Conflito existencial

Em Textos para nada, Beckett declara sua busca por uma forma de acomodar a desordem e a confusão da vida cotidiana e humana
Samuel Beckett, autor de “Vozes femininas — Não eu, Passos, Cadência”
22/11/2015

Ler Textos para nada, de Samuel Beckett, não é uma tarefa fácil. Longe disso. Não há uma só linha que não exija atenção redobrada, e que não mereça uma releitura meticulosa. Há uma constante suspensão de tudo que não seja essencial, fundamental, necessário diante da eterna busca beckettiana por expressar algo supostamente impossível. Talvez essa busca só possa ser realizada por uma literatura forte e audaciosa, e por um leitor dedicado, laborioso e voraz, empenhado em desvelar cada palavra e cada sensação do autor. Beckett, neste livro, declara sua busca por uma forma de acomodar a desordem e a confusão que faz parte da própria experiência cotidiana e humana. Apesar de “não haver nada que se expressar, não haver nada com o que se expressar, nenhum pode de se expressar, nenhum desejo de se expressar, e, ao mesmo tempo, a obrigação de se expressar” (Beckett, Trois dialogues, p. 14, tradução minha), o autor irlandês não deixa de procurar pelas palavras, pelo sentido e pela forma do que considera grande literatura.

Beckett constrói um paradoxo: apesar do impedimento e das limitações das palavras, o verdadeiro artista deve se renovar e se redescobrir constantemente buscando “o” impossível. Ele tem o dever de rejeitar as normas e a estética preexistente, e perscrutar por algo inédito e ainda totalmente inconcebível. Em cada página destes Textos para nada encontramos essa infindável perseguição.

Além disso, diante da impossibilidade de tudo (ou de nada), Beckett discute a questão da passagem e da existência do tempo. Mensuramos, mas não o definimos. O que seria, portanto, o tempo? O que acontece com nossos corpos, nossos sonhos, nossas memórias e nossos momentos quando o tempo passa e nada resta? Se o fim é próximo, é certo, é universal, então, para que serve isso tudo? Tempo desperdiçado? Momentos, memórias, palavras… arquivos e textos absolutamente para nada? E se esse tempo abstrato e imponderável existe somente no presente, então, de acordo com o autor, seria necessário reinventá-lo a todo instante, recomeçar sem cessar, sem deixar inutilmente que ele passe e finde. Mas, como exprimir isso tudo exposto às limitações fundamentais da própria língua? Falar, negar, renegar, falar de novo e incessantemente, negando e afirmando simultaneamente, é exatamente o que faz o angustiado e estático narrador de Textos para nada.

A imobilidade dos corpos, da vida, das palavras, dos sentidos e das ausências é visível em cada sentença redigida. “Não, nada de almas, nada de corpos, nem de nascimento, nem de vida, nem de morte, é preciso continuar sem tudo isso, tudo isso morreu com palavras, com excesso de palavras, eles não sabem dizer outra coisa, dizem que não há outra coisa, que isso aqui não é outra coisa, porém já não dirão mais isso, não dirão sempre isso, encontrarão outra coisa, pouco importa o quê, e eu poderia continuar, não, poderei parar, ou poderei começar, uma mentira quentinha, que durará o meu tempo, que me dará um tempo, me dará um lugar, e uma voz e um silêncio, uma voz de silêncio, a voz de meu silêncio”. Essa imobilidade, esse silêncio, essa morte (e também a negação de tudo) que é transparente e inegável neste livro, também me fez lembrar do belíssimo A passagem tensa dos corpos, de Carlos de Brito e Melo. Há sempre tensão, suspensão e definhamento em ambos os textos.

A presença da memória
Se o corpo faz uso do tempo, e sua passagem é tensa e completamente irreversível, a memória traz o passado ao presente e consegue, de alguma forma, antecipar um futuro que resgate lembranças. Porém, como mostra o livro, nada — entendimento, conhecimento, esperança — seria possível sem a presença (limitada e falseada) da memória. Beckett, ao publicar um ensaio sobre Proust em 1930, salienta o poder inventivo e o belo projeto estético ao qual se empenha o maravilhoso e mítico escritor francês, mas ele também faz referência à sua própria busca. Proust, com sua memória involuntária, tenta tocar esse “real” que não é capaz de esquecer de nada, mas também é impedido de se lembrar de alguma coisa. Seguindo essa linha, Beckett trabalha essa questão sob três vertentes: a memória individual de seus personagens (suas impossibilidades e limitações), a memória intertextual (estética, relendo e revendo momentos literários, históricos e filosóficos) e a memória autotextual (que é a construção; a enunciação como parte da experiência do tempo). Em Textos para nada esse jogo de memória/compreensão/limitação é frequente: a rememoração é incoerente, não há capacidade de discernir causa e efeito, amnésia constante, imobilidade, presente monótono, uniforme e inteiramente ausente. Tudo seria apenas uma construção, uma edificação proustiana, ainda que extremamente falha e desmemoriada. Mas mesmo assim ele insiste (nunca deixar de tentar e de falhar): “Nomear, não, nada é nominável, dizer, não, nada é dizível, o que então, não sei, não devia ter começado”.

Escrito em primeira pessoa, Beckett apresenta um narrador vivendo um terrível conflito existencial e literário buscando encontrar um novo caminho para suas limitações narrativas. Ele, o narrador, se torna “um mero boneco de ventríloquo” impedido de contar mais histórias: “desde então, nada a não ser imaginações e a esperança de ter uma história, de ter vindo de algum lugar e poder voltar para lá, ou continuar, um dia, ou sem esperança. Sem esperança de quê, acabei de dizer, de me ver vivo, e não apenas uma cabeça imaginária, um seixo destinado à areia, sob um céu que muda…”, mas que insiste nesse seu ofício supremo.

O que está por trás desta imobilidade de Beckett é a impotência diante da linguagem, da criação e da narração. Mas essa “falha”, essa “tentativa que falhou”, segundo o autor, é o que pulsiona o fazer literário. (Try again. Fail again. Fail better).

Textos para nada é um livro hermético, duro, imóvel, mas maravilhoso. Um livro que relê e revisita as próprias obras de Beckett, além de continuar buscando inesgotavelmente por alguma possibilidade e/ou salvação humana, narrativa e literária. Este livro de Beckett (assim como todos os outros) deve continuar sendo relido e discutido ainda por muitos e muitos anos.

Textos para nada
Samuel Beckett
Trad.: Eloisa Araújo Ribeiro
Cosac Naify
77 págs.
Samuel Beckett
Foi dramaturgo e romancista irlandês. Nascido em Dublin em 1906, recebeu o Prêmio Nobel em 1969, e faleceu em Paris em 1989. Escrevia em inglês e francês, e realizava suas próprias traduções, aprimorando, revisando e modificando seus próprios trabalhos.
Jacques Fux

Venceu o Prêmio São Paulo de Literatura de 2013 com o livro Antiterapias. É doutor e pós-doutor em Literatura Comparada e um matemático apaixonado. Autor de Literatura e matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o Oulipo (Prêmio Capes de Melhor Tese do Brasil de Letras/Linguística), Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor e Meshugá: um romance sobre a loucura. Foi pesquisador-visitante na Universidade de Harvard e escritor residente na Ledig House, em Nova York.

Rascunho