Luiz Antonio de Assis Brasil

"A transcendência pode conviver com a barbárie. Isso nós temos dentro de nós. Somos seres transcendentes e ao mesmo tempo muito humanos, isto é, muito bárbaros."
Luiz Antonio de Assis Brasil. Foto: Gilson Abreu
01/09/2006

O terceiro encontro do projeto Paiol Literário — realizado em parceria entre o Rascunho, o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba — trouxe em agosto a Curitiba o escritor gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil. Durante mais de duas horas, foram discutidos os caminhos para a formação de leitores, a construção literária, o mercado editorial, entre outros assuntos. Acompanhe aqui alguns momentos do evento que mais uma vez lotou o Teatro Paiol.

• O prazer da leitura
Eu não sou uma pessoa brilhante. Vocês vão sair muito decepcionados. Estou antecipando isso. Minha vida não tem muita importância. Sou um pouco assim como a República de Andorra. Não tenho história. Mas vou procurar, com a minha ficção, ajudar um pouco isso aí. Essa pergunta, sempre fazem. Principalmente meus alunos, e quando não fazem, eu provoco. E eu penso um pouco sobre aquilo do [Wolfgang] Iser, o teórico. Ele fala das três funções da literatura, que eu acho que, no final, são funções reais. Que são o prazer da leitura, o prazer que dá ler um romance, um poema, um conto; o conhecimento que a literatura dá, ela aumenta o nosso universo de conhecimento do mundo; e a catarse, a transformação que pode realizar em nós. Então, parece que essas três funções explicam bastante o que é a literatura dentro de uma perspectiva que eu sei que é teórica, mas que também pode ser vista no plano prático. A gente insiste muito na questão do prazer da leitura, e eu vejo muitos professores amargurados porque me dizem: “Eu não consigo fazer meus alunos terem prazer na leitura”. Eu digo: “Bom, o que tu dá para eles?“ “Bom, eu estou estudando A pata da gazela.” E eu digo: “Bom, eu acho que o caminho aí não é tanto do prazer da leitura, mas pode se pensar assim: Vocês lendo esse livro vão conhecer o Rio de Janeiro do Segundo Império”. E quando eu penso no lado transformação, penso em duas obras. Uma do século 18, que é do Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, e penso numa obra atual, que é O código Da Vinci. Até estou estudando com meus alunos essas duas obras sob o aspecto da recepção. Porque o Werther foi o primeiro best-seller da história. Foram vendidos milhares de exemplares quando foi lançado, no século 18, e eles transformaram pessoas. Agora, eu me tornei numa espécie de especialista n’O código Da Vinci. Isso me lembra um pouco a história do homem que sabia javanês, o conto clássico do Lima Barreto. Os meus superiores na minha universidade me pediram para fazer uma conferência sobre o Código. Numa das palestras, eu terminei de falar — e falei sobre isso da transformação que a literatura opera — e um jovem me pediu a palavra e disse: “Olha eu terminei o Código e fui internado num hospício”. Como assim?, eu perguntei. “É, eu fiquei louco e meus pais me internaram.” E disse o nome da instituição, tradicional em Porto Alegre. Eu disse: “Como foi isso?” Ele respondeu: “Sim, porque me disseram que tudo o que eu pensava sobre a vida, sobre a minha religião, tudo veio por água abaixo, não senti mais apoio em nada e enlouqueci”. Então penso isso: a função catártica da literatura, de transformação, e o prazer da leitura, que vocês conhecem. É aquela coisa de querer voltar para casa, porque aquele livro está lá, nos esperando e estamos loucos de vontade de saber como ele continua, ou nos deliciarmos com um poema.

• A descoberta do prazer da leitura
As coisas no meu tempo de infância e adolescência eram um pouco diferentes. Naturalmente. Como só poderiam ser. Os veraneios eram intermináveis. Começavam em dezembro e iam até março. Hoje são 20 dias. Íamos para uma praia, meu pai optou por uma praia onde não havia água, luz, nada. Fora da civilização. Bom, o que eu fazia? Ia à biblioteca do meu colégio, dos jesuítas, no Colégio Anchieta. Naquela época, o Eça de Queirós ainda estava no índice dos livros proibidos pela igreja católica. Mas havia um jesuíta lá, meu professor, que tinha o Eça. E fui pegar uns livros e ele disse: “Vou te dar o Eça”. E eu, bobo, bom aluno de religião, disse: “Não é proibido?” E ele: “Mas ninguém fica sabendo, põe dentro da tua pasta”. E aí me deu A relíquia, do Eça. Eu tinha 14 anos. Foi realmente espantoso. O prazer da leitura eu nunca vou esquecer. Então, armei uma tenda no meu quarto e ali passei lendo A relíquia. Depois fui ampliando. A literatura realista. Logo pulei para o Machado, e por aí foi. Fundamentalmente romance. Meu pai lia muito conto. Mas tinha uma visão de conto daqueles finais surpreendentes, que viravam tudo e tal. E achava graça naquilo e lia e curtia muito. Mas eu não achava muita graça, não. Aqueles finais eram um pouco, enfim, despropositados e tudo o mais. E vieram os russos. Realmente começou pelo prazer. Depois, a leitura me ampliou o conhecimento do mundo.

• Livros marcantes
Acho que foi o Madame Bovary. De uma outra realidade, completamente diferente. E Os irmãos Karamázov. Esses dois livros, como conhecimento, foram espantosos. Depois serviram como conhecimento para escrever romances. Quando comecei a escrever, não existiam oficinas literárias. Por outro lado, os escritores estabelecidos da geração anterior à minha — o Erico Verissimo, o Dyonélio Machado, esse pessoal — tinham muita dificuldade de entender essas coisas. Eu disse: “Eu tenho de aprender”. Lia muito o Autran Dourado, um belo escritor. E telefonei para o Autran, consegui o telefone dele, miraculosamente, e disse: “Olha, eu gostaria de fazer uma visita”. E ele: “Por quê, meu filho?” “Para discutir alguns romances seus.” “Que curioso”, ele disse. “Pode vir hoje de tarde.” “Não, estou em Porto Alegre.” Marcou para uma semana depois. Eu fui de ônibus até o Rio, era um jovem estudante. E o Autran me recebeu muito bem. E fui com os livros dele todos, todos anotados. Muitas coisas ali que eu queria esclarecer com ele. Por que ele usava só o verbo dizer? Perguntei para ele. Fulano disse, disse Fulano, disse a personagem. “Por que é que o senhor usa só o verbo dizer?” E ele: “Ah, você se deu conta disso? Até agora ninguém se deu conta. O que é muito bom. Só uso o verbo dizer porque ninguém o lê. Se eu escrever ‘respondeu, resmungou, exclamou’, aparece o meu truque”.

• O início como leitor
Aos 17 anos, estava fazendo o curso clássico. E no terceiro clássico, nós líamos Lamartine, Victor Hugo, tudo no original. Não se estudava mais a língua portuguesa porque já sabíamos a língua portuguesa. Estudávamos literatura francesa, literatura inglesa. Lemos todo o Paradise lost, do Milton. Foram sete anos de latim, quatro anos do ginásio e três do clássico, com três horas semanais. Então, isso foi realmente decisivo para mim. Minha mãe era musicista; meu pai, veterinário. O livro não era uma presença muito forte na minha casa, mas na escola sim. Foi lá que tudo começou. Aí comecei a fazer redações e todo mundo gostava. E também, mesmo no curso mais elementar, no curso primário, também eu fazia umas redações boas e havia muito incentivo. Interessante é que em 1956, quando se comemorou o cinqüentenário da aviação, em todas as escolas da rede pública do Rio Grande do Sul, houve um concurso de redação. Todos os estudantes da rede deveriam fazer uma redação no mesmo dia. Ganhei o primeiro lugar. Eu tinha 11 anos. E foi realmente a escola que me levou a isso. Aí veio esse concurso e abandonei a literatura aos 11 anos. Porque eu não tinha mais nada para dizer.

• A carreira de músico
Eu era músico da Sinfônica e era músico de estante. Quer dizer, de estante. Então eu tocava ali, na segunda estante, não estava tão longe, mas nem tão perto do maestro. Sinfônicas têm hierarquias muito fortes, os músicos que tocam mais próximos do maestro são teoricamente os que tocam melhor e, portanto, ganham mais. E aí a coisa vai se tornando mais rarefeita. Eu estava ali na segunda estante dos violoncelos. Mas aquilo me incomodava muito. Claro, eu estudava muito, procurava desempenhar bem, mas tinha consciência de que nunca seria um solista, não tinha talento para isso. Os verdadeiros artistas são o compositor e o maestro. O músico é o executante. Aquilo me deixava insatisfeito, porque eu ficava ali entre a criação do compositor e a interpretação do maestro. Onde é que eu fico?, eu perguntava. Aí a literatura voltou. E assumiu uma proporção maior. De modo que eu posso dizer mais com a literatura do que com os meus modestos recursos de músico.

• Espaço na literatura
Eu parto do princípio de que na literatura há espaço para todos. Quem gosta de conto, romance, crônica, poesia terá o seu autor preferido. E mais: esse autor preferido é sempre rotativo. Por exemplo, o meu preferido agora é o Pascal Quignard. E chegará um momento em que direi que ele não me diz mais nada. Na literatura, há mais espaço para todos. E eu noto, ultimamente, especialmente entre jovens escritores, um pouco dessa competição que, às vezes, é até um pouco desleal, mas sinto neles uma determinação que a minha geração não tinha. Eles querem ser escritores. E entram para a oficina e dizem: “Assis, estou aqui porque quero ser escritor, vou abrir mão de tudo para ser escritor”. Isso não havia. Não. Era: O que vou fazer? Primeiro, achar um emprego para mim. Foi um pouco do que eu fiz. Fiz um curso de Direito. Depois, dar aulas na universidade. Foi uma coisa certa. Mas o fato é que era assim. O Moacyr Scliar é médico. Então todos têm uma profissão decente, têm que ter. De modo que os jovens escritores não pensam assim. Não vou ter um emprego que vai me tirar cinco ou seis horas de prática da minha escrita. Acho interessante, mas é uma opção arriscada.

• O ritmo da escrita
Tem uma passagem do Confissões em que Santo Agostinho diz assim: “Eu estranhava muito porque, quando chegava para ter aulas com Mestre Ambrósio, ele estava olhando para um texto, mas lia com seu coração, porque sua boca não se movimentava”. Então, muitos atribuem a Santo Ambrósio esse aperfeiçoamento que a gente adquiriu, essa conquista da leitura silenciosa. Aliás, isso no desenvolvimento da própria existência humana também é assim. A criança, quando começa a ler, lê sempre em voz alta. Depois lentamente adquire a leitura silenciosa. Então, nós lemos, guardamos dentro de nós resquícios dessa leitura em voz alta. Eu estou por vezes acompanhando com a respiração, e pensando em finais de livro, quando penso: o compositor Rachmaninov assinava seus finais de música sempre com pan-pan-pan-ran-ran. Eu também tenho procurado isso, especialmente nas últimas frases dos meus livros, gosto de dar uma cadência. Pena que eu não tenha de cor os meus livros, mas, me lembro de O pintor de retratos, por exemplo, em que eu mais trabalhei. Fiquei uma semana com aquela frase final no computador, sozinha, e eu ia e voltava, e mexia, colocava uma palavra, tirava outra e cheguei numa coisa assim: “E com olhos que tanto viram e tanto amaram, percebeu a solidez terrestre dos campos e a placidez eterna das luzes”. Aí, achei. E tem aquela passagem, tem uma passagem clássica que é uma carta que o Flaubert escreveu para aquela sua apaixonada eterna. Ele estava publicando em folhetim Madame Bovary, antes de publicá-lo em livro, e na carta ele diz assim: “Imagine que recebi aqui aquele diretor de jornal que veio me pedir humildemente que eu tirasse o nome do seu jornal do meu livro, quando fosse publicá-lo. Eu fiquei indignado com aquele homem. Isso é coisa que se faça?” Bom, tudo bem. Flaubert está se queixando do cara interferir na criação dele, a gente pensa. Mas aí ele termina assim: “E as minhas frases, como é que vão ficar?” Ele estava pensando no ritmo daquelas palavras! Ele construiu frases a que esse ritmo pertencia. Há gente que pensa que o ritmo é só da poesia. Não é. Isso eu vejo com meus alunos.

Luiz Antonio de Assis Brasil. Foto: Gilson Abreu

• O escritor e o teórico
Eu vivo literatura 24 horas por dia. Ou dando aula de literatura ou escrevendo. É uma coisa boa. Mas na hora de escrever, procuro fazer com que isso [a teoria literária] não atrapalhe. Mas às vezes, se eu me descuido, realmente me atrapalha. E vou me dando conta. De onde é que surgiu aquilo? Aí vêm aquelas categorias teóricas e tal. Mas tem um dado aí que eu acho muito importante. Hoje, os escritores estão saindo das universidades. Saem, não se retiram das universidades. Pertencem à universidade, são oriundos da universidade, são acadêmicos. É uma tendência mundial. Veja os escritores americanos, pode pegar qualquer um desses aí, são professores da universidade não sei o quê. Mesmo que seja professor de escrita criativa. Então, os escritores hoje são pessoas ligadas à universidade, que podem refletir sobre o seu próprio trabalho. Há uma maior sofisticação, no mau sentido, do texto, e talvez uma diminuição no número de leitores. Quando a gente vê a chamada literatura pós-moderna, que é sem personagem, sem intriga, sem conflito, sem nada… E depois se queixam de que não têm leitores. É quase sem literatura também! Então não dizem nada, mas nada, rigorosamente nada. Então, normalmente vamos encontrar o acadêmico. Tem essa dupla face da coisa. Ela é boa por um lado, mas é má por outro. Porque esses escritores muitas vezes perdem a vitalidade literária. Aquele componente de certa perversidade, que o escritor tem de ter. Desaparece um pouco. Vira uma coisa meio anódina. E a gente não sabe bem o que está acontecendo, qual é o ponto, o problema, o que está sendo discutido. E muitas vezes não está sendo discutido nada. E eu não penso como Benjamin, quando ele dizia que mesmo a literatura intimista é social na medida em que revela um desconforto do criador. Não acredito nisso.

• A morte
A morte é um dos pratos preferidos da literatura. O que aconteceu comigo foi isto: fiquei muito doente. E isso foi há muitos anos. Há mais de três décadas. E eu estava muito mal, precisei ir para o hospital, e estava com um diagnóstico errado, foi uma coisa horrorosa. Um amigo meu, médico, fez umas radiografias, e disse: “Olha vou ter de fazer uma cirurgia agora”. Eu disse: “Bom, mas o que tu pensas sobre isso?” Ele disse: “Não sei. Estou confuso. Vou ter que intervir”. É duro ouvir isso. Foi uma coisa terrível. Quando acordei, tive aquela sensação: morri, estou no céu, tudo branco em cima, luzes diretamente nos olhos, uma coisa horrorosa. Aí me dei conta de que havia sobrevivido. Naquele tempo, a recuperação cirúrgica era uma coisa lenta. A gente ia para casa e ficava três meses ali, era um horror. E eu estava na orquestra. Via minha mulher sair para trabalhar, minha filha sair para a escola e eu sozinho em casa. Bom, pensei, vou enlouquecer. Tem aquela coisa: depressão pós-cirúrgica. Eu tinha algumas idéias e resolvi pô-las no papel. E aquilo me reacendeu o gosto pela vida. E terminei aquilo e pronto. Nem sabia o que era. E achava uma coisa ruim. Possivelmente era. Até que minha mulher disse: “E aí, terminaste o livro, e o que tu vai fazer?” E eu disse: “Nada, é muito ruim”. Aí ela leu. Ela é uma mulher muito veraz, uma pessoa rara, cruelmente veraz, e ao mesmo tempo é uma leitora excelente. Leu e disse: “É, realmente não é uma obra-prima. Mas pode ser publicada. É um primeiro livro”. “É, mas mesmo assim, não vou publicar”, respondi. E deixei numa gaveta. E aconteceu. Passados uns três ou quatro meses, recebi uma carta do Instituto Estadual do Livro. Abri e estava escrito assim: “Caro escritor. Viemos comunicar que seu livro foi aprovado para publicação”. Foi uma traição da minha mulher. Ela tirou uma fotocópia do livro, escondida, e o mandou. Então não é o que eu vejo nos meus jovens alunos. Eu quero ser escritor. Quando penso nos escritores da minha geração, o Sérgio Faraco, o Luis Fernando Verissimo, o João Gilberto Noll, nenhum de nós teve a intenção de ser escritor.

• Método de criação
Meu terceiro livro, Bacia das almas, cheguei a escrever 22 páginas num dia. É uma estupidez, uma irresponsabilidade total. Hoje, escrevo cada vez mais lentamente. Cada palavra, eu penso muito antes de pôr no papel. É possível que com isso se perca muito da vitalidade da obra. Acho que ela ganha esteticamente. A partir dessa minha preocupação, que eu acho que começou com O pintor de retratos, é que passei a ter premiações que não tinha antes. O Portugal Telecom, o Jabuti… Ocorreram depois de uma alteração estética bastante forte que eu tive com O pintor de retratos. Eu estava insatisfeito com o que escrevia. Eram períodos gramaticais muito longos. Muita utilização de ordem inversa. Um certo barroco de que muitos gostavam. Meus leitores antigos gostavam daquilo. Mas eu estava insatisfeito. Mas eu tinha de mudar. E por uma razão acadêmica, eu tive que reler um livro que eu havia lido no Colégio Anchieta, Cantares Del Mio Cid. Abri o livro e disse: “Mas era isso que eu procurava”. É uma linguagem medieval, um dos romances mais importantes desse período medieval. Então El Cid andou durante toda a tarde. Ponto. Trouxeram-lhe dois cavalos. Ponto. Eles escreviam pouco porque o material de escrita era muito caro, então tinham de comprimir muito. O pergaminho era muito caro. Não só as palavras eram abreviadas. O próprio texto ficava enxuto. Os capítulos são pequenos. Vinte linhas. Eu disse: “Claro, ele já descobriu isso há 800 anos”. Aí é que está. E me lembrei das histórias da Bíblia. São modelos de contenção, de encarceramento da palavra, de essencialidade, fundamentalmente. Se tirar uma palavra da frase, ela não existe mais. Então, eu disse: “É isso. Eu preciso recuperar essa essencialidade original da literatura”. Não minha, mas da literatura. Porque a Bíblia consegue transformar o mundo dessa forma. Os Cantares se tornam uma obra de referência do cânone do ocidente. Conseguem emocionar. É muito simples. Eu estava escrevendo demais. Então passei a escrever menos. Meus romances se tornaram menores. Meus períodos gramaticais se tornaram menores. Não há excessos. Exceto excessos deliberados. Posso fazer um capítulo inteiro sobre um movimento de uma pluma, sobre a cabeça de um cavalo. Excessos deliberados. Porque um livro pode ter 80 páginas e ser excessivo. Pode ter 600 e ser essencial. Então, a coisa passa pela linguagem. E depois eu assumi essa alteração, digamos, lingüística, frasal, que também é uma alteração de conteúdo. Mas isso me leva a escrever muito mais lentamente, pensar muito, cada palavra é muito importante, então eu penso nos sinônimos… Aí não são só sinônimos, como a gente sabe. Achar a palavra que diz exatamente a coisa que se quer dizer. Procuro trabalhar com substantivos concretos, adjetivos concretos. Se for tratar com abstrato, coloco um adjetivo abstrato junto com um substantivo concreto. Cria-se uma realidade nova. Pronto. Transforma-se uma coisa banal em algo original. Eu proponho muito isso aos meus alunos. […] Vejo colegas meus que pegam os livros e retocam, em edições. O Josué Montello retocou e retocou e retocou seus livros. Se desfiguraram. Eu nunca poderia fazer isso. Não consigo. E quando abro um livro há sempre uma barbaridade. Coisas que me incomodam e tal. Então, até nem os tenho na minha estante. Estão num armário. Claro que isso deve ter uma explicação mais profunda. Onde eu não quero chegar. Mas, na verdade, o livro que estou escrevendo sempre é o melhor. Aliás, vou dar um conselho: quando forem elogiar um livro de um escritor, nunca digam que o primeiro livro dele é o melhor, nunca. Nem que o do meio é o melhor. Vocês têm de mentir. Têm que dizer: “O último livro é o melhor de todos, é o seu melhor livro”. Mas se quiserem aperfeiçoar isso, digam: “O melhor é o que você está escrevendo agora, esse será melhor ainda”.

• Adaptação para o cinema
Nos três casos quiseram que eu lesse o roteiro. Não li. Em primeiro lugar, porque não vão me pagar por isso. Já começa por aí. Segundo, que eu não entendo. E em terceiro, eu tenho preguiça e quero ter a surpresa de assistir e ver como é. E também me convidaram para assistir a um dia de filmagem. O Luiz Carlos Barreto tanto insistiu que eu assisti a um dia de gravações. E não deveria ter feito isso. Até porque o que eu assisti não foi posto no filme [A paixão de Jacobina]. O diretor tem todo o direito de fazer o que bem entender. Ele tem de ter uma fidelidade só, que é a fidelidade a si mesmo. Realizar um bom filme. Antes de mais nada, o filme tem de ser bom. Se é fiel ou não ao livro, é uma questão secundária. Eu não me considero o proprietário. O título do filme mudou de Videiras de cristal para A paixão de Jacobina. Eu achei interessante, até melhor que o meu título. Aí o meu editor me telefonou. Me disse: “Assis, é o seguinte…” E estava cheio de onda para falar. “O que é? Não tem dinheiro para me pagar?” “Não, a gente está pensando sobre Videiras de cristal, em função do filme…” “Qual é o problema?” “Não é que a gente… Não te importarias se a gente pusesse assim A paixão de Jacobina e, embaixo, Videiras de cristal?” Aí eu estava assim, no telefone, e minha mulher, no computador. Eu relatei isso, isso e isso a ela, o que tu acha? Ela ergueu os ombros e continuou escrevendo. “Vai ser bom para a editora?”, perguntei. “Sim! Vai vender mais”, disse o editor. E o editor se animou. “E, aí, vai ter mais direitos autorais para você ganhar.” E eu: “Mas não vai ficar chato depois?” E me lembrei de uma coisa ridícula: a ficha catalográfica nas bibliotecas. E ele: “Isso não é problema. Não é mesmo”. Mas daí, um pouco de pudor da minha parte… Disse: “Então fica uma edição assim. Depois a gente volta para o título antigo”.

• A crítica
Na maioria das vezes, o leitor tem razão. Tem razão mesmo. Crítica desfavorável faz parte da trajetória de todo escritor. Alguns ex-alunos meus começam a publicar, sai um negócio, querem morrer. Eu vou lá, meio paternal. Cito exemplos históricos. Claro, não ajuda nada. Aí eu digo: “Crítica não se responde. Não se responde. A gente se manifesta, diz que agradece a atenção, ótimo”. A melhor resposta, a meu ver, foi dada pelo Eça ao Machado quando este escreveu uma crítica pavorosa numa revista literária, O Cruzeiro, do século 19. Machado fez uma crítica pavorosa ao Primo Basílio. Não sobrou nada do livro. Machado começa dizendo que ele é o maior estilista da língua, tudo o mais… E depois vem um pau que não sobra nada. O Eça escreveu uma carta para ele, e disse que agradecia muito o interesse que ele teve em ler a obra, e enfim considerava interessante, tinha muitos pontos de vista interessantes. Porque a meu ver foi algo saudável. E não se conhece a resposta do Machado, se é que ele respondeu. Me parece muito saudável. Temos que ver isso com muita naturalidade. E não pensar assim: Não, escreveu mal e agora? Está sem razão. Não é isso. Eu já tive críticas desfavoráveis, como todo escritor. Com algumas delas, eu aprendi.

• Incentivo à leitura
Eu acho que há um elemento absolutamente fundamental: o nível de vida das pessoas. No momento em que houver uma distribuição maior de renda vai se ler mais. Isso é natural. Todo país rico lê muito. A leitura ensina. Então isso tudo é um processo que deriva da condição de vida das pessoas. Claro, aqui no Paraná, no Rio Grande, em Santa Catarina, temos uma distribuição razoável de renda, temos a maior classe média do país, a que lê. Então me parece que esse dado é muito relevante. Mas há os atalhos. Eu acho que o caso do Rascunho é um exemplo típico do que forma o leitor. Isso claramente. Suplementos literários em jornais, tudo isso é muito importante. E nesse sentido as oficinas literárias constituem um dos mecanismos a mais na formação do leitor. Em 21 anos, passaram pela minha oficina 680 alunos. Eu fiz uma pesquisa, mas uma pesquisa realmente científica, tinha dois auxiliares de pesquisa. Dos alunos, 17% continuam escrevendo depois da oficina. Mesmo que não publiquem. E se a gente pensar que eu tenho, digamos, um número em torno de 60, 70, de ex-alunos que já publicaram livros, então são 10% que publicaram livros. Então a gente pensa assim: Bom, eu acho que é razoável. Acho bom, um nível muito bom. E os outros 90% se tornaram muito bons leitores. Então me parece que essas experiências de oficina de criação literária têm essa dupla face. Por um lado, podem formar escritores, mas sem dúvida, todos eles saem melhores leitores.

Luiz Antonio de Assis Brasil. Foto: Gilson Abreu

• Literatura de entretenimento
O que eu penso sobre literatura de massa? Quem primeiro levantou essa questão no Brasil, a meu ver, salvo erro, foi José Paulo Paes. Um artigo que deve ter uns 30 anos, mais ou menos. E o centro da coisa era o seguinte, ele dizia: “Nos faltam no Brasil escritores de entretenimento. Nós não temos. E por que não temos? Por que não tê-los?” Dizia ele que os escritores brasileiros queriam ser muito artistas. E acabavam não tendo leitores. Então, nesse artigo ele dizia: “Por que não o escritor brasileiro fazer um livro que a pessoa leve para ler na praia e depois jogue fora?” Na época, eu ainda não tinha visto alguém falar isso, alguém daquela representatividade. Aquilo me impressionou. Tenho amigos que pensam de maneira diferente. Meu argumento, entre outros, é: normalmente essa literatura de massa vai dar origem a leitores mais exigentes. Eu penso isso. Eu tenho exemplos muito próximos a mim em que isso aconteceu. Essa literatura de massa acaba dando reforço de caixa para editoras poderem publicar outros autores, não tão vendidos. Isso é relevante. Acho muito relevante. Para a indústria cultural é importante. Então é assim: é preferível que a gente veja um livro desses na mão de um leitor, do que livro nenhum. Não sou contra. Não é o que me satisfaz realmente. Já sei o que vai acontecer dali a 20 páginas. Depois já sei. Pronto. Tudo construído em cima de clichês narrativos, não é? Mas são eficientes. Os americanos já descobriram isso. Eles usam muito esse conhecimento que a literatura produz. Eu vejo isso com muita naturalidade. Não sou contra. Não leio, ou leio quando sou obrigado.

• Agente literário
No sistema literário brasileiro, só agora estão começando a trabalhar os agentes literários. É algo extremamente novo e necessário. É o agente literário que vai procurar o editor. O agente vai mandar fazer uma tradução para o inglês de um capítulo do livro, mandar para as editoras, que não lêem em língua portuguesa. Lêem em espanhol ou em inglês. O agente literário é muito importante. Nós vivemos numa situação, no nosso país, que foi bastante prejudicada pela Semana de Arte Moderna. O escritor brasileiro, se a gente pensar aí no Machado, mesmo no José de Alencar, se pensar no Monteiro Lobato, se pensar numa geração um pouco posterior, vamos ver que eles já estavam desenvolvendo uma relação profissional com suas editoras. Na Semana de Arte Moderna, como aqueles meninos eram todos milionários, eles acabaram criando uma coisa promíscua em relação ao escritor, não estavam interessados em profissionalismo. Isso contaminou a vida literária brasileira. Agora é que estamos saindo disso. Com agentes literários. Por acaso, no Brasil, são mulheres. São todas mulheres. Aliás, uma das maiores agências literárias do mundo é de uma mulher, da Carmen Balcells. Mas enfim, eu acho que a entrada do agente literário no sistema literário brasileiro está sendo muito benéfica. Agora mesmo vim lá da Flip, de Paraty, e pude perceber o trabalho dos agentes literários. Vão atrás do editor, oferecem um jantar, oferecem, negociam, discutem contratos. Coisa que o escritor sempre teve pudor de fazer.

Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

Rascunho