Retrato de um período turbulento

Entrevista com João Almino, autor de "Enigmas da primavera"
João Almino, autor de “Enigmas da primavera”
31/12/2015

As manifestações de rua que tomaram conta do Brasil recente, e até de outros países, estão, em alguma medida, recriadas nas páginas de Enigmas da primavera, o novo romance de João Almino. Edições da Jornada Mundial da Juventude aparecem nesta longa narrativa ficcional. Mas a atualidade do livro está, principalmente, traduzida no personagem Majnun, de 20 anos, que — na definição de Almino — “vive tempos pouco heroicos, marcados pela passividade, mas quer se rebelar contra essa condição. Há traços comuns em várias regiões do globo nas oportunidades que se abrem para os jovens e também e sobretudo nas dificuldades que eles enfrentam nesse mundo de relações virtuais e de volatilidade no mercado de trabalho”.

Majnun representa o herói adiado, o jovem do Brasil contemporâneo, para quem conseguir emprego está, guardadas algumas proporções, tão difícil quanto ganhar na mega-sena. E não são poucos os impasses dele. Na realidade, Almino recriou um poema persa do século 12, Layla e Majnun, que teria inspirado William Shakespeare a escrever Romeu e Julieta. Em Enigmas da primavera, a relação entre Majnun e Laila também será inviável, da mesma maneira que o protagonista do romance tenta, mas não consegue se relacionar com outras duas personagens, Suzana e Carmen.

O mundo parece, enfim, inimigo para Majnun. Mas há outras questões nesta obra, como a dependência e as ilusões do universo virtual, política, religião e, a exemplo de um personagem da trama, o autor afirma: “O Ocidente não existe”. Após uma temporada na Espanha, entre 2011 e 2015, Almino está vivendo em Brasília — ele é o diretor da Agência Brasileira de Cooperação do Ministério das Relações Exteriores. Por e-mail, respondeu a esta entrevista, abordando principalmente a obra recém-publicada. Mas também comenta, por exemplo, o rótulo que a crítica aplica a seus livros anteriores, Ideias para onde passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994), As cinco estações do amor (2001), O livro das emoções, (2008) e Cidade livre (2010) — Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura 2011, definidos como Quinteto de Brasília — pelo fato de serem ambientados na Capital Federal. “Se as histórias desses romances tivessem lugar em São Paulo, duvido que eles tivessem sido considerados como um Quinteto de São Paulo”, questiona.

Após uma série de romances com cenário em Brasília, alguns deles sobre a cidade, surge Enigmas da primavera, longa narrativa que também se passa na Capital Federal, mas com desdobramentos na Europa. O seu projeto literário começa, conscientemente, a se modificar a partir deste novo livro?
Até Cidade livre, meu romance anterior a Enigmas da primavera, não tive a intenção de construir romances sobre Brasília. Apenas minhas histórias se passavam lá, e isso chamou a atenção da crítica e de leitores, a ponto de os romances terem sido descritos como uma Trilogia de Brasília, um Quarteto de Brasília e depois um Quinteto de Brasília. Se as histórias desses romances tivessem lugar em São Paulo, duvido que eles tivessem sido considerados como um Quinteto de São Paulo. Em Cidade livre foi diferente. Houve a intenção de descrever o clima da construção de Brasília e, ao lado de histórias inventadas, eu trouxe para o livro muito da crônica e dos personagens da época. O que Enigmas da primavera tem em comum com Cidade livre é um volume expressivo de pesquisa, menos presente nos quatro romances anteriores. Como sempre acreditei que uma cidade não define uma literatura, podendo haver projetos literários radicalmente distintos em histórias que tenham por cenário a mesma cidade, bem como projetos literários semelhantes retratando cidades distintas, não considero que fazer meus personagens saírem de Brasília sinalize, em si, uma modificação do projeto literário, embora não negue que havia um propósito em situar as histórias daqueles cinco romances em Brasília. Por outro lado, procurei em cada livro não me repetir. Em cada um deles tentei explorar uma nova técnica, fazendo variações em torno de estruturas e da voz narrativa. Quando alguns personagens se repetiram, apareceram de ângulos distintos, segundo o livro. Ou seja, faz parte de meu projeto literário, me aventurar, explorar novos caminhos.

Faz parte de meu projeto literário, me aventurar, explorar novos caminhos.

Uma das questões que Enigmas da primavera apresenta é o envolvimento emocional do personagem Majnun com três mulheres. “Elas preenchiam três necessidades suas. Carmen era amorosa, cuidava dele. Com Laila, era paixão. Podia repudiar Suzana quando o tesão acabasse e substituí-la por outra.” Como foi construir as três personagens femininas? Somadas, com todas as suas características, elas representam, em conjunto, aquilo que um homem, representado por Majnun, ou por algum clichê de homem, esperaria encontrar, em tese, em uma única mulher?
Tentei fazer com que cada uma delas tivesse uma personalidade própria bem marcada; que fossem diferentes entre si e ao mesmo tempo não correspondessem a um arquétipo ou tipo ideal. Procurei construir as relações do personagem masculino com cada uma delas também fugindo aos clichês. Essas relações evoluem ao longo do romance, e o final do livro aponta caminhos inesperados. As utopias amorosas, políticas ou religiosas do personagem central são próprios de sua juventude, de sua busca e de suas incertezas.

Em Enigmas da primavera, o relacionamento de Majnun e Laila se revelará inviável, da mesma maneira que o poeta persa do século 12 Nizami também apresentou um amor impossível no poema Layla e Majnun que, algumas vozes comentam, teria instigado William Shakespeare a escrever Romeu e Julieta. A sua proposta foi estabelecer esse diálogo com Nizami, indiretamente com Shakespeare, e também com Eric Clapton — uma vez que a sua narrativa menciona a letra da canção Layla?
Sim, o diálogo com Nizami, e indiretamente com Shakespeare, está explicitado no romance. Não se trata de uma reprodução da lenda árabe, mas de sua recriação. Quanto a Eric Clapton, não passa de uma citação, que vem muito a propósito.

Na página 264, Laila diz para Majnun: “Você é jovem e tem todo um futuro pela frente”. Majnun não passou no vestibular de História, elabora uma narrativa ficcional e, como ele mesmo diz: “Não sei o que quero ser”. Majnun representa um tipo de jovem brasileiro, para quem o presente estaria inviável? “Que mundo era aquele em que um jovem conseguir um emprego era o equivalente a ganhar numa loteria?” Ele é um herói adiado?
Ele vive tempos pouco heroicos, marcados pela passividade, mas quer se rebelar contra essa condição. Há traços comuns em várias regiões do globo nas oportunidades que se abrem para os jovens e também e sobretudo nas dificuldades que eles enfrentam nesse mundo de relações virtuais e de volatilidade no mercado de trabalho.

João Almino: “O que divide o mundo não são os pontos cardeais, mas a miséria e a riqueza, o acesso ou não ao conhecimento e à tecnologia, a tirania e a liberdade”.

Majnun diz ter vontade de ação. “Queria ter vivido nos anos sessenta… Ou setenta”. De acordo com a narração, “O desejo era genuíno, não apenas pela inveja que sentia da época vivida por seus avós maternos em Paris, mas também por tudo o que ouvira ao longo dos anos de seus avós paternos, que haviam se conhecido em Beirute. Todos tinham uma história para contar de uma época de grandes acontecimentos. E ele, participaria algum dia de um grande acontecimento?” A sua visão do tempo presente, em contraponto aos anos sessenta ou setenta [tempo da juventude dos avôs de Majnun], está representada por Majnun e as angústias que ele sente?
Os anos sessenta e setenta foram tempos difíceis. A revolução de costumes não se fez sem angústia. As tentativas de revolução política e social e suas visões utópicas levaram em vários lugares, no Brasil inclusive, a conflitos armados. Mas a nostalgia do não vivido serve de antídoto para o conformismo e para atenuar outro tipo de angústia, aquela dos que se sentem impotentes para mudar o mundo.

Em determinado momento da narração, o leitor se depara com a frase: “A novidade está no Oriente Médio, nos países árabes”. E também: “O Ocidente não existe”. E ainda: “A opção melhor para o futuro da humanidade era o Islã”. Majnun, de acordo com o narrador, vai chegar à conclusão de que o Islã “era a religião da igualdade”. Em Enigmas da primavera há uma discussão intensa sobre o Islã. Há no mundo muitos, a exemplo de Majnun, interessados no Islã? O que isso representa no presente? Há uma frase: “As ditaduras religiosas são as piores”. O mundo corre esse risco [de ditadura ou ditaduras religiosas]?
Acredito firmemente que o Ocidente não existe e que se essa crença fosse generalizada, haveria menos conflitos no mundo. O ocidentalismo é uma ideologia tão nefasta quanto o orientalismo de que falava Edward Said. Ela está a serviço do conservadorismo em toda a parte. Penso sobretudo na ideia errônea de associar um conceito de “Ocidente” com a tolerância e os ideais liberais e democráticos. O que dizer de alguns dos piores exemplos de tirania e de experiência totalitária que existiram, não há muito tempo, na Europa? E isso sem falar de experiências mais antigas. Enquanto o imperador muçulmano e mongol da Índia, Akbar, escrevia sobre a tolerância religiosa, Giordano Bruno era queimado em 1600 pela inquisição no Campo dei Fiori em Roma. Hoje em dia, a civilização é uma só. Ela é um processo. Sempre está em construção. Uma das previsões de Marx se concretizou, e o capitalismo atingiu todo o mundo. A revolução tecnológica também é um fenômeno mundial. O chamado Ocidente e seus valores são o resultado de contribuições de várias culturas, não apenas judaico-cristãs e greco-romanas, também de outras, sobretudo das culturas provenientes do mundo árabe, da Índia e da China. O que divide o mundo não são os pontos cardeais, mas a miséria e a riqueza, o acesso ou não ao conhecimento e à tecnologia, a tirania e a liberdade. A tirania não é, portanto, exclusiva de algumas regiões do mundo, nem de determinadas culturas ou credos religiosos. Mas se um dos grandes desafios do século 20 foi a luta contra o totalitarismo nazista, fascista e comunista, no século 21 surge um novo tipo de totalitarismo fundado em falsos preceitos religiosos, que busca uma volta a origens que nunca existiram e renega toda uma tradição de tolerância do Islã e do mundo árabe.

O que divide o mundo não são os pontos cardeais, mas a miséria e a riqueza, o acesso ou não ao conhecimento e à tecnologia, a tirania e a liberdade.

A exemplo de João Cabral de Melo Neto, também diplomata, o senhor viveu na Espanha. No caso de João Cabral, o flamenco e Sevilha foram incorporados na obra poética. No seu caso, Madri é recriada em Enigmas da primavera, onde o leitor encontra, entre tantas frases, a seguinte: “A Espanha é um país de fantasmas. Fantasmas cristãos. Fantasmas muçulmanos”. Mais que isso. Há comparação entre Madri e Brasília: “No Paseo de la Castellana, protegidas do sol inclemente por fileiras de árvores, outras moças de pernas de fora desfilavam com seu sensualismo apenas insinuado, distinto do que ele via em Brasília. Era o Eixão dali, Majnun pensou. […] Tudo ali lhe parecia diferente de Brasília. Deveria ser o contraste entre o novo e o velho, entre um país sem memória e outro moldado pelo peso da tradição. E a corrupção? Haveria ali também?”. Além do que está no livro, quais os pontos de contato entre Espanha e Brasil, entre Madri e Brasília?
Entre os temas não tratados no livro, eu poderia apontar um traço comum entre Madri e Brasília: ambas são cidades planejadas, construídas para serem capitais e associadas à ideia de uma consolidação ou integração do país. Já havia alguma população na região de Madri (assim como já havia em Luziânia no Distrito Federal), mas o que marcou o surgimento da Madri tal qual a conhecemos foi a transferência da Corte de Toledo para lá em 1561.

Na página 278, um personagem dispara a frase: “A primavera é só um começo e passa logo”. Enigmas da primavera surge num momento em que multidões foram para as ruas, inclusive no Brasil. Outro personagem do romance diz: “Queremos que a política seja mais honesta e menos mentirosa. Que se cumpra a lei, mas não só, pois nem tudo que é legal é ético. Temos de ser mais exigentes. Por que não pode haver padrão Fifa pra moralidade pública? Ou pro transporte, a saúde, a educação e a segurança?”. Qual a sua avaliação do que está acontecendo no Brasil? É um ponto de virada? Os jovens querem de fato outro Brasil? Ainda mais levando em conta a frase da personagem Suzana: “Não pertencemos a nenhum partido. Nem a sindicato. Não estamos presos a ideologias”. E ainda: se fosse possível dizer, mesmo que em poucas palavras, qual a sua opinião a respeito do que está acontecendo no mundo atualmente?
Pensei o pano de fundo deste romance como cenário de uma peça de teatro. Trata-se de um retrato ou uma série de retratos de um momento turbulento. Ao compor esse cenário, tomei muito cuidado para me manter no terreno próprio da ficção e não assumir os papéis — igualmente importantes — do historiador ou do jornalista. Para isso era necessário que o narrador deixasse que os personagens se guiassem por suas próprias emoções diante dos fatos presentes; que não fizesse profecias nem emitisse juízos de valor. Eu gostaria que o romance pudesse ser lido no futuro, dentro de várias décadas, com o mesmo interesse — ou quiçá com maior interesse — do que hoje em dia. Fiquei contente quando Alfredo Bosi disse, a propósito de Enigmas da primavera, que “para o historiador do futuro”, poderia ser “mina de pistas para compreender o caos de nosso tempo”. Cabia então ao romance se ater aos momentos vivenciados pelos personagens, seja em Madri, seja em Brasília, oferecendo algum contexto mais geral e procurando ser o mais fiel possível ao que aqueles personagens sentiram e pensaram naqueles momentos. Estamos falando de jovens nas ruas em vários lugares do mundo: na Europa, nos EUA, no Chile, na Turquia, no mundo árabe ou no Brasil. No caso da Espanha, trata-se dos protestos desencadeados pelo movimento do 15-M (que eclodiu em 15 de maio de 2011); no Brasil, dos protestos de junho de 2013. Todos esses são movimentos díspares com alguns aspectos em comum, entre os quais o papel desempenhado no seu início pelas redes sociais. Seus resultados também são diversos: em alguns casos levaram a muito pouco ou a coisa alguma; noutros a progressos no caminho da democracia; noutros ainda a reações autoritárias. Só o futuro distante poderá dizer se são resultados definitivos. A possibilidade de que esses movimentos ressurjam onde foram reprimidos ou onde simplesmente foram desmobilizados sempre existe, mas não conhecemos de antemão os ritmos da batalha travada em cada tempo e lugar entre a memória e o esquecimento. No caso do Brasil, até agora a explosão social e urbana de 2013 aparece como fato isolado, com poucos pontos de contato com as manifestações de rua mais recentes.

Majnun tem ou aparenta vivenciar momentos de delírio em diversas situações. “Pode estar vendo espíritos que a gente não vê”, diz a personagem Carmen. Majnun se envolve em problemas por sair do real, inclusive tendo diálogos com personagens de outros períodos da história. Isso faz parte de um escapismo do personagem, uma fuga do presente, ou ele sofre de problemas mentais?
As duas coisas juntas, pois os delírios não são apenas aparentes e em determinado momento ele precisa ser hospitalizado.

Após uma situação-limite, Majnun, enfim, sinaliza transformação. “Descobriu que tinha um objetivo mais ambicioso do que morrer: nunca morrer, conseguir driblar a morte, ser eterno. E mais, viver sempre com seus vinte anos. Alguém já disse, o pessimismo da inteligência é o otimismo da vontade.” Sem entregar ao leitor, que ainda não leu Enigmas da primavera, exatamente o que acontece com o personagem, é possível comentar que Majnun supera um estágio quase de torpor, quase paralisia, durante a narrativa? Ou não? Ao fim da primavera, do seu livro, ele está pronto para outra estação?
Sim, não quis que o romance descrevesse uma situação de total beco sem saída. Afinal se trata de uma primavera. Incerta, sem dúvida. Enigmática. Mas outras estações virão, para as quais a história do livro sutilmente aponta no final.

Majnun planeja uma narrativa, faz pesquisas, vive intensamente algumas aventuras e, no desfecho de Enigmas da primavera, há o seguinte trecho: “Tudo feito para acabar em palavras. Uma palavra, outra palavra e mais outra, a novela se fazia, linha depois de linha, como a própria vida, feita de busca de sentido, de frases e atos incompletos”. Isso sugere que a narração, a sua narração, dialoga com o projeto de Majnun? Afinal, durante a narrativa, o leitor tem acessos às angústias de Majnun para elaborar um livro. É isso? Ou não? Há quase a sensação de que é Majnun quem faz o desfecho de Enigmas da primavera, não é?
Não a partir das narrativas pensadas por Majnun, mas das tiras de papel rasgado nas quais faz anotações, vai surgindo a possibilidade de alguma redenção pela arte, embora não seja este o único desfecho.

Na página 64, um dos avôs de Majnun diz para o neto: “Envelhecer é acumular perdas e viver de memórias”. O que o João Almino tem a dizer sobre a frase “Envelhecer é acumular perdas e viver de memórias”?
A frase é perfeitamente apropriada ao personagem. Quanto a João Almino, diria o seguinte: “É acumular ganhos e perdas. Viver de memórias e de perda de memória”.

>>> Leia resenha de Enigmas da primavera.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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