Em poucos instantes, todo o Universo foi encerrado na garrafa.
José María Merino, em Buraco negro.
Em Universos breves: antologia do microconto de língua espanhola são 195 microcontos oriundos de Argentina, Colômbia, Espanha, México, entre outros países que leem Borges ou García Márquez no original. A organização é de Francisca Noguerol — que também assina o prefácio do livro —, professora espanhola de literatura hispano-americana na Faculdade de Filologia da Universidade de Salamanca.
Encomenda do Instituto Cervantes, o volume foi planejado, segundo ela, “como objeto de prazer de leitura, para mostrar o que faz um microconto ser considerado bom e, por último, para difundir seus principais adeptos em espanhol”.
Supõe-se que em razão deste último objetivo a antologia está dividida por autores, em vez de temas convencionais ou universais, por exemplo (amor, família, morte, sexo, sonho etc.). No entanto, eles estão ordenados segundo seus sobrenomes, em vez de reunidos em gerações ou países de origem (um critério menos dispersivo, mais gregário e atraente, para o leitor). Além disso, suas notas biográficas (Sobre os autores), situadas ao final do volume, em letra miúda, pouco contribuem para seu reconhecimento ou popularização.
Desse modo, Noguerol e a editora Cobogó falham em parte na organização dos microcontos e seus autores. Acertam em cheio, em compensação, na sua curadoria e seleção: os 195 textos são inéditos, de autoria de 39 escritores e escritoras contemporâneos (cinco narrativas de cada; todos vivos) “indiscutíveis no âmbito do microconto em espanhol”, ainda que desconhecidos, sem uma exceção, do público leitor brasileiro (ao menos deste crítico).
Se o microconto se sai melhor na web digital (“o império da brevidade das comunicações”), ele se adapta bem ao livro; como a crônica, quando sai do jornal.
Modalidade ou subgênero
No prefácio de Universos breves, Noguerol desfaz alguns dos preconceitos mais comuns acerca do microconto: o de que ele não tem um nome ou atende “por muitos termos”; o de que ele não passa de um “passatempo”; o de que ele é uma forma de fast fiction ou literatura “improvisada”. “[…] os melhores microcontos, com pouquíssimas exceções, permanecem na gaveta da escrivaninha por tempo suficiente para serem revisados em mais de uma ocasião”, constata a professora.
Ela chega a formular uma definição para a “modalidade” ou subgênero na forma criativa de “algumas linhas lúdicas e curtas” nas quais se condensam e vislumbram suas principais características e qualidades:
ABC do microconto
Acrobático, bem-humorado, certeiro, desinibido, elegante, flexível, genial, hipnótico, impactante, jubiloso, kantiano, lúcido, musical, notável, oblíquo, potente, quixotesco, rápido, sóbrio, terno, único, veloz, wonderful, xilofônico, yin-yang, zeloso.
Aforismos, fábulas, parábolas
Para ilustrar, seguem quatro exemplos colhidos a dedo (a partir de critérios de brevidade e gosto pessoal), acompanhados de análises.
Há homens que têm, merecidamente, seus monumentos. As pombas, esses delicados símbolos de paz, nos vingam de todas as suas maldades.
Estátuas reveladas, de Homero Carvalho Oliva (Bolívia, 1957)
Eis uma sátira com ares de aforismo. O segredo está nas fezes das pombas.
Com o passar dos anos, o carrasco adquiriu tanta experiência que, em um só talho, limpo, preciso e indolor, cortava a cabeça de suas vítimas. No entanto, nunca recebeu delas uma palavra ou um gesto de agradecimento.
Ingratidão, do mesmo autor.
Desta vez, uma anedota ou parábola profana. Em um primeiro momento, acredita-se que o carrasco “nunca recebeu uma palavra ou um gesto de agradecimento” simplesmente porque suas vítimas estão mortas. Logo se compreende que a “ingratidão” do título refere-se na verdade ao fato de que o carrasco proporcionou a elas uma morte “limpa, precisa e indolor”.
Minha namorada é uma Supergarota. Ela pode voar, carregar coisas muito pesadas, destruir paredes enormes com sua visão de raio laser e se teletransportar a uma supervelocidade. Resumindo, pode fazer tudo. A única coisa que minha Supergarota não consegue fazer é sair daquele bendito cartaz e me fazer companhia.
Supergirl, de Ibeth Guzmán (República Dominicana, 1987)
Este é um microconto romântico e tragicômico, sobretudo em seu desfecho. Em um primeiro momento, acredita-se que se trata de uma fantasia ou sonho diurno da narradora com a Mulher-Maravilha (Supergarota, em oposição ao Super-Homem) ou que ela está exagerando as qualidades e poderes de sua namorada e convertendo-os em superpoderes. A revelação — de que se trata de uma imagem em um cartaz — é uma reviravolta surpreendente e convincente: uma autêntica peripécia aristotélica.
A narradora tem mil e uma fantasias com a imagem, que “pode fazer tudo” menos “fazer companhia”. Para ela, talvez esta seja pornografia.
Depois do estrondoso acidente e de meu encontro com a morte, pude comprovar que, pouco antes de morrer, a vida é projetada para nós como um filme. Vemos o cotidiano de nossos dias em cada detalhe.
Que filme terrível o meu: o roteiro era nojento, as atuações lamentáveis, a fotografia maçante, a direção péssima. Que tédio era minha vida! Felizmente, sobrevivi para entrar em grupos mafiosos, assaltar bancos, traficar drogas, derrapar em estradas perseguido pela polícia. O que posso dizer? Sempre admirei Tarantino.
Cinéfilo, de Kras Quintana (Nicarágua, 1991)
Por fim, uma narrativa autoirônica de experiência de quase-morte. A partir de então, o narrador, um cinéfilo, muda radicalmente seu estilo de vida com o fim de assistir a outro “filme” — de ação, tarantinesco — na sua hora derradeira.
Outros microcontos da antologia assemelham-se a fábulas, paródias, poemas em prosa, prosas poéticas. Nos melhores casos, como diz Noguerol, “as linhas […] se eletrificam, agindo como disparadores e provocando epifanias inesgotáveis — e inesquecíveis —, apesar de sua escassez”.
Tradução sem crédito
Apesar da missão do Instituto Cervantes, criado em 1991, de “promover o ensino do espanhol e […] a cultura dos países que falam espanhol” (“Sobre nós”, no site da instituição), a edição de Universos breves — que não é bilíngue — não contém sequer uma nota ou comentários de rodapé da tradutora Silvia Massimini Felix, mestre em literatura espanhola pela USP (cujo nome não aparece na folha de rosto, tampouco). É apenas mencionado nos créditos finais, acima da ficha catalográfica.
Na orelha do livro A tradução literária (Civilização Brasileira, 2012), do poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, o professor e ensaísta Evando Nascimento recorda que:
Desde os anos 1970, quando ainda era considerada uma atividade meramente subsidiária, desprovida de valor próprio, a tradução tem sido pensada como prática cultural, que envolve não apenas idiomas mas também culturas distintas, numa história em que estão implicadas as próprias relações interculturais através do globo.
A ausência de nota ou comentários da tradutora é uma falta grave em Universos breves sobretudo porque o microconto é equiparado à poesia, “por sua condição compacta, em que cada palavra vale seu peso em ouro pelo lugar que ocupa”, conforme indica a própria organizadora Noguerol no prefácio. “Estamos falando de uma literatura no fio da navalha”, diz ela.
Nas palavras de Britto, “o tradutor de uma obra literária não pode se contentar em transportar para o idioma-meta a teia de significados do original: há que levar em conta também a sintaxe, o vocabulário, o grau de formalidade, as conotações e muitas outras coisas”. No caso, caberia a Massimini Felix elucidar tais aspectos — e a Noguerol, Cobogó e Cervantes convidá-la a fazê-lo e creditá-la devidamente.
Em 1º de setembro passado, Massimini Felix compartilhou em seu perfil do Instagram um post do grupo @quemtraduziu que, por sinal, questionava: “Quem traduziu o livro que você está lendo? Muitas vezes, esquecemos de mencionar quem traduziu o livro que estamos lendo, grifando, divulgando, resenhando. Convidamos todo mundo que fala de livros a olhar para a tradução, a criar o hábito de sempre creditar as tradutoras e tradutores ao citar um livro — e também apontar quando esta informação estiver faltando”. Que assim seja.