O bueiro como rota de fuga

Crônicas de Fania Benchimol levam Alice, de Lewis Carroll, para as ruas do Rio de Janeiro
Fania Szydlow Benchimol, autora de “Alice 2013 – Um Rio que ficou em nossas vidas”
29/11/2015

Imaginação é a única arma na guerra contra a realidade.

(Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas)

Em 1863 Lewis Carroll publicou Alice’s adventures in wonderland, ou Alice no país das maravilhas, na versão brasileira. Misto de lógica, sátira social e fantasia pura, apresentava uma abordagem respeitosa à inteligência da criança e uma simplicidade na linguagem, como só um sofisticado artesão seria capaz. Recentemente, ao ver a notícia de que Alice completaria 150 anos, Fania Szydlow Benchimol, escritora carioca, teve a ideia de escrever um livro que colocasse a personagem no Rio de Janeiro de hoje, com seus buracos e maravilhas. Alice 2013 – Um Rio que ficou em nossas vidas é o resultado da aventura, se assim pode ser chamada, dessa nova personagem.

A edição primorosa em capa dura, com ilustrações de Walter Goldfarb, por sua vez desenvolvidas sobre fotografias de obras de outros artistas, não aludem ao texto, têm sua própria narrativa, nem sempre clara, mas sempre sedutora. Entre cores, transparências, aquarelas e bordados, utilizam múltiplas linguagens: colagem, elementos de clip-art sobrepostos a imagens reticulares, fotos hiperrealistas de objetos. Algumas sugerem figuras da mitologia grega, outras parecem imagens do século 17 ou 18, recuperadas a partir de fragmentos diáfanos. O motivo da presença das ilustrações não fica claro, uma vez que mesmo entre as mais realistas não há referência ao Rio de Janeiro, e a maioria parece situar-se em outra época, o que as afasta tanto da Alice de Carroll quanto da contemporânea. Tampouco há um fio condutor perceptível entre as imagens, que poderia ser dispensável; em compensação, entre todas as ilustrações, além da originalidade e beleza, perpassa a transparência, o que poderia sugerir a sobreposição de dois mundos, o real e o fantástico, um deste lado de um vidro imaginário, o outro do outro.

Seguindo uma tendência recente, é um livro que escapa às classificações de gênero. Trata-se de uma coletânea de crônicas das aventuras de Alice no Rio de Janeiro, mês a mês, de janeiro a dezembro. As crônicas se alternam com notícias de episódios marcantes do ano de 2013 na cidade. São textos extraídos da internet sobre uma variedade de assuntos, desde meteorologia (Rio, 08 de janeiro de 2013 – Temperatura máxima 38 graus Celsius.) a mortes nas enchentes e no trânsito, até a história de determinadas ruas. Essas notícias fazem o contraponto com as crônicas, ao trazerem a realidade da cidade na linguagem impessoal e direta do noticiário via internet. Cada uma dessas notas fornece bons motivos para Alice querer escapar do inferno existencial, o que faz sempre ao final de cada crônica.

O roteiro é o mesmo em todas as crônicas. Cada episódio começa com Alice em movimento pelo Rio: Alice passeia pela cidade de Petrópolis. […] Alice transita pela Avenida Sernambetiba. […] Alice pedala na vista chinesa. Segue uma série de dificuldades: A peruca amarela faz coçar a nuca pinçada. O vestido emprestado pressiona a cintura arfante. […] Precisa tomar um minuto de sol, precisa de areias finas…[…] Precisa se divertir, precisa se alegrar, precisa ver gente. Alice sofre o dia-a-dia do carioca: leva um tiro de raspão, de bala perdida; é derrubada da bicicleta por um motorista irresponsável; adere, contra a vontade, a uma manifestação de rua, e outros episódios. Antes de cada um, Alice pressente, porém ignora; o desmaio não chega. Após cada evento, uma perna cai em um buraco, bueiro, ou até no túnel imaginário da TV. Logo são as duas pernas. Logo é o corpo que se desequilibra e cai… na queda, há vento, bendito vento… […] Alice chega ao fundo. Não há mais. É fundo. Aí a espera sempre um final feliz. Vira-se a página, há notícias do Rio, e novo capítulo nessa viagem de Alice, outra vez ágil e viçosa.

Os dois recursos utilizados com mais frequência na obra são as frases curtas e a repetição, amplamente difundidos na literatura infantil, já que facilitam a memorização e o entendimento.

Pouca similaridade
Os dois recursos utilizados com mais frequência na obra são as frases curtas e a repetição, amplamente difundidos na literatura infantil, já que facilitam a memorização e o entendimento. Isso poderia remeter à obra de Carroll, aparentemente criada para as crianças. Mas além do nome e da existência do buraco, Alice 2013… tem muito pouco em comum com a de 1863. Em Carroll, as frases curtas utilizam recursos da poesia (rima, sonoridade) e de humor (trocadilhos, surpresas). Ainda que haja apenas um tombo, há encontros com vários personagens. Com raras exceções, não há repetição; cada trecho tem sua linguagem, frases curtas se alternam com frases longas em uma narrativa que não para de surpreender. As frases curtas de Benchimol imprimem um ritmo acelerado à narrativa, condizente com a realidade da vida no Rio, da qual a personagem parece gostar e querer escapar ao mesmo tempo. Mas também facilitam ao leitor adulto perceber o padrão movimento-conflito-tombo, e com isso, perde-se a surpresa.

Os temas abordados na aventura da Alice moderna são muitos: espiritualidade, (in)justiça, vida na favela, segurança, entre outros. Como seria esperado de crônicas, não se aprofundam nas questões, apenas fazem rápidas pinceladas que formam um contorno. Em contraste, percebe-se que a Alice do século 19 é uma criança que termina sua aventura muito diferente do que começou. Após deparar-se com o medo de crescer e medo da morte, com a noção de que nem todos os problemas têm uma solução, de que as ideias fixas de seu mundo real não explicam todos os fatos, ela “acorda” do sonho, mas sem esquecer o que “viu”. A Alice carioca cai em um buraco todo mês, mas para ela, o buraco é a solução. Dentro dele há vento para refrescá-la, todos os problemas se extinguem, a roupa e os cabelos flutuam, e a queda é livre, porém lenta, prazerosa. Desse buraco ela volta, tabula rasa a cada vez, até dezembro, quando finalmente não chega ao fundo: refaz-se para 2014, mas sem qualquer evidência de que tenha mudado. Tudo que vivenciou nesse ano passou em branco. Em uma entrevista a Denise Wasserman, Fania Benchimol afirmou que a ideia do livro surgiu quando começou a pensar como seria se Alice vivesse nos tempos de hoje. Talvez a Alice carioca não amadureça porque já está anestesiada pelas agressões diárias do Rio, como de qualquer cidade.

Mas há um elo indiscutível entre as duas Alices: a voz ao mesmo tempo forte e delicada, irreverente e assustada, uma combinação de criança e mulher. Se por um lado há clichês (A cidade é seu palco.), também há imagens surpreendentes:

Alice corre. A velha, corpo troncho, cigarro no canto do beiço largo, pendura o lençol do casal no varal. Escadinhas há. Espaço não há. Fiação pendurada há. Há entrega de colchão que segue pela rua estreita de arredia.

Frini Georgakopoulos, em seu site, ressalta que Alice 2013… tem entrelinhas riquíssimas. Ademais, percebe-se a intertexualidade com o livro anterior de Fania Benchimol, O sofá laranja, com versos de MPB (Caminhando e cantando…) e referências a bandas de rock, o que acrescenta camadas de significado. E, finalmente, o diálogo mais relevante, entre Alices, mostra que enquanto a de Carroll descobre que a vida frustra expectativas, a de Benchimol escapa das frustrações ao fixar a atenção em seus cachos, ora presos ora armados, delicada metáfora para o estado de espírito da personagem. E quando isso não basta, o buraco é a solução. inferno existencial.

Alice 2013 – Um Rio que ficou em nossas vidas
Fania Szydlow Benchimol
Ilustrações: Walter Goldfarb
Escrita Fina
128 págs.
Fania Szydlow Benchimol
Nasceu em 1962, no Rio de Janeiro (RJ). É psicóloga e nutricionista. Aos 50 anos publicou seu primeiro livro, O sofá laranja (Tinta Negra, 2013), um romance epistolar. Vive no Rio de Janeiro.
Vivian Schlesinger

Escritora, tradutora e mediadora de debates literários. Autora do livro de poemas Papaya na madrugada.

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