🔓 2021, o ano literário africano

Não faz sentido que as grandes editoras brasileiras aguardem o aval de Paris, Londres ou Nova Iorque para publicarem autores africanos
Ilustração: FP Rodrigues
15/11/2021

* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

O ano que está prestes a findar será registado, sem qualquer dúvida, como o ano literário de África. A razão é chocante, no sentido exaltante do adjetivo: os autores africanos conquistaram todos – todos! – os prémios literários mais importantes do ano. Eis a lista completa:

The Nobel Prize – Abdulrazak Gurnah (Tanzânia);

The German Book Trade Peace Prize – Tsitsi Dangarembga (Zimbabwe);

The Neustadt International Prize for Literature – Boubacar Boris Diop (Senegal);

The Camões Prize – Paulina Chiziane (Moçambique);

The Prix Goncourt – Mohamed Sarre (Senegal);

The Booker Prize – Damon Galgut (África do Sul).

A opção pela língua de Shakespeare para designar os prémios acima mencionados é apenas uma provocação, que cada um interpretará como quiser. Uma pista: uma forma de resistência à colonização é a apropriação e reinvenção cultural dos instrumentos dos colonizadores, a ocupação dos seus espaços e a re-legitimização das suas instâncias.

Posto o que, tentemos olhar de perto os referidos prémios e os seus ganhadores. Uma análise “proto-semiótica” superficial das caras dos premiados confirmará algo que muitos, por vezes, esquecem: África tem várias caras. A principal é negra, mas de várias origens (bantus, khoisan, nilóticos, etc.); tem caras brancas, quer no norte quer no sul; tem descendentes da Ásia, do chamado Médio Oriente até à Índia; tem mestiços, frutos de diversas misturas.

Segunda observação: de todos os autores africanos que, este ano, levaram os principais prémios literários do mundo, apenas a moçambicana Paulina Chiziane (negra) e o sul-africano Damon Galgut (branco) vivem no continente; todos os outros vivem fora de África.

Estas duas primeiras observações permitem, creio, desmistificar certos estereótipos em relação à África e aos africanos alimentados, principalmente, fora do continente. Alguns deles são reproduzidos por bons motivos, pois os milhões de negros que hoje são discriminados pelas classes dominantes dos países para onde os seus antepassados foram levados como escravos precisam de motivos reais, mas também simbólicos, para alimentar a sua luta ingente. Sabemos todos que os mitos também desempenham esse papel. Entretanto, é preciso cuidado para não inventar mitos que podem menorizar e enfraquecer as lutas que é imperioso travar para acabar com todas as injustiças.

Outra leitura a fazer tem a ver, especificamente, com o facto de a maioria dos escritores africanos que, em 2021, ganhou os prémios literários em causa viver fora do continente. Esse facto confirma que morar no exterior, em especial nos grandes centros, abre outras oportunidades aos escritores africanos, por razões que vão das debilidades dos sistemas de educação e ensino ou da exiguidade do mercado literário nos seus países de origem até às variadas possibilidades de acesso (não só ao ensino ou eventualmente ao mercado, mas às condições de vida em geral, incluindo cultural) que os mesmos passam a ter, quando se fixam no estrangeiro. Goste-se ou não, a literatura continua a ser uma atividade elitista.

De todo o modo, o comentário que acabo de fazer não é a única razão para a espécie de “boom” que parece estar a acontecer com as literaturas africanas. É justo acrescentar que esse crescente sucesso se deve também às lutas sociais travadas em todo o mundo pelos diferentes grupos historicamente segregados e discriminados, entre eles as diásporas negras espalhadas em diversas partes do mundo, em especial na Europa e nos Estados Unidos.

Por fim, o sucesso literário dos autores africanos ocorrido no ano que está a terminar terá de obrigar-nos a repensar algumas supostas verdades e “bandeiras” que costumamos agitar, muitas vezes por inércia. Será acertado, por exemplo, continuar a dizer que os escritores negros são marginalizados pelo “sistema” (não esquecer os apostos: branco, masculino e xenófobo) em todo o mundo? Não creio, francamente, que essa generalização continue a fazer sentido neste caso. É preciso, sempre, contextualizar a análise.

Para resumir, direi que a situação dos escritores negros naturais de África, mesmo residentes no estrangeiro, ou mesmo a dos escritores afro-americanos (estadunidenses), não é exatamente igual à dos escritores negros sul-americanos, principalmente. Estes últimos, como é o caso dos autores negros brasileiros, ainda continuam a ser fortemente marginalizados, muito mais do que aqueles. O tema merece um artigo à parte, que talvez venha a escrever futuramente.

Seja como for – e como escrevo para um jornal brasileiro –, há um ponto que é possível abordar, a fim de relacionar o sucesso internacional dos autores africanos em 2021 e a realidade cultural e literária do Brasil e, assim, fechar o presente texto.

Começo com uma pergunta: quantos escritores africanos são regularmente publicados no Brasil? E por que editoras? Não fiz nenhum levantamento acurado acerca disso, mas não errarei se disser que são muito poucos e que, na maior parte dos casos, têm sido publicados por pequenas editoras, ligadas sobretudo aos setores negros e afro-brasileiros. As grandes editoras publicaram um número quase nulo desses autores. A imprensa mainstream sequer os conhece, salvo um ou dois. A demonstração de ignorância dessas instâncias em relação a Abdulrazak Gurnah, prémio Nobel deste ano, por exemplo, chegou a ser patética.

Outro exemplo: a maior parte dos livros de Paulina Chiziane, último prémio Camões, foi publicada no Brasil por uma pequena editora “negra” de Belo Horizonte, a Nandyala, mas ninguém na chamada grande imprensa o referiu.

Previsivelmente, a situação começará a mudar mais ou menos em breve. Puxando a brasa ao meu cacusso, para parodiar a portuguesíssima expressão que, ao invés de “cacusso”, menciona um peixinho chamado “sardinha”, espero que as editoras brasileiras comecem por olhar para a produção literária dos países africanos de língua portuguesa, não só por não ser necessário tradução, mas também porque a realidade desses países é muito semelhante à do Brasil, salvaguardas, claro, as devidas diferenças.

Não faz sentido, de facto, que as grandes editoras brasileiras aguardem o aval de Paris, Londres ou Nova Iorque para começarem a prestar mais atenção aos autores africanos. Mesmo para conhecerem a produção desses escritores, mas que escrevem em outras línguas que não o português, podem consultar as dezenas de excelentes revistas, jornais, saites (querido editor, deixe passar este neologismo) e blogues literários que existem atualmente em África. Terão boas surpresas.

O mercado literário (isto é, as editoras, a imprensa cultural, os críticos, as livrarias, os agentes, os produtores culturais e os organizadores de festivais) brasileiro que preste atenção à “profecia” do angolano Agualusa, um dos raros autores africanos de língua portuguesa conhecidos do grande público local, nas suas redes sociais, a propósito do facto de, em 2021, os africanos terem ficado com todos os prémios literários importantes: – “A partir de agora vai ser como a maratona – ficamos com tudo!”

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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