Tributo a Ciça

Integrante do icônico grupo Rumo, Ciça Tuccori tinha os modos comedidos, o sorriso tênue, a mirada sempre a procurar o chão
Ilustração: Eduardo Mussi
24/01/2024

Estamos falando do bairro do Sumarezinho, zona oeste de São Paulo, ali pelos anos 1970. Nossa rua, comprida como uma fila de supermercado em dia de pagamento, desembocava na Heitor Penteado, perto de onde hoje há uma estação do metrô.

Residíamos num sobrado geminado a outros idênticos ao nosso. Foi ali que fiz meus primeiros amigos do peito: Luiz, Ronaldo, Waldir e Oswaldinho. Andávamos de carrinho de rolimã, jogávamos futebol de rua, pingue-pongue, bolinha de gude. E, aos sábados, frequentávamos os bailinhos de garagem ao som de Monkees, Credence Cleawater Revival e Cat Stevens.

Minha maior intimidade era com Luiz. Vizinho mais fronteiriço, cuja mãe, dona Guiomar, me tratava como um filho postiço. Preparava comidinhas, de caso pensado, sabendo que eu as apreciaria. Como boa descendente de italianos, berrava da varanda, contígua à minha:

Carlinho, vem che fiz capeletti! Ma vem logo, figlio, che si no isfria!

No quesito admiração, meu preferido era, de longe, Ronaldo. Sonhava ser como ele. Talvez porque fosse meio um antípoda meu. Sempre fui caótico, desorganizado, de temperamento instável. Já o companheiro era apolíneo, de cultura muito acima da média para a idade, e sempre arauto de novidades interessantíssimas. Uma de suas muitas habilidades era o desenho, coisa que, até hoje, sou um zero à esquerda.

Naquela época, gostávamos de inventar tipologias para ilustrar as garatujas feitas nos cadernos escolares. Ronaldo criou uma letra gordinha, bem semelhante à da capa do álbum Cheap Thrills, de Janis Joplin, que passei a imitar descaradamente.

O fato mais notável, contudo, a respeito do meu modelo de comportamento era ele ser irmão de Ciça Tuccori. Mais velha do que nós, a recordo claramente em minha primeira comunhão, comemorada em nosso sobrado com chocolate quente e acepipes.

Ciça assomou em trajes invernais, saia e pelerine escuras de lã, botas altas de camurça. Os cabelos longos e cintilantes sobre os ombros, a pele muito alva.

Era de pouco falar a Ciça, talvez porque não ia perder tempo parlamentando com fedelhos como eu. Ou quem sabe era acanhamento. Nunca descobri o enigma. Porém, sem maiores razões, a admirava à distância. Só nos tocamos uma única vez, dançando The poor side of town, de Johnny Rivers, num daqueles bailinhos. Apresentei-lhe a vassoura e seria indelicado me negar a vez.

Corte abrupto para meados dos anos 1980. Eu já era componente do grupo Língua de Trapo e fui assistir a um show do Rumo. O conjunto era o talk of the town. O jornalista Maurício Kubrusly, em seu programa Sr. Sucesso, na rádio Excelsior, vivia tecendo loas à inventividade dos músicos. E quem estava lá no palco executando piano e xilofone? Ninguém menos do que a mana mais velha do Ronaldo. Os mesmos modos comedidos de antes, o sorriso tênue, a mirada sempre procurando o chão. Mas como tocava a Ciça, santo Deus!

Para manter a tradição, no final do espetáculo, não consegui me dirigir a ela. Saí do teatro assobiando uma melodia a esmo, pensando na rua Engenheiro Francisco Azevedo. Mais tarde, como sempre, me juntei a colegas num botequim. E tudo se desvaneceu feito a sua participação no Rumo.

Ciça Tuccori se foi há 20 anos. Mas nunca se foi o meu maravilhamento ao descobrir que um pedacinho da vanguarda paulistana tinha sido minha vizinha de porta.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

Rascunho