Nos manuais e compêndios de história da literatura brasileira, quando aparece alguma referência a Valdomiro Silveira, vem ele quase sempre engrossando a lista de precursores do regionalismo.
Papel meio infeliz, esse do precursor. Embora tenha sempre o mérito de antecipar tendências ou esboçar algum processo novo, toda obra precursora é, por definição, imperfeita — porque o tal processo novo ou nova tendência se manifestam mesmo, plenamente, depois.
Isso é muito injusto, particularmente com Valdomiro. Porque a publicação de Os caboclos, em 1920, representou, na verdade, a culminância de um processo que vinha de bem antes.
A idéia de fazer do romance um grande painel da diversidade cultural brasileira constituiu um programa para José de Alencar — que é o verdadeiro criador da nossa ficção. O assunto regional teve as importantes contribuições de escritores como Bernardo Guimarães, Franklin Távora e Oliveira Paiva; e atingiu altos níveis estéticos nas mãos de um mestre como Afonso Arinos. É um equívoco, me parece, dizer que a literatura regional surgiu depois da Semana de Arte Moderna.
Falei acima em “culminância”, porque creio ter sido Valdomiro Silveira quem primeiro adotou certa atitude de viés antropológico na tradição regionalista. Se Alencar teve mais amplitude que profundidade, Valdomiro — natural da que hoje é a cidade de Cachoeira Paulista, mas crescido em Casa Branca, na fronteira de Minas, próxima a Poços de Caldas — elegeu como objeto ficcional o tipo humano dessa última região, para inscrevê-lo no cenário amplo da literatura brasileira.
Valdomiro Silveira “estudou” o caboclo, conviveu com ele. Ao mesmo tempo em que anotava expressões e modos de falar, começava a penetrar mais profundamente naquelas humanidades.
Publicou quatro livros, quatro coletâneas de contos. Sua obra-prima é, certamente (e na opinião do próprio Valdomiro), o último: Leréias (histórias contadas por eles mesmos), do qual há uma edição recente, da importante coleção “Contistas e cronistas do Brasil”, da Martins Fontes.
O espírito dos contos de Leréias é, todavia, o mesmo do volume que nos concerne. N’Os caboclos já estão presentes o tratamento literário do dialeto caipira (que constitui um dos encantos do livro) e aquilo que chamei “viés antropológico”, a aproximação, ou até mesmo a identificação entre narrador e personagem — identificação essa que chegaria ao ápice no já mencionado Leréias: o “eles mesmos” daquele subtítulo, como se percebe, são os próprios caboclos.
E Os caboclos tem contos ótimos, como o esplêndido Camunhengue — história de um homem que contrai a lepra e vai sendo paulatinamente expulso do convívio social e familiar. A cena final desse conto é alguma coisa de sublime. Temos ainda Mamãe — caso de um menino apelidado de “Zé Tantã” — que é um estudo sobre a crueldade infantil. Há também narrativas bem-humoradas, como Por mexericos e Valentia, duas sátiras sobre a bravura.
Mas a obra-prima do volume talvez seja Os curiangos, história de um coveiro que vê, morta, o amor da sua vida. O movimento final dessa peça — a cena do vôo dos curiangos, que é metáfora meio fantástica das emoções conturbadas do protagonista —, pelo que tem de cor local, de mitologia popular e de densidade humana, impossibilita qualquer descrição.
Os caboclos teve quatro edições, as duas últimas da Civilização Brasileira. São relativamente fáceis de achar e não passam muito de R$ 15,00.