🔓 Rodapés e notas

As notas podem ser uma conversa imaginária com alguém que precisa saber mais
Ilustração: Thiago Lucas
14/03/2023

Uma vez, numa reunião, falei a uma professora que retiraria ou evitaria todas as notas de rodapé de determinado texto; ou que eu mesma não escreveria aquelas notas, nem no pé da página, nem ao final do escrito; ou que notas de rodapé nos levam a uma leitura interrompida, meio fragmentária, um tantinho desviante, que geralmente me dava uma tonteira, uma indisposição, talvez fosse distração demais, e pior ainda se, por algum acaso, a nota fosse melhor e mais interessante do que o texto principal. Bem, do que me lembro mesmo foi da resposta que recebi em defesa das notas. Disse a professora, infelizmente já falecida, que as notas tinham, sim, sua importância, e deu alguns exemplos de notas que não caberiam no corpo do texto, que tinham um quê de comentário necessariamente exterior, uma espécie de apêndice que não caberia na linha geral.

Lembro bem do respeito que senti pela opinião da professora. Não era bem uma opinião, isto é, não era desinformado ou qualquer coisa, mas era um comentário discordante — do meu — que vinha de uma pessoa leitora, dedicada aos estudos das linguagens, conhecedora de muitos livros, escritora e atenta à composição dos textos, inclusive os que eu lia e usava como referência para meus trabalhos até ali (e além). A fala da professora suspendeu minhas certezas, me deixou um pouco muda, mas pensante, bem pensante, tentando apreender se o que ela dizia fazia sentido para mim, se me demovia da minha primeira ideia, se era apenas uma questão de conciliação ou se seria substituição mesmo. Se minha certeza era férrea, ou algo mais plástico, que pudesse ser remodelado conforme as conversas que eu ia tendo ao longo do dia, da semana, da vida. Pensei um pouco sobre as notas de rodapé. Imaginei algumas realmente necessárias. Passei a achar que caso a caso era o melhor modo de avaliar, examinar, considerar. Deixei de lado certa presunção juvenil, mas nunca fui ruim nisso. Ouvir pode ser uma das minhas qualidades, quem sabe?

Recentemente, tive de estudar inteiro um livro conhecido sobre paratextos editoriais, de um estudioso francês chamado Gérard Genette. Nas Letras ele circula com bastante facilidade, ou ao menos é citado em todo canto, mesmo que não seja efetivamente lido (sabemos como acontece). Em um dos capítulos, o autor se dedica às notas, subdividindo-as em tipos e, mais importante, enganchando-se em um debate que nos tonteia de um jeito gostoso: nota é algo do texto ou é parte do que está fora dele? Diríamos, em bom português: depende. Conforme a nota, em especial se ela é escrita pelo próprio autor ou autora do texto, ela pode ser muito semelhante ao que poderia ter sido escrito entre parênteses, ou faz parte, sim, do corpo “principal”. Em outros casos, ela é claramente algo como um apêndice, um anexo, um extra, em especial se foi escrita por outros, tais como editores, tradutores, comentadores de toda sorte. E aí entram mais elementos nesta equação difícil: se foi escrita já desde o original, na primeira publicação de um livro; se apareceu depois; e mesmo muito depois, inclusive postumamente. E assim vamos tratando de pensar que o “depende” é a resposta mais sensata a muita coisa neste mundo.

Uso, afinal, notas, às vezes em profusão. Houve textos em que precisei explicar o que ia já explicado no corpo principal, mas que precisava de mais detalhe ou já me blindando de alguma crítica ou incompreensão; a nota se assemelhando a uma conversa imaginária com alguém que precisa saber mais, que pode querer uma explicação, que talvez não entenda bem, no sentido que quero manter. Ou a nota como uma intromissão, um distrator da leitura corrente, em direção à leitura coerente. Ou é apenas o que pensamos quando escrevemos e temos esse desejo pré-frustrado de que a leitura seja uma espécie de duplo perfeito do que queremos dizer. E quem disse que controlamos completamente o que dizemos?

Recentemente a discussão sobre notas voltou quente, em especial quando, ao editar textos literários, pensamos se devemos ou não explicar, associar, desassociar, provocar, realinhar órbitas. Ou deixamos que o leitor/a leitora se desviem quanto quiserem? Ou passeiem mais livremente por um texto sem puxadinhos; ou sejam atiçados por números sobrescritos e asteriscos que os tirem de uma camada e levem, rapidamente, a outra? Para quê? E estamos presumindo que leitor/que leitora?

De repente, dei com as notas da edição brasileira das Flechas, de Matilde Campilho. Notas-jogos, notas-provocação, notas-enciclopédia, notas-fímbrias, notas-dúvida, notas que respondem mal, notas que nos põem à deriva em vez de melhorar a navegação. E que bom. As notas sempre pegando no meu pé, além do pé da página. As notas vão e vêm, necessárias ou irrelevantes, ensinando que dentro de uns dizeres há outros. Minha professora, onde quer que descanse, tinha razão em defender as notas, ou ao menos em não me deixar jogá-las fora assim tão facilmente. Cabe nota, cabe uma dedicatória, agradecimento, asterisco.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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