97 histórias de amor e ódio

Em "Uma mulher", de Péter Esterházy, impressiona a regularidade da entonação sobre amar e odiar
Péter Esterházy, autor de “Uma mulher”
01/10/2011

À primeira luz, a obra Uma mulher, do húngaro Péter Esterházy, pode ser visto como um livro dedicado ao amor e à mulher. Nele, há 97 contos com o mesmo título: uma mulher (1), uma mulher (2), e assim sucessivamente, trazendo 97 retratos ou histórias curtas sobre relacionamentos entre o narrador e (alg)uma mulher, seja ela bonita ou feia, gorda ou magra, fiel ou promíscua, saudável ou doente. Lendo-se de outro modo, também seriam 97 modos diferentes de se amar, ou um amor único pelas possíveis mulheres (97) que atravessam a vida do homem, incluindo-se até mesmo suas mães biológicas ou postiças.

O impressionante, nesse primeiro mergulho na obra de Péter Esterházy, é a regularidade da sua entonação sobre amar e odiar, estabelecendo aí o referencial de cada mulher. Bem-me-quer ou mal-me-quer, até arrancar a última pétala.

A partir do ama/odeia segue-se o detalhamento do corpo de cada uma, bem como o registro do cotidiano com a presença de seu sexo. Os textos se desdobram em relatos únicos e singulares a partir dos quais se poderia construir a história de uma vida inteira.

A repetição, nesse caso, é fundamental, e constitui o cerne do livro. E Esterházy repete a história de múltiplas formas diferentes, até que, no fim de tudo, elas se unem para dizer o mesmo. A cada conto, o início — “Há uma mulher. Ela me ama.”, “Há uma mulher. Ela me odeia.”, em inúmeras variações possíveis. Não faltam figurações irônicas, críticas e sarcásticas para esses amores: “Há uma mulher. Vamos esquecer a bobagem do me-ama-me-odeia” ou “Há uma mulher. Nas semanas pares (2, 4, 6…) ela me ama, nas semanas ímpares (1, 3, 5…) ela me odeia, mas toda semana ela procura mudar a minha vida”. À primeira leitura, parece só importar o que se seguirá, como se o amar e o odiar fossem irrelevantes para o desfecho das histórias. Aqui não há meio-termo, e o amor serve apenas como ponto de partida para disparar a fagulha narrativa de cada conto.

Neste primeiro aspecto, observando a dinâmica do amar/odiar e o desenrolar do cotidiano estabelecido pelo narrador, fica a impressão de que o amor e seu reverso são capazes de superar todos os outros aspectos da vida: religião, política, sexo, literatura, tempo, a mesquinhez do convívio a dois. Tudo isso vem depois da sentença principal, do parâmetro: se é amor, ódio, ou em qual outra equação se estabeleceu o relacionamento. Note-se que o ponto de referência é fixado sempre no “eu-narrador” e, definida a espécie de relacionamento, a história segue, a despeito da natureza, da conjuntura social e política, de todo o resto.

Assim, seria, por excelência, um livro que reverencia o amor como experiência única que supera todas as outras, ou ainda algo peculiar que insiste em nascer em qualquer circunstância, uma quase-obsessão. Tudo o mais poderia faltar, exceto um relacionamento pautado no amor (ou em sua ausência). Ela me ama, ela me odeia… E então? Para Esterházy, é nesse “e então” que a vida acontece.

Sob outra leitura, há quem repare o esvaziamento da significação do amor por sua excessiva repetição. De fato, há quem evite declarar o amor repetidas vezes, justamente por medo de sua des-significação. Assim, mencionar o amor 97 vezes, neste tal ponto de vista, tornaria a declaração um mero detalhe, um suspiro, um referencial dispensável exibido no texto: “Há uma mulher. Ela me odeia. Ela me deseja. Telefona o tempo todo. Deixa recado”.

Aprofundando-se ainda mais na narrativa, o livro também versa sobre narcisismo. Em última análise, trataria do amor por si próprio, verificado ou não no Outro, afinal todas as mulheres só existem através do olhar do narrador. Aliás, sua abstração é de tal modo intensa e minuciosa que descreve uma mulher obesa ou os detalhes decrépitos de uma mulher idosa, sempre com o mesmo rigor visual notável.

Na verdade, há algo que beira o agressivo em tais descrições excessivamente reais de Esterházy. Pois, ao falar do corpo, o autor fala da morte, da decadência. Mulheres em dieta, comilonas, doentes, capitalistas, comunistas, preocupadas com o “tal do PIB ou com o preço do leite” — estão todas elas lá, visíveis, de coxas magras ou com o tamanho de um armário, com sardas ou mau hálito, transpirando, “trabalhando” de rosto rubro durante o gozo. E, como não poderia deixar de ser, ao falar do corpo da mulher, ele mantém sua relação sempre ao nível do corpo, como se fosse impossível decifrar a mente feminina para além do veredito ama/odeia: “Há uma mulher. Acontece que não nos vimos durante anos. Quero dizer, enquanto escovávamos os dentes passaram inesperadamente vinte e oito anos”.

A mulher, aqui, é definida enquanto corpo vivente com o qual se estabelece uma relação de amor ou ódio (ou alguma outra forma conjugada e desproporcional dessas duas emoções). Isso, de fato, não deixa de ser uma manifestação narcísica, pois toda mulher tratada no livro é vista pela perspectiva do narrador, e pelo enfoque de seu relacionamento com ele.

Não estaríamos então lendo sobre mulheres, mas sobre visões do narrador acerca das mulheres que só ele soube descrever? Possivelmente. O narrador exerce domínio total e soberano sobre o que é escrito acerca de cada uma dessas mulheres, e a voz delas é mediada por sua voz. Serão elas realmente das formas descritas? Onde estão seus sentimentos? Nas pequenas narrativas de Esterházy, os únicos sentimentos existentes são, ao final, do próprio narrador, que as interpreta, as decodifica e se revela uma espécie de Sol centralizador, uma criança que relaciona a si mesma tudo o que há em seu entorno.

Após a leitura do posfácio de Paulo Schiller — em que comenta as vivências com o nobre e famoso autor húngaro, e ressalta como ele lhe orientou a deixar de lado a literalidade da tradução para centrar-se na preservação do ritmo e da fluência do texto —, observamos um terceiro ponto de leitura, de maior amplitude e densidade.

Mergulhando do ponto mais alto e alcançando as profundezas do texto, podemos sentir algo de Kafka e Goethe. De Kafka, o tom imparcial, detalhista, verdadeiro, obcecado com o sentimento do outro em relação a si (ama/odeia). Nos contos, as mulheres são pegas de relance e o resultado final do relacionamento é quase sempre desconhecido ou indefinível: “Ela acha que quero deixá-la. Levanto as pernas tão devagar que preciso mesmo pensar nisso”.

De Goethe, em seu Fausto, podemos avistar a vontade de se eternizar em cada objeto de desejo, em cada paixão. Em Esterházy e Fausto, a vontade de continuar vivo na repetição das bocas, das pernas, do sexo, na busca incansável de um ideal romântico do sentimento espelhado, correspondido integralmente e em idêntica proporção. Em cada mulher, o narrador sobrevive sem envelhecer, ganha uma nova chance, e chega a descobrir que sua única salvação seria passar a vida tentando concretizar este verdadeiro e perfeito amor. Não, o amor não está morto. Eterniza-se a cada mulher. Especialmente se ela te ama. Mais ainda, se ela te odeia.

Uma mulher
Péter Esterházy
Trad.: Paulo Schiller
Cosac Naify
184 págs.
Os verbos auxiliares do coração
Péter Esterházy
Trad.: Paulo Schiller
Cosac Naify
72 págs.
Péter Esterházy
É um lorde húngaro e o orgulho literário de seu país. Com mais de trinta livros publicados, ganhou inúmeros prêmios dentro e fora da Hungria, incluindo o Prêmio da Paz na Feira de Frankfurt (2004). Apesar de ter visto sua família progressivamente perder privilégios e poderes que lhe foram tradicionalmente concedidos desde o século 12, Péter é uma espécie de herói nacional. Seu livro Uma mulher foi publicado originalmente em Budapeste, em 1995, e somente em 2010 ganhou a edição da Cosac Naify, juntamente com Os verbos auxiliares do coração. Sua obra-prima, porém, Harmonia celeste — resultado de dez anos de trabalho e mais de 700 páginas contendo a narrativa épica da ascensão de sua família no Império Austro-Húngaro e a decadência no regime comunista — ainda será publicada em dois volumes pela Cosac Naify.
Paula Cajaty

É poeta. Autora de Afrodite in verso.

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