Na corda bamba

"Olhos d’água", de Conceição Evaristo, aborda a violência e a miséria que marcam a vida de muitos afro-brasileiros
Conceição Evaristo, autora de “Olhos d’água”
07/12/2015

Nos quinze contos que enfeixam Olhos d’água, de Conceição Evaristo, a temática está relacionada às agruras diárias pelas quais passam os afro-brasileiros numa sociedade excludente como a nossa. Nessas pungentes narrativas, ainda que existam alguns protagonistas masculinos, a ênfase centra-se em personagens femininas, muitas delas figurando parcial ou totalmente nos nomes de alguns dos contos.

Indubitavelmente, questões étnicas e sociais são assuntos recorrentes na obra dessa escritora, visto que ela está envolvida com questões ligadas à igualdade racial desde a década de 1980. Isso se evidencia a partir de sua estreia, em 1990, no número 13 dos Cadernos negros. Foi nessa edição que ela publicou o antológico poema Vozes-mulheres, que bem poderia servir de epígrafe para Olhos d’água.

Foi, porém, com o romance Ponciá Vicêncio, de 2003, que ela tornou-se uma escritora reconhecida pelo público e pela crítica, além de ver essa obra publicada em inglês, em 2007, nos Estados Unidos. Não só isso. O livro tornou-se leitura obrigatória de vestibular de uma universidade paranaense, confirmando que as preocupações étnico-sociais de Conceição Evaristo têm repercutido entre leitores e estudiosos da nova literatura brasileira.

Mesma mulher
Ponciá Vicêncio funciona como uma espécie de chave para compreender os contos de Olhos d’água. Na narrativa de 2003, a despeito de haver um narrador em terceira pessoa, a ótica com a qual o leitor se depara é a de Ponciá, uma mulher afrodescendente, sofrida, cuja trajetória de vida poderia bem ser o de algumas das personagens dos contos. Ou seja, a personagem do romance tanto pode ser a menininha Zaíta (do conto Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos), quanto a Ana Davenga do conto homônimo, que “morrera ali na cama, metralhada, protegendo com as mãos um sonho de vida que ela trazia na barriga”. Ponciá também está um pouco na suave Salinda (do conto Beijo na face) ou em Luamanda cuja “pele não denunciava as quase cinco décadas que já havia vivido”, ou ainda em Ayoluwa, “alegria de nosso povo”. Enfim, nos contos de Olhos d’água, Ponciá se repete um pouco em cada uma das mulheres que se equilibra a custo nesse delgado fio que é a vida.

No prefácio, Heloisa Toller Gomes observa que muitas personagens femininas dos contos são “todas a mesma mulher, captada e recriada no caleidoscópio da literatura”. Essa mesma mulher repete os dilemas vividos pela Ponciá do romance, encarnando a face de cada um dos desvalidos da sociedade brasileira, às voltas com a miséria e a violência urbana. Na realidade, essa mulher única em várias outras atua nas narrativas como resposta à indagação que o leitor encontra no poético Olhos d’água, primeiro conto do volume: “De que cor eram os olhos de minha mãe?”. A pergunta obriga a narradora a fazer o caminho de volta para o lar e resgatar sua própria história, sua identidade. E dessa consciência de sofrimento, de “lágrimas e lágrimas”, há a possibilidade de a mulher que narra apreender que ela própria, a mãe, a filha, as tias, “todas as mulheres de minha família” compõem fragmentos de uma mesma mulher que sofre.

Emblemático para mostrar essa situação de dor e exclusão é o conto Duzu-Querença. Nessa narrativa, a protagonista é apresentada como mendiga, prostituída, louca — qualificativos que, obviamente, põem-na à margem da chamada cidadania. O pai de Duzu-Querença era um sonhador, “queria caminhar para o amanhã”, desejava que a menina vencesse na cidade grande. Porém, o olhar crítico de Conceição Evaristo mostra que ser cidadão é um privilégio para poucos. Logo, Duzu só pode mesmo protagonizar a dura realidade dos mais pobres, de vez em quando ficar “olhando o mundo”.

Essa contemplação da vida que Duzu se permite também ingressa na vida da lépida Cida, em O cooper de Cida. O leitor constata que a jovem vive num ritmo acelerado. Há um “sentimento de urgência” nessa moça vinda de um lugar onde não existia pressa. O dia a dia de Cida é assinalado por “Trabalho, trabalho, trabalho. O dia entupido de obrigações. A noite festejada por encontros de rápidos gozos”. Todavia, certo dia a moça resolve deter essa corrida desenfreada “sobre a corda bamba invisível e opressora do tempo”. Pela primeira vez, em anos morando numa cidade à beira-mar, Cida consegue contemplar as pessoas, os lugares, o mar. Finalmente, ela capta na câmera lenta de seu olhar a vida sob o prisma da reflexão.

O olhar da escritora recai sobretudo na existência difícil de personagens femininas afrodescendentes, que tentam se equilibrar no fio tênue de um cotidiano marcado por humilhação, opressão e preconceito.

Violência urbana
No assustador e realista conto Maria, existe uma abordagem da violência urbana semelhante ao que se verifica em Ponciá Vicêncio. Empregada doméstica, sem companheiro e com filhos para criar, no retorno de ônibus para sua casa, a mulher acaba sendo vítima de um equívoco que se tem tornado comum nas metrópoles: “Os assaltantes desceram rápido. Maria olhou saudosa e desesperada para o primeiro. Foi quando uma voz acordou a coragem dos demais. Alguém gritou que aquela puta safada lá da frente conhecia os assaltantes”. Qualquer semelhança com algumas criminosas práticas que se têm disseminado nas grandes cidades não é mera coincidência.

Diversos graus de injustiça e violência é o que há em Quantos filhos Natalina teve?. A personagem engravida várias vezes, vira mãe de aluguel, vê-se obrigada a dar os filhos a desconhecidos, no desfecho da trama, acaba sendo estuprada. Em síntese, Natalina representa o cotidiano de muitas mulheres que são desvalorizadas, violentadas e esmagadas na luta pela sobrevivência. Apesar de todos esses percalços, ela sonha ter um filho “Só seu. De homem algum, de pessoa alguma”, e para que isso ocorra, ela não hesita em empregar a violência.

Mesmo em contos em que o foco concentra-se em personagens masculinos, a opção de Conceição Evaristo pela valorização da figura feminina é evidente. No mais comovente dos contos do livro, Lumbiá, o menino que dá título à narrativa adora vender flores, contrariando a mãe, que “não gostava daquela espécie de mercadoria”. Outra coisa que seduz o garotinho é o presépio de Natal. De certa forma, ele identifica sua família com a “imagem-mulher que era a mãe”, “a imagem-homem que era o pai”. Na sua imaginação, portanto, ele é “o Deus-menino”. Ter entre as mãos essa última figura vai ser fatal para seu “peito-coração menino”.

Em Di lixão, o adolescente recorda-se da mãe que lhe batia. Não gostava dela, mas quando é acometido de dores lancinantes, ele se deita “retomando a posição de feto”, como a buscar subconscientemente o colo de uma mãe que não existe mais. Em Os amores de Kimbá, nem mesmo o referencial feminino que Kimbá conhece entre os seus permite-lhe que escape ao trágico relacionamento a três que vive com Beth e Gustavo.

É a mãe que “Seguia amolando a gente com aquela cantiga besta” a figura feminina presente em A gente combinamos de não morrer. Também é uma mulher anônima que tenta salvar a vida de Ardoca, um homem “cansado por todos os dias, todos os trabalhos, e por toda a vida”. Algumas cenas mostradas na história de Ei, Ardoca lembram Uma vela para Dario, de Dalton Trevisan, principalmente no que concerne à morte de um homem em local público e à espoliação de seus pertences.

Quando o leitor conclui Olhos d’água, acaba constatando que Conceição Evaristo mantém nos contos o mesmo espírito crítico de seus poemas e do romance Ponciá Vicêncio: as personagens que figuram em cada narrativa pertencem ao universo dos excluídos de nossa sociedade, isto é, são crianças de rua, prostitutas, mulheres pobres e humilhadas, homens que roubam, matam e são capazes de amar. Se a condição social por si só comprova que são pessoas discriminadas, mais ainda o são por serem afrodescendentes.

Olhos d’água
Conceição Evaristo
Pallas/FBN
116 págs.
Conceição Evaristo
Nasceu em 1946, numa favela de Belo Horizonte (MG). Foi para o Rio de Janeiro em 1973. Ali, atuou no magistério e ingressou na Faculdade de Letras da UFRJ. Fez Mestrado em Literatura na PUC-Rio e Doutorado em Literatura Comparada na UFF. Na década de 1980, estabeleceu contato com o grupo Quilombhoje. Em 1990, os Cadernos negros publicaram alguns de seus poemas. Com o romance Ponciá Vicêncio, de 2003, Conceição Evaristo obteve a merecida consagração literária. Em 2006, lançou o livro Becos da memória e, em 2008, Poemas da recordação e outros movimentos.
Marcos Hidemi de Lima

É professor de Literatura Brasileira na UTFPR de Pato Branco (PR). Autor de Dança de palavras e sonsMulheres de GracilianoVárias tessituras. Escreve crônicas semanais para o Diário do Sudoeste, jornal de Pato Branco.

Rascunho