1922: um ano-chave

Desejo resgatar uma polêmica fundamental acerca da relevância dos meios modernos de comunicação na produção e difusão da cultura
James Joyce lançou “Ulysses” em 1922
04/11/2020

Nesta coluna, gostaria de considerar um ano-chave no ambiente britânico: 1922. Na verdade, desejo resgatar uma polêmica fundamental acerca da relevância dos meios modernos de comunicação na produção e difusão da cultura. O resgate desse conflito de visões ilumina desafios contemporâneos, dada a onipresença do universo digital e das redes sociais.

Claro, 1922, de igual sorte, foi o ano-evento da cultura brasileira no século 20, embora, em geral, somente recordemos da Semana de Arte Moderna, ocorrida em fevereiro, momento icônico de ruptura com o passado. Contudo, dois outros eventos do mesmo ano caminharam em sentido contrário. Em agosto, o Museu Histórico Nacional foi fundado a fim de promover a conciliação simbólica entre passado monárquico e presente republicano. No dia 7 de setembro, inaugurou-se no Rio de Janeiro a Exposição do Centenário da Independência, cujo êxito fez com que permanecesse aberta até o mês de março de 1923. Sua ênfase, claro está, repousava na união nacional. Signos em rotação oposta, como se percebe. No campo político, os vetores também se opunham. Ora, se no dia 25 de março, fundou-se o Partido Comunista — Seção Brasileira da Internacional Comunista, em 5 de julho explodiu a primeira de uma série de revoltas tenentistas, a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana. De um lado, a promessa de ruptura radical, que nunca se concretizou; de outro, a insatisfação de jovens militares, que chegou ao poder em 1930.

(Ano-oxímoro, portanto.)

No universo da literatura anglo-saxã, 1922 é denominado o annus mirabilis, em virtude da publicação de várias obras-primas. Virginia Woolf lançou Jacobs room; James Joyce, Ulysses; T. S. Eliot concluiu o poema-matriz The waste land, além de fundar a revista The Criterion. Nas palavras de Ezra Pound, tratava-se do Ano Um da Nova Era.

(Nada menos!)

Na área da antropologia, 1922 também foi um momento decisivo. Bronislaw Malinowski publicou Os argonautas do Pacífico Ocidental, sistematizando de forma pioneira o trabalho de campo, empregando como ferramenta etnográfica a fotografia e formas de registro sonoro. No mesmo ano, Robert Flaherty filmou o primeiro documentário de longa-metragem, Nanook of the North, reconhecido como marco fundador da antropologia visual.

No mesmo ano de 1922 a British Broadcasting Corporation (BBC) foi criada com o propósito de difundir a “alta cultura” para um público totalmente alheio aos círculos elitistas de Oxford e Cambridge. Bastaria sintonizar o rádio na privacidade dos lares das classes média e trabalhadora para ter acesso a palestras, cursos, concertos, adaptações teatrais. Era essa a visão de John Reith, o lendário primeiro diretor da BBC.

(No Brasil, o multifacetado Edgard Roquette-Pinto desenvolveu um projeto próprio com a iniciativa de fundar a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em 1923.)

A reação de muitos foi o ceticismo: o novo meio de comunicação, o rádio, e posteriormente a televisão, parecia hostil ao projeto. Como reproduzir na modesta residência das classes menos abastadas as condições ideais de um teatro, uma casa de ópera, uma sala de concerto, o auditório de uma tradicional universidade? Nesse caso, independentemente do caráter louvável da iniciativa, o efeito não poderia senão levar à diluição da obra, devido à ausência de rigor na forma mesma da transmissão.

A seu modo, esse ceticismo não deixa de ser generoso, pois ele admite a possibilidade de difusão. Especialmente generoso se o comparamos com os ataques francos do mais destacado crítico literário da época, F. R. Leavis. Guardião da tradição, aqui entendida exclusivamente como “alta cultura” (high culture), o autor do clássico The great tradition (1948), foi um opositor radical da simples ideia de ampliar o público das obras-primas da literatura, sua verdadeira preocupação. Arte de iniciados, a mera possibilidade de multiplicação do número dos we few, we happy few, we band of brothers compunha um oxímoro de gosto duvidoso.[1] Muito em breve, a aversão traduziu-se na ácida polêmica que provocou em 1962 ao escrever a diatribe Two cultures? The significance of C. P. Snow.

O ataque ao físico e romancista C. P. Snow foi motivado pela palestra, proferida em 1959, Two cultures and the scientific revolution. O argumento de Snow era cristalino e muito pouco diplomático: no século 20, a ciência passou a rivalizar com a própria literatura em termos de importância na definição da cultura; por isso mesmo, sua proposta de reduzir a distância entre as two cultures. Além disso, é sintomático que a palestra conclua pela seção The rich and the poor, a fim de propor que esse hiato também deveria ser preenchido e a educação científica poderia acelerar o movimento que Snow julgava ser inevitável: “A disparidade entre ricos e pobres foi percebida. E foi percebida de forma mais aguda e nada surpreendente pelos pobres. (…) O Ocidente deve colaborar para esta transformação”, e, para tanto, o diálogo das duas culturas seria indispensável.[2]

O desentendimento entre os dois catedráticos de Cambridge ocultava uma modalidade de guerra cultural que opunha “alta cultura” e “baixa cultura” (high culture e low culture), mas que, no fundo, se desdobrava noutra dicotomia: uma expressão restrita a um círculo exíguo de entendidos ou tornada moeda corrente para um público indistinto por meio das novas tecnologias de comunicação.

No primeiro momento, por isso, o conflito resolveu-se por uma espécie de divisão tácita de territórios: a alta cultura seria preservada na exata proporção de sua recepção restrita, limitada ao pequeno círculo dos iniciados, ao passo que a difusão ampla, assegurada pelos meios de comunicação de massa, implicaria algum nível de perda de densidade característica das expressões menores — ou diminuídas pela própria forma de transmissão.

Contudo, num segundo momento a guerra cultural provocada pelo aparecimento da BBC foi disputada na própria emissora. Agora, não mais no rádio, porém na televisão.

O caso é fascinante — você me dirá se me deixo levar pelo entusiasmo.

Em 1969, a BBC celebrou o advento da TV em cores com a produção de uma ambiciosa série de 13 horas de duração, concebida e apresentada por Kenneth Clark, renomado historiador da arte e diretor da National Gallery. O título da série era uma declaração de princípios: Civilisation: A personal view[3]. Uma espécie de Bildungsroman audiovisual, fora de lugar, e sobretudo de um anacronismo nada deliberado, Clark conduz o espectador a uma peregrinação potencialmente infinita por uma miríade de obras-primas, guardiãs incontestáveis do espírito da Civilização — assim mesmo, letra maiúscula, metonímia da substância a que se pretende aceder.

(O primeiro episódio da série foi gravado em Paris em maio de 1968. Clark caminha majestoso em meio às obras do Louvre enquanto nas ruas da cidade se erguiam barricadas. Sem dúvida, alguma coisa estava fora da ordem.)

A resposta não tardou a ser veiculada na mesma BBC.

Em 1972, o crítico de arte marxista John Berger ofereceu uma resposta modesta, porém certeira: num programa de quatro episódios, Ways of seeing,[4] virou de ponta-cabeça o modelo do aristocrático Kenneth Clark. Na abertura do primeiro episódio, Berger parece estar na seção italiana da National Gallery e, com uma coragem invejável, simplesmente “rasga” o canto superior esquerdo da tela da obra-prima de Sandro Botticelli, Vênus de Marte. Para ser mais preciso, Berger destaca da tela com evidente satisfação o rosto da deusa do amor e da beleza.

Claro: tratava-se de uma reprodução do quadro, pois o que estava em jogo era apresentar ao espectador a ideia benjaminiana da “obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” — noção à qual retornarei ao discutir o conceito de massas digitais e o colapso da democracia representativa. De igual modo, John Berger dialoga com a obra pioneira do historiador marxista da arte Arnold Hauser, A história social da arte e da cultura (1951).

Sintoma esclarecedor: iniciada pelo desconforto gerado pela fundação da BBC, a guerra cultural britânica, e sua oposição dogmática entre “alta cultura” e “baixa cultura”, conheceu seu momento decisivo na programação da televisão.

(Não é difícil imaginar a reação de um F. R. Leavis!)

Como pensar esse mesmo problema no cenário contemporâneo dominado pelos meios digitais?

[1] Não resisto à lembrança do célebre discurso de Henrique V: “We few, we happy few, we band of brothers;/ For he today that sheds his blood with me/ Shall be my brother; be he ne’er so vile,/ This day shall gentle his condition”. Na tradução de Carlos Alberto Nunes: “Nós, poucos; nós, os poucos felizardos;/ nós, pugilo de irmãos! Pois quem o sangue/ comigo derramar, ficará sendo/ meu irmão. Por mais baixo que se encontre; confere-lhe nobreza o dia de hoje”. Shakespeare, William. Henrique V. In: Teatro completo. Dramas históricos. Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 250.

[2] C. P. Snow. Two Cultures. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 42. Esta edição contém uma alentada introdução de Stefan Collini e o texto de 1963, “Two Cultures: A second look”.

[3] A série pode ser vista na íntegra. Eis aqui o primeiro episódio: https://www.youtube.com/watch?v=JxEJn7dWY60.

[4] A série pode ser vista na íntegra. Eis o primeiro episódio: https://www.youtube.com/watch?v=0pDE4VX_9Kk.

 

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho