Quebra-cabeça onírico

Livro reúne sonhos anotados por Veronica Stigger e provoca leitores a brincar com imagens e enigmas
Veronica Stigger, autora de “O livro dos sonhos” Foto: Eduardo Sterzi
01/09/2023

Dizem que os sonhos dos outros são pouco interessantes de se ouvir. A aparente falta de sentido da história pode nos dispersar quando alguém fala sobre o que “viveu” enquanto dormia. Mas talvez isso dependa de quem e como está contando.

Quem conhece as obras de Veronica Stigger pode se sentir atraído de imediato pela leitura de O livro dos sonhos: exercícios de onirocrítica, com 31 sonhos anotados pela escritora gaúcha. Além de ser ótima contadora de histórias, Stigger tem uma mente criativa que gera até curiosidade sobre as imagens que se formam durante seu sono.

Ela é autora dos premiados Sul, coletânea de contos, e Opisanie świata, romance, apenas dois exemplos da capacidade de criar experiências de leitura instigantes. Sonhos são um material de outra natureza, feito sem consciência nem intenção de publicação. Mas, reunidos em livro, ganham um tom literário bastante convidativo.

O livro dos sonhos é o primeiro da coleção As frutas das samambaias, cujos próximos volumes terão sonhos de outros escritores. De acordo com o prefácio, assinado pelo editor Natan Shäfer, a série procura preencher uma lacuna editorial brasileira no que diz respeito a relatos de sonhos, e a expectativa é despertar interesse sobre a potência criativa desse tipo de anotação (para quem gosta do assunto, fora do circuito dos livros existe a iniciativa encantadora do jornal O Onírico, que publica sonhos em forma de notícia).

Os textos de O livro dos sonhos têm ilustrações de Eduardo Sterzi, também escritor e professor de teoria literária. Companheiro da autora, Sterzi compartilhou com ela muitos dos contextos que aparecem ali, como as viagens volta e meia citadas. Com os desenhos, a leitura fica ainda mais livre.

Sonhos são manifestações importantes para a psicanálise, lembra Flávia Cêra no posfácio, acrescentando que tais produtos do inconsciente envolvem uma prática analítica, mas também uma poesia que, no fim, parece se referir a todos nós. Aliás, nos últimos anos o mercado editorial tem se beneficiado de uma atenção crescente do público pelo tema.

Mas o livro de Veronica Stigger está em outra prateleira, por assim dizer, pois não se dedica a análises profundas, no sentido psicanalítico. Como indica o subtítulo, ela faz “onirocrítica”, trata da interpretação desses registros como uma experimentação, um quebra-cabeça sem encaixe certo. São enigmas com os quais somos convidados a brincar.

Mesmo assim, o livro capta algo que fala sobre nosso tempo, sobre uma memória coletiva. Os textos trazem consigo as datas quando a escritora sonhou — entre os anos de 2013 e 2020. Dessa maneira, podemos vincular as imagens a acontecimentos específicos, a exemplo da pandemia do coronavírus, como neste trecho de maio de 2020:

Estou na rua e reencontro amigos queridos, os quais beijo e abraço como sempre fiz. De repente, me dou conta de que não devia tê-los abraçado. É contra as regras. É perigoso.

Outras histórias curiosas estão relacionadas à obra. Um dos relatos é meio premonitório: a autora sonhou com o dia de nascimento do filho de uma amiga. Conforme ela revelou no lançamento do livro em Curitiba, a tal data posteriormente se concretizou.

Embora a coleção proponha anotações dos próprios sonhos, Stigger acrescentou perspectivas diferentes. O conteúdo inclui também sonhos que outras pessoas tiveram com ela:

Você não era você, mas um fantasma. Morava há muitos anos numa casa abandonada em Jacarta, no bairro rico da cidade. Essa casa seria demolida dali a algumas semanas e você não tinha ideia de para onde iria se mudar.

O atrativo está ainda na forma. Em geral, são textos curtos, alguns limitados a uma frase ou parágrafo, deixando histórias profundas muito sucintas e interessantes. Citam amigos, família, obras de arte, lugares onde ela esteve. Parece simples, mas há um desafio em relatar esse tipo de história, eventualmente fragmentada ou inacabada, que por vezes esquecemos e precisamos preencher com imaginação.

E porque o mundo onírico é algo comum a todos, O livro dos sonhos faz nossas memórias e experiências se misturarem aos registros de Stigger. Não à toa, o evento de lançamento, em abril deste ano, teve um efeito de partilha: algumas pessoas da plateia acabaram contando seus próprios sonhos à escritora. Por isso o livro, além de um exercício, é um belo diálogo.

O livro dos sonhos
Veronica Stigger
Contravento e Arte & Letra
80 págs.
Veronica Stigger
Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1973, e vive em São Paulo (SP) desde 2001. Além de escritora, é curadora, crítica de arte e professora de Histórias das Artes na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Tem doze livros de ficção, entre os quais estão Opisanie świata (2013) — ganhador dos prêmios Machado de Assis, São Paulo (autor estreante) e Açorianos (narrativa longa); Sul (2016), vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas; e Sombrio, ermo, turvo (2019).
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho