É a política, estúpidos

Livros de Florestan Fernandes e Raymundo Faoro discutem a importância das decisões políticas na vida de todos nós
Raymundo Faoro, autor de “A República inacabada”
01/11/2007

Em entrevista concedida ao programa Roda Viva, a escritora e ensaísta argentina Beatriz Sarlo, aparentemente, não pareceu lá muito otimista. A impressão não é deste resenhista, mas do apresentador da atração, o jornalista Paulo Markun. Na última pergunta dirigida à entrevistada, Markun tomou como base a primeira frase deste artigo e indagou se Sarlo ainda acreditava em alguma coisa. A escritora, de pronto, respondeu, com a mesma altivez e serenidade de todo o programa: “Acredito na política”. Uma sentença como essa, de fato, surpreende não somente pelo tom direto, curto, seco, mas principalmente porque reflete uma questão também que parece ser marginal. É a política, afinal de contas, que move o mundo, e não o dinheiro, ainda que este possa turvar a visão desta ou daquela vertente. Nesse sentido, a resposta de Beatriz Sarlo concorda com a tese central de dois livros recentemente relançados pela Globo: A República inacabada, de Raymundo Faoro (coletânea de três obras: Existe um pensamento político brasileiro?; Assembléia Constituinte: a legitimidade resgatada; e Sérgio Buarque de Holanda: analista das instituições brasileiras); e Que tipo de República?, de Florestan Fernandes. As duas obras, ainda que estabeleçam um diálogo entre si, contam com abordagens distintas sobre o mesmo tema, conforme se verá a seguir.

Antes, o prefácio. Para além do título, há outra similitude e, por que não dizer?, coincidência nos dois livros. Nos dois casos, o prefácio foi assinado pelo professor Fabio Konder Comparato. A propósito, a despeito de Comparato ser um scholar, o texto introdutório não possui nem os vícios da linguagem muito menos a vaidade intelectual que seria natural a um autor com as mesmas referências. O que se lê, nesse sentido, é um texto claro que tão somente apresenta de maneira brilhante e fundamental as obras em questão, situando-as no tocante à sua importância para o debate de idéias no Brasil, bem como apontando os elementos-chaves para a compreensão dos textos. De Raymundo Faoro, como sempre é lembrado pelo jornalista Mino Carta em sua CartaCapital, Comparato ressalta a análise da República como forma de manutenção de poder de uma certa elite (que, muitas vezes, confunde-se com a tropa de choque…). Sobre Florestan Fernandes, o professor salienta a discussão acerca da hegemonia do capitalismo como forma nefasta para uma sociedade justa e igualitária. Isso pode parecer um tanto óbvio hoje, no momento da fluidez dos discursos, mas à época tal percepção não era tão simplória como no presente.

O fato de a introdução dos livros ter sido elaborada pela mesma pessoa não esconde as diferenças que são apontadas pelo próprio Konder Comparato. Em outras palavras, a abordagem de Raymundo Faoro se difere daquela de Florestan Fernandes. Autor do já célebre Os donos do poder, Faoro reflete sobre o conceito de República à brasileira de uma forma sobejamente acadêmica. Articula, assim, conceitos, contrapõe autores, analisa as propostas, remetendo quase sempre à História do Brasil para mostrar as raízes do pensamento político brasileiro. Aliás, este é o gancho para o primeiro texto do livro Existe um pensamento político brasileiro?. Para responder à questão, Faoro, num primeiro momento, explica por que e de que forma o pensamento político está muitas vezes na contramão da filosofia política. Na avaliação de Faoro, caso o pensamento político estivesse reduzido à filosofia política, toda a historia converter-se-ia na história das idéias. O curioso nessa avaliação é que pensamento e filosofia política, na terminologia do senso comum, são a mesma coisa. Faoro, contudo, explica de maneira fundamental que há diferenças claras entre um e outro.

Dessa forma, prossegue, a natureza do pensamento político brasileiro estaria contaminada na sua origem: o pensamento político português e sua modernização conservadora, cujo auge foi durante a gestão de Pombal como primeiro ministro de Portugal. Para Faoro, o despotismo esclarecido pouco ou nada adiantou na construção de uma elite nacional, um segmento que, de fato, estabeleceria um projeto nacional de acordo com os interesses da sociedade, e não somente dos interesses de uma elite. Nesse ponto, é possível estabelecer um diálogo entre autores, uma vez que o historiador José de Murilo de Carvalho examina a formação dessa elite no livro A construção da ordem. Os dois livros tocam em um ponto central: em momento algum o pensamento político dessa elite esteve associado ao desenvolvimento do país. Prova disso é que mesmo quando da implantação do liberalismo no Brasil essa ideologia veio maculada por uma adaptação malfeita. E o resultado é visível tanto no plano das idéias (na filosofia política brasileira) quanto no pensamento político do Brasil. No ensaio As idéias fora do lugar, de Roberto Schwarz, encontra-se uma tradução notável desse fenômeno. Um liberalismo, para ficar no sintoma mais escancarado, que aceitava trabalho escravo.

Política como combate
Se a postura de Faoro era declaradamente acadêmica, a proposta de Florestan Fernandes era mais objetiva. Em síntese, o livro Que tipo de República? é uma coletânea de textos publicados na Folha de S. Paulo em meados da década de 80, quando o tema da redemocratização do País não só estava em pauta como também era parte da agenda de todos aqueles que desejavam participar mais avidamente do processo. O cenário, com base no que se lê nos artigos, era outro. Os tempos, também. Nesse sentido, em vez de Renan Calheiros, CPIs, Rolex, escândalos, havia uma discussão mais acalorada em torno dos pontos cruciais que demarcariam o território da participação democrática, da Constituição, das políticas sociais, do papel das esquerdas. Nas Tendências e Debates, seção da Folha onde os textos foram originalmente publicados, Florestan Fernandes ancorava-se em uma trincheira, disparando seus petardos teóricos à esquerda, à direita e, claro, às elites. A estas, cabe uma menção no texto que dá origem ao título da coletânea, como o que segue: “No Brasil, nunca existiu uma República — e nunca existirá alguma, que mereça o nome, enquanto as ‘classes dirigentes’ ficarem tão rentes a essa barbárie que se rotula civilização e toma ares de ‘democracia à brasileira’”.

Chama a atenção, ainda, o fato de o autor ser tão obsessivo que, a certa altura, mesmo o leitor afeito à política começa a notar uma espécie de retorno contínuo aos temas da política nacional. Curiosamente, é essa obsessão que torna o livro um escrito atual. Pois é o período em que se questiona a importância da política careta, como querem alguns veículos “jovens”. A esse questionamento, Florestan responde que a política pode ser a melhor forma de combate contra as desigualdades sociais, contra a fome e, sim, contra a pobreza. O atual vencedor do Prêmio Nobel da Paz foi um político, o quase presidente dos Estados Unidos — Al Gore — não porque este pertencia a uma ONG, mas, sim, porque transformou a causa ambientalista, algo antes direcionados a acadêmicos e a “ecochatos”, em um debate político, para o bem e para o mal. A propósito, mesmo o sucesso de todos os sucessos de 2007 do ponto de vista cinematográfico, o filme Tropa de elite¸ só teve tamanha repercussão porque, mesmo que marginalmente (e o trocadilho aqui não é proposital), alcançou o espaço público da imprensa e da internet, como se fosse uma questão de ordem estritamente política antes de ser estética. À sua maneira, retomando a obra de Florestan Fernandes, Que tipo de República? revisita os temas de sua época, porém de uma forma conceitual. Assim, não fosse pelas datas ao pé da página, os leitores poderiam imaginar este ser um livro lançado originalmente agora.

E, com efeito, as duas obras são reedições. Um alento, justiça seja feita. A não ser por um ou outro blog, uma ou outra coluna dos jornais, a cobertura política seria, toda ela, pautada pela sociedade do espetáculo; pela forma em vez do conteúdo. Certamente, os tempos e os costumes são outros. Ainda assim, a importância da política e das políticas públicas (politics e policy, respectivamente) é cada vez mais perceptível, até mesmo porque essa discussão não se restringe ao debate entre direita e esquerda.

A República inacabada
Raymundo Faoro
Globo
292 págs.
Que tipo de República?
Florestan Fernandes
Globo
308 págs.
Raymundo Faoro (1925-2003)
Jurista e historiador. Eleito para a Academia Brasileira de Letras, é autor, entre outros, de Os Donos do Poder e A Pirâmide e o Trapézio.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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