Enfim uma boa notícia: a jubarte está a salvo. Já esteve na iminência de desaparecer. Mas por enquanto a extinção é coisa do passado. Fico feliz pelas 11.418 jubartes que visitam o litoral brasileiro. Já foram cerca de trinta mil. Nunca vi uma baleia. Somente na televisão, geralmente encalhada, agonizando em alguma praia. O povo amontoado em volta, formando na areia uma mancha escura e movediça. Uma baleia encalhada é o perfeito retrato do desespero. Minha mãe também nunca viu uma baleia. Foi pouquíssimas vezes à praia. Nunca usou maiô. Biquíni, escândalo impensável. No máximo bermuda até os joelhos e camiseta branca. Sempre teve muita vergonha do corpo. Não era uma mulher bonita, tampouco feia. Era daquelas que poucos notavam, quase invisível. Os pedreiros não assoviavam ou desferiam elogios em palavras grosseiras quando ela passava diante da obra. Agora, está feiíssima. Encalhada numa cama improvisada na cozinha à espera de uma maré que jamais subirá novamente.
Uma jubarte chega a pesar quarenta toneladas. E mede até dezesseis metros. Um monstrengo bonito a cabecear mar afora. A caça de baleias está proibida no Brasil desde 1966. Coisa dos militares. Podia-se caçar gente; baleia, não. As jubartes são excelentes nadadoras. Viajam anualmente quase cinco mil quilômetros até a Antártida, onde permanecem a maior parte do ano, para se alimentar de krill — um minúsculo crustáceo. No inverno, tomam o caminho do Brasil para acasalar e dar à luz. Até mesmo uma jubarte considera a costa brasileira muito propícia ao turismo sexual. A ONG Instituto Baleia Jubarte não concorda. Está apenas preocupada (e muito) com a proliferação das baleias. Baleia é um bicho muito importante. Melville que o diga.
Minha mãe pesa hoje cerca de quarenta quilos. Não sabe nadar. É uma baleia fracassada: esquelética e náufraga sem nunca ter se aventurado pelos mares. Anda alguns passinhos durante todo o dia. O chinelo arrasta no piso frio de azulejo. Aos poucos, transformou-se numa lesma. Mas seu corpo está tão seco que não deixa rastro algum pelo caminho. Tem uma vantagem: é bem fácil desencalhá-la de sua praia de cobertas e lençóis. Basta a força de um grilo para içar o corpo cadavérico. As baleias esguicham ar quente e criam a impressão de que um jato de água é expulso de suas entranhas. Minha baleia doméstica, não sem muito esforço, expulsa uma gosma de cor mortuária pelo buraco aberto no pescoço. Para se parecer com uma jubarte, precisa engordar muito e nadar de barriga para cima, expulsando pus e desespero.
Japão, Islândia e Noruega pressionam para acabar com a moratória mundial à caça de baleias, decretada em 1985. Não entendi muito bem qual é o interesse destes países. Sushi de baleia? No século 20 — auge da baleação — utilizava-se a gordura de baleia como combustível ou argamassa em construções. A obsessão do capitão Ahab talvez tivesse ambição comercial. Quantas casas se constroem com uma Moby Dick? Para evitar a volta da caça às baleias, os amantes do mamífero gigante apostam as esperanças na criação de um santuário de baleias no Atlântico Sul. A missão é de responsabilidade da Comissão Baleeira Internacional (sim, ela existe).
Minha baleia está no fim. Mas não pretendo construir um santuário para ela. Na semana passada, recebemos os resultados de uma pilha de exames. Entremeio a tantos nomes científicos, identifica-se o veredicto de falso valor: “ausência de malignidade nesta amostra”. Arrancaram um pedaço do pescoço fino da minha baleia e o submeteram a vários testes. O câncer, por ora, não está lá. Talvez volte em breve. Nunca se sabe. Baleias se transformam em cetáceos muito excêntricos após sessões de quimioterapia e radioterapia. Ainda mais quando os equipamentos estão bem distantes do mar, em mãos de marujos relapsos. Mas já nos avisaram: não há motivos para comemorar. O rombo no pescoço para esguichar pus e desespero seguirá no mesmo lugar. O buraco na barriga por onde enfiamos diariamente doses de krill líquido não será fechado. Compramos o krill da minha baleia em latas na farmácia. Cada lata custa pouco mais de sessenta reais. Às vezes, penso que seria mais fácil mandá-la para a Antártida. Duvido que sobreviva ao frio. E também não terá motivos para retornar ao litoral brasileiro: minha baleia deixou de acasalar e deu à luz pela última vez há quase quarenta anos. Um dos filhotes já morreu. Os outros dois enfrentam o mar a milhares de quilômetros um do outro. Baleias magras são pouco solidárias no câncer.
Meu filho de três anos ganhou um peixinho em agosto. Não sei por que o pequeníssimo aquário está sobre a pia do meu banheiro. É uma companhia silenciosa quando escovo os dentes ou faço a barba. O peixe é bonito. Tem uma cor estranha. Não sei muito bem qual é. Para mim qualquer cor sempre será um teorema de Fermat. O peixinho tem pouco espaço. Nada para um lado e para o outro o dia todo em seu cárcere doméstico. Diariamente, é preciso alimentá-lo. São quatro bolinhas pela manhã e à noite. O excesso pode matá-lo. A falta também. É um privilegiado. Não precisa ir até a Antártica em busca de krill. Nem à farmácia.
Se fosse uma jubarte, estaria num santuário. Se fosse minha baleia, estaria condenado.
NOTA
Crônica publicada originalmente no site Vida Breve.