, “É que se narra bem daquilo que deixamos para trás, que representa algo concluído (e depois descobrimos que não está nada concluído)”. Mas que prefere estar longe da infância para escrever, mesmo levando-a por todas as cidades por aonde anda, visíveis ou invisíveis.
O caminho percorrido por Calvino é um lento e gradual assumir-se escritor, afastando-se de uma realidade que ele desiste de transformar pela ação e mergulhando cada vez mais na condição de escritor. Em 1941, matriculou-se na faculdade de Agronomia, escondendo as “veleidades literárias até dos melhores amigos, quase até de mim mesmo”. Durante a guerra, participou ativamente da resistência italiana, lutando com os partigiani, perdendo vários amigos na guerra. Depois, filiou-se ao PCI, onde atuou por cerca de dez anos, visitando fábricas, escrevendo para órgãos do Partido e militando ativamente. Nesta época, mudou-se de San Remo, na Riviera italiana, para Turim, onde começou a trabalhar na editora Einaudi, e iniciou sua convivência com Cesare Pavese, escritor e editor cuja influência foi decisiva para que Calvino enveredasse definitivamente pela literatura. Pavese, igualmente militante do PC e colaborador do jornal do partido, foi o primeiro leitor de diversos de seus contos. Para se livrar do assédio de Calvino, diz ao jovem que ocupe seu tempo escrevendo um romance. O conselho é seguido e o romance A trilha dos ninhos de aranha, inspirado nos anos de resistência ao nazifascismo, é escrito às pressas para ser incluído num concurso. Apesar de não entrar na lista dos vencedores, o romance é encaminhado por Pavese para Giulio Einaudi, que se entusiasma com o livro, chegando a divulgá-lo com cartazes e fotos de Calvino, um procedimento tão inédito na época quanto o próprio autor. Calvino considera-se afortunado com a recepção de seu trabalho, o livro de estréia vende seis mil exemplares, um best-seller para um estreante. Quatro anos se passaram até um novo romance, O visconde partido ao meio, com o qual ele mesmo se reconhece como um autor voltado para a narrativa fantástica. Em 1957, publica O barão nas árvores, e o espaço de dez anos com publicações relativamente regulares é o “tempo necessário (…) para saber se de algum modo existimos como autor”.
O longo percurso de Calvino até a constatação de que ele de fato era um escritor está no texto Por trás do sucesso. Nele, Calvino fala em uma entrevista dos muitos meandros que percorreu até confirmar-se escritor. O ingresso na faculdade de Agronomia, sob inspiração das atividades profissionais dos pais, a mudança para Letras, pouco freqüentada, a guerra e a participação como partigiano e mesmo a atuação editorial, vista como uma “separação protetora”, pois, apesar de mantê-lo em contato com a literatura, era com a literatura dos outros representam toda uma busca por uma “profissão prática”, que mantivesse a vocação devidamente domada e, de certa maneira, subjugada. No entanto, ele reconhece o inevitável. Sobre seu primeiro passo rumo a uma profissão, a de agrônomo, ele diz:
Essa tentativa de me conectar a uma tradição familiar não deu certo, mas a idéia, no fundo, não era uma idéia errada: se tivesse sido capaz de manter a fé em meu propósito de ter uma profissão prática e de escrever à margem de uma experiência de vida, a certa altura teria me tornado um escritor do mesmo jeito, mas com algo mais.
Algo mais, Calvino? Que algo mais seria esse? Será que o conhecimento da agronomia faria alguma diferença em seus livros? A atuação como partigiano ou militante do partido comunista terá tido uma influência decisiva nos rumos de sua ficção? Como ele mesmo parece dizer, independentemente dos rumos que sua vida tivesse seguido, a literatura, em algum momento, teria tomado as rédeas. E numa mente de fabulista como a sua, dificilmente a genética do trigo ou o credo comunista seriam elementos fundamentais.
Como no começo de Se um viajante numa noite de inverno, para ler Calvino o melhor a fazer é relaxar e deixar que o mundo à nossa volta se dissolva no indefinido. Conhecer sua biografia em nada altera essa percepção. Pois, como ele afirma “os escritores perdem muito quando vistos em pessoa. (…) Hoje porém, quanto mais a figura do autor invade o campo, tanto mais o mundo representado se esvazia; em seguida o autor também se esvazia, resta o vazio por todos os lados”. Assim ele justifica sua condição de “eremita” de seus últimos anos. Um escritor inexistente de uma obra real que torna real um escritor que se quer inexistente, como o seu cavaleiro Agilulfo.