Livia Garcia-Roza

“Eu vivo lendo. Faz parte do meu dia. É como caminhar, por exemplo. Eu caminho todos os dias.”
Livia Garcia-Roza no Paiol Literario. Foto: Matheus Dias
01/05/2009

Edição: Luís Henrique Pellanda

A escritora e psicanalista carioca Livia Garcia-Roza abriu a quarta temporada do Paiol Literário — projeto realizado pelo Rascunho em parceria com o Sesi Paraná — no último dia 7 de abril. Livia estreou na ficção em 1995, com o romance Quarto de menina. É também autora de Meus queridos estranhos, Cine Odeon, Solo feminino, Meu marido e Era outra vez, entre outros. Na conversa que teve com o público, no Teatro Paiol, mediada pelo escritor e jornalista José Castello, ela falou sobre como o amor pela palavra interferiu em suas escolhas profissionais, lembrou episódios familiares e de infância e discorreu sobre solidão, medo e sexualidade. Confira abaixo os melhores momentos do encontro.

• Chaves imaginárias
A literatura nos ordena os pensamentos, nos fornece chaves imaginárias. Ela nos mostra outros mundos, abre janelas em nossa vida, nos mostra outras pessoas, vivendo outras situações, outras histórias, outros enredos. Saímos deste nosso mundo mais fechado, individualizado, e nos abrimos a um mundo muito maior, onde há muitas coisas mais. Sobretudo, a literatura faz cidadãos. É uma forma de a gente se civilizar. Então, não conheço nada mais importante, que nos melhore como seres humanos, do que ler livros.

• Seres de linguagem
Antes da internet, era muito difícil ver o jovem escrevendo. Escrever, de um modo geral, assusta as pessoas. Estar diante da página em branco e, agora, da tela em branco lhes dá muito medo. É sempre muito assustador. O que vou escrever? Para quem vou escrever? Será que vão entender o que escrevo? E a internet é uma possibilidade de a gente ir se testando na escrita. Começamos a comentar em blogs, mandamos e-mails para os amigos, queremos ter um blog e montamos um blog. Então, é um exercício de linguagem. Se é literatura ou não, já é outra história. Mas é um exercitar a linguagem, é estar dentro dela, num exercício, num embate e numa dificuldade com ela. É assim que a gente se torna escritor. Porque é realmente uma luta. Não é uma coisa tranqüila, amena, que nos vem com facilidade. A linguagem é algo extremamente difícil, muito poderoso. Mas, antes da internet, havia um amedrontamento muito maior. Hoje em dia, a relação do jovem com a palavra é mais imediata. É claro que eles estão escrevendo qualquer coisa, mas é assim mesmo. Acho tudo válido. Toda forma é válida para se chegar à escrita. Você vai indo, vai crescendo, vai se sentindo um pouco mais seguro, conhecendo as dificuldades da língua e as suas dificuldades na língua. Mas você também descobre as suas facilidades, onde é que você flui. E isso é muito prazeroso. (…) Enfim, você vai se tecendo ali, no seu próprio caldo, que é o caldo da palavra. O que fazemos senão trocar palavras? É isso que a gente faz na vida. Trocamos palavras. E como é importante saber o que o outro disse, o que pensou. Nos términos amorosos, ficamos atingidos quando o outro não nos diz nada, quando sai sem dizer uma palavra. É uma coisa fortíssima. Porque a palavra é o que nos constitui, nos faz humanos. É com ela que a gente tem que se haver, é com ela que a gente tem que lidar, não tem outra saída. Somos seres falantes, seres de linguagem.

• A vida é miudeza
O que o mundo nos oferece são os acontecimentos. E os acontecimentos das nossas vidas diárias não são assim “grandes acontecimentos”. São grandes, às vezes, dependendo da afetividade implicada neles. Mas eles, em si, são ordinários no sentido do cotidiano. E a internet está lidando muito bem com isso, com esses pequenos comentários. Uma mocinha, por exemplo, começa um blog. Ela vai ver um filme e comenta um pouco sobre ele. Ela assiste a uma peça e fala da peça. Fala de um sentimento ou transcreve ali outras coisas. Isso também é uma forma de se lidar com a palavra — daquilo, ela gostou muito; aquilo, ela valorizou; aquilo a tocou. São exercícios como esses que nos colocam no cotidiano das palavras. Porque a vida, na verdade, é essa miudeza. A gente vive coisas muito miúdas. E, sempre e todo dia, essas coisas se repetem.

• Crianças aturdidas
Não tenho um personagem grandioso, de feitos notáveis, porque também não sei dessas pessoas, não sei dessas coisas, não sei dessas grandiosidades. A grandiosidade pode estar, inclusive, nas menores coisas, nas coisas minúsculas, num aceno que uma pessoa faz, na palavra que outra diz e que, às vezes, tem uma dimensão imensa, vale um tesouro, um conto, um romance. São essas as coisas que valorizo. São esses os personagens que vejo e escuto. Uma palavra de um, um gesto de outro. Restos do passado, de pessoas, de histórias, de olhares. De coisas que deixam as crianças aturdidas.

• Um lugar no futuro
Uma criança, olhando para um adulto, deve ficar muito impressionada. Nem sempre estamos no registro delas, com tempo e paciência para explicar e informar. Então, as crianças crescem num atordoamento. Além disso, somos muito grandes para elas, que habitam um mundo ainda pequeno. Então, todos são enormes. E nós ainda vivemos emoções fortíssimas, que as crianças não conseguem entender. Impossível. A vivência de um adulto nada tem a ver com a das crianças. E elas, ao mesmo tempo, estão ali ao nosso redor, crescendo, precisando de uma palavra, da atenção de serem escutadas, de serem acompanhadas. Mas estamos todos vivendo pela primeira vez. Isso é muito difícil para todo mundo. Um adulto jovem e com filhos também está tentando, como dizia o Paulinho da Viola, pegar o seu lugar no futuro. Está correndo, tentando emplacar, tentando ganhar dinheiro, tentando botar uma varanda na casa, uma tela na varanda. Enfim, está na labuta. Não há mais tempo. Portanto, antigamente, quem contava histórias para as crianças eram as avós, porque estavam mais à disposição, já tinham vivido aquela turbulência toda que é a juventude, um verdadeiro tumulto que nos acontece a todos.

• Sonho e solidão
A gente não escapa de ser sozinho, de sentir solidão. Nenhum de nós está livre disso. Aí, entra um pouco da formação que eu tive, e que me alertou e me abriu para outras coisas, no sentido de que ansiamos muito por um ser que vai nos completar, principalmente quando somos jovens. A gente acha que vai encontrar aquela pessoa, aquela moça ou aquele garoto. Achamos que esse ser vai viver conosco, vai nos entender. E achamos que não ficaremos sozinhos por causa disso. E essa é uma ilusão muito importante de se ter. Continuem tendo essa ilusão. Ela não é nada ruim, porque produz coisas boas para a gente. Está no registro dos sonhos. E tudo que está no registro dos sonhos certamente vai produzir coisas boas para a gente. Então, esse ser de sonho — aquele cara que você imagina que vai chegar e resolver seus problemas —, você vai encontrá-lo. Na verdade, você vai encontrar algo próximo dele. E é isso mesmo, algo próximo, porque o outro não vai entendê-lo na medida em que você gostaria de ser entendido, nunca, nunca. (…) O tema da solidão é inexorável. É um tema humano. Não há como a gente se livrar dela. O que a gente pode ter é uma solidão bem vivida conosco mesmo. Com cada um de nós. Você pode se fazer uma boa companhia. Viver bem com você, viver em paz com você, ter uma relação razoável com você. Não se achar nem tão fantástico, nem tão vil.

• Tudo advém do medo
O grande tema é o medo. Antonio Candido disse que o medo é o maior problema do ser humano, e ele tem toda a razão. A gente tenta fugir da solidão por medo. A gente não faz uma série de coisas — e faz outras tantas — por medo. Esse medo é muito característico da infância. Primeiro porque a criança o expressa, diz que está com medo e, quase sempre, do que tem medo. Nós, adultos, ficamos meio encabulados diante disso. Afinal de contas, crescemos tanto, fizemos tanta coisa, envelhecemos e o medo ainda está ali. Ele existe, está sempre presente. Vai se transformando em outros medos. Mas não nos abandona. Na minha literatura, isso transparece em alguns personagens, principalmente nos personagens infantis a quem dei voz. Eles falam muito sobre o medo. Porque a gente tem medo de tudo. Antonio Candido está absolutamente certo. O maior problema do homem é o medo. Tudo advém daí.

• Hordas de meninos
Antes da solidão e do medo, o que me habitava, quando eu era mocinha, pré-adolescente, era o sexo. Eu não pensava em outra coisa que não fosse uma relação sexual. Até ter uma, não é? Depois, continuei pensando (risos). Mas meu pai era advogado, e minha mãe, harpista, tocava em duetos, tercetos, quartetos. Minha casa era uma open house em Icaraí (nasci no Rio de Janeiro, mas morávamos em Icaraí). Eu e minha mãe éramos uma minoria, pois meus irmãos eram homens. Então, era assim: havia hordas de meninos dentro de casa, uma loucura.

• Uma prima
Meu pai lia processos, direito penal, direito civil e essas coisas todas. Minha mãe lia partituras. E eu tinha uma prima, fantástica, que de vez em quando vinha passar as férias comigo, filha de um tio já falecido. Essa prima havia sido criada pelos meus avós. Ela lia os livros que mamãe nos dava no Natal, nos aniversários. Coleções de que não me lembro, porque estava preocupada com outras coisas. Digamos que eu estava “lendo” o mundo. E minha prima, de noite, lia aqueles livros para mim, ou então me contava as histórias que lia neles. Uma prima muito querida, a quem dediquei Milamor.

• O artista da casa
Meu pai gostava do (poeta) Raul de Leoni. Vivia recitando uma poesia — depois a descobri no Google — que se chamava Ingratidão. Era do livro Luz mediterrânea. O poema tratava de uma árvore, que o sujeito plantava dentro de casa. Mas a árvore crescia, florescia e, quando dava frutos, ia dá-los no pomar alheio. Meu pai decorou essa poesia, ele só gostava dessa. De vez em quando, passava recitando aquilo, porque era um artista. Mamãe tocava harpa, mas ele era o artista da casa. Então, recitava aquela poesia e aí, quando terminava, e os frutos davam no pomar alheio, ele estava muito emocionado, sempre com os olhos cheios d’água, os lábios trêmulos. Meu pai era um cara enorme, forte. E eu ficava muito impressionada, menina, com aquele homem todo assim. Não sabia o que estava acontecendo com meu pai. Ficava assustada no início: será que ele está tendo um troço? Depois, com o passar do tempo, evidentemente engrenei na sua emoção e comecei a achar aquilo interessante. Mas não muito. Raul de Leoni não era o meu poeta.

• Fulminada na cama
Um dia, caiu em minhas mãos, levado não sei por quem, por um anjo talvez, um livro de Vinicius de Moraes. Eu o abri num soneto chamado Soneto do amor total. Comecei a ler aquilo e, no final, o poema dizia: “E de te amar assim, muito e amiúde/ É que um dia em teu corpo de repente/ hei de morrer de amar mais do que pude”. Caí fulminada na cama. Eu tinha uns treze anos. Na minha família, perguntavam: “O que houve com ela?”. E minha avó: “Parece que foi uma poesia”. E tinha sido.

Livia Garcia-Roza e José Castello no Paiol Literário

• Moderno, minha filha
Comecei a me encantar com os poetas. Ou seja, descobri a poesia antes da prosa. Descobri Carlos Drummond de Andrade. Uma época bem interessante. Li O mito, Desaparecimento de Luísa Porto e Caso do vestido e fiquei empolgada com aquilo, tomada por aquilo, avassalada. (…) Botei o livro debaixo do braço — acho que era Reunião — e fui apresentar ao meu pai aquele poeta. Porque ele só gostava do Raul de Leoni. De vez em quando, falava em Guerra Junqueiro, mas só gostava do Raul de Leoni e daquele poema que ele repetia ad nauseum. Cheguei e disse a ele: “Pai, posso ler uma poesia para você?”. E li Caso do vestido. Eu fazia teatro, sempre gostei de ler para as pessoas, de contar coisas, mas naquela época eu achava melhor ainda, ainda mais para ele. Quando acabei de ler Caso do vestido, meu pai me disse: “Moderno, né, minha filha?”. Fiquei decepcionada. Porque aquilo, para mim, era uma preciosidade. Então, falei: “Pai, você me desculpe, mas posso ler outra poesia para você?”. E ele disse: “Leia, leia”. E li Desaparecimento de Luísa Porto, uma poesia tristíssima, sobre uma mãe que perde uma filha e fica entrevada. Eu a interpretei bastante, para ver se conseguia cooptá-lo para o Drummond. Ele ouviu tudo aquilo e, no final, me disse: “Moderno, né, minha filha?”. Então perguntei: “Mas é ruim ser moderno?”. Ele não respondeu e se afastou. Eu falei: “Ah, isso não vai ficar assim, não”. E disse: “Papai, antes de eu dormir, deixa eu ler a última?”. E ele disse: “Leia, mas só mais uma”. E li O mito, que é uma beleza. Quando terminei, ele não falou nada. Se afastou, deu uma caminhada, foi “molhar o jardim antes que chovesse”, como ele dizia, e dali a pouco voltou. Disse: “Como era mesmo a última estrofe?”. Falei: “Já não sofro, já não brilhas/ mas somos a mesma coisa// (uma coisa tão diversa da que pensava que fôssemos)”. E ele falou: “Interessante”. Daí eu senti que ele podia gostar de mais autores. E é isso que a gente deve fazer, sempre, com a literatura: ampliar, conhecer mais, dar chances a novos autores, cada vez mais, e aos antigos.

• Ai, meu sol
Não sei escrever poesia. Tentei escrever por quase oito meses. Mas não funcionou. Senti que não era o meu caminho, apesar de ter sido criada numa casa em que ouvia música o dia inteiro. Minha mãe estudou harpa a vida toda. As cordas da sua harpa eram de tripa, volta e meia arrebentavam. Quando uma corda arrebentava, ela dizia: “Ai, meu sol!”. Dizia o nome da nota. E a gente começou a entrar na história. Arrebentava uma corda e dizíamos: “Ai, meu lá!”. E ela: “Não é lá, é ré”. “Ai, meu si.” “Não é si, é fá.” Foi assim que mamãe nos afinou. E isso, para mim, serviu muito para a literatura. Porque na verdade a literatura tem uma cadência. As frases têm uma cadência. Elas têm uma harmonia. E a gente pode desafinar, a gente desafina de vez em quando. Leio muito literatura com esse ouvido, graças ao instrumento dela, que escutei a vida toda, até minha mãe falecer. Meus irmãos, que eram meninos, mamãe deixava na pelada; mas me carregava para o teatro municipal, onde ensaiava com a orquestra. Eu ouvia aquilo tudo numa platéia inteiramente escura e vazia. Um momento de solidão como poucos. Eu escutava coisas lindas. A orquestra afinando os instrumentos antes de começar. Um momento que acho muito bonito. Ouvi tanto isso na minha vida que acho muito bonito.

• Você gosta disso?
Ontem, me ligou uma amiga psicanalista, muito querida, muito próxima. Ela tinha lido Milamor e me ligou emocionada. O livro a tocou muito, tinha muito a ver com sua vida. É sempre uma questão identificatória, penso muito sobre isso na literatura. É difícil escrever um livro e as pessoas gostarem dele mesmo não se identificando com os seus personagens. Por que não podemos gostar de um livro cujos personagens não tenham nada a ver conosco, cujos personagens sejam pessoas inteiramente estranhas para nós? Eles vão nos trazer tanta coisa nova do mundo deles, da sua vida, de como se relacionam, de como vivem. Mas, na verdade, isso não ocorre. A questão da identificação é muito forte. “Você gosta disso? Eu também.” “Você gosta daquilo? Eu também.” “E se você não gosta, também não gosto mais de você.” Quando somos garotos, isso acontece muito. E, na literatura, isso acontece com muita radicalidade. As pessoas gostam de um livro na medida em que se identificam com o personagem X ou com o Y. De preferência, com o narrador ou o personagem central do livro.

• Subversão
Pluft, o fantasminha é uma peça da Maria Clara Machado. Hoje em dia, é um clássico da nossa literatura. Clara foi uma pessoa maravilhosa na profissão dela, na dramaturgia; e eu, nessa peça, fiz o papel da Mamãe Fantasma. Por isso, quis fazer uma homenagem a Clara, que foi uma das minhas mestras na vida, um marco. Nós temos marcos de qualidade em nossas vidas, marcos de importância, e ela, para mim, foi um deles. Me ensinou a brincar, a ser infantil, me mostrou que isso é possível, por que não? Então, escrevi meu último livro, Era outra vez, como uma homenagem a ela. No começo da peça, o fantasminha Pluft pergunta para a Mamãe Fantasma: “Mamãe, gente existe?”. E a mamãe diz: “Claro, Pluft, que gente existe”. E ele: “Eu tenho tanto medo de gente, mãe”. A Clara subverte a coisa. Eu aproveitei essa subversão fantástica, a levei para outros contos conhecidos de nós todos — Chapeuzinho Vermelho, A cigarra e a formiga, Os três mosqueteiros — e subverti também essas histórias. Criei outra coisa. Por exemplo, o Lobo é o narrador de Chapeuzinho Vermelho. Ele começa telefonando para ela: “Aqui quem está falando é o Lobo”. E ela: “Que é garoto?”. O Lobo responde: “Sou eu mesmo, entendeu? Não estou a fim de te comer e nem de comer a tua vovozinha caquética. Agora, chama a tua mãe, porque não falo com criança, entendeu?”. Então, subverti toda a história. O Lobo vai até lá, a mãe da Chapeuzinho toma um susto, cai dura para trás, e a menina fica conversando com ele. Enfim, é outra história.

• Três escândalos
Quando eu era menina, não tão menina, li três livros que não entendi, mas que tiveram efeitos na minha vida. Isso é interessante. É até bom ler um livro e não entender nada. Aquilo vai ter algum efeito sobre você. Li O amante de Lady Chatterley, depois Madame Bovary e, mais adiante, Lolita. Quer dizer, três escândalos, porque, na época em que foram publicados, fizeram muito barulho. E não os entendi porque não tinha idade para entendê-los. Você tem que ter uma aparelhagem para captar as coisas. Por isso, pensava que aquelas leituras haviam sido em vão. Mas não foram. Durante minha vida, vi os efeitos delas no meu desenvolvimento, na minha literatura. Você vê Madame Bovary em Milamor.

• Infantil ou adulto?
Trabalho com o universo infantil dentro do seio da família, entre os adultos. Acho que só agora as pessoas estão aceitando um pouco mais o que escrevo. Os livreiros me diziam o seguinte: “Não sei onde ponho o seu livro. Não sei se ponho O quarto de menina no setor de infantis ou adultos”.

• A melhor das vidas
Uma das minhas grandes paixões é a literatura latino-americana. Uma grande paixão é o (Juan Carlos) Onetti. Continuo achando o conto a forma mais difícil da literatura. É muito difícil. E o Onetti é um contista maravilhoso. Assim como Felisberto Hernández, Mario Benedetti — Correio do tempo é um livro belíssimo. Agora, minha mais nova paixão é o Roberto Bolaño. Estou muito encantada. Acabei de ler Os detetives selvagens e me diverti muito. Li O amuleto, e achei ótima a história. Nos Estados Unidos, há toda uma febre de Bolaño. Gosto muito da literatura latino-americana, sou fã deles. Os uruguaios são ótimos, os argentinos. Tem muita gente boa. O Onetti tem um conto que se chama Um sonho realizado. Um belíssimo conto, que já li várias vezes. É uma aula de como se fazer um conto. Mas, enfim, quando a gente gosta de literatura, quando somos amantes dela — e eu me considero uma dessas pessoas, feliz por ter encontrado esse mundo —, é a melhor das vidas possíveis.

Livia Garcia-Roza no Paiol Literario. Foto: Matheus Dias

• A palavra do outro
Desde o início da minha vida, minha questão foi com a palavra. Volto à figura do meu pai porque ele falava diferente das outras pessoas. Ele se dava uma liberdade na linguagem como poucos. Não sei por que fazia isso, mas era algo muito interessante que, no início, eu não entendia, mas que depois passei a ver como uma coisa extremamente criativa. Ele tinha uma relação da maior criatividade com a linguagem. Claro que, aí, foi muito importante para mim a presença da minha mãe. Se ela não formatasse aquilo que meu pai dizia, se não tivesse uma linguagem informativa, estávamos perdidos. Mas a questão da palavra me pegou lá nos primórdios. Que palavra é essa? Por que essa palavra? A palavra permanecia, eu pensava nela, eu a achava esquisita. Então, vim pela vida com a questão da palavra. Fiz teatro. E a palavra, ali, também foi muito importante. Mas aí descobri, fazendo teatro, que não seria uma atriz. Não me dava prazer. E o que é que não me dava prazer? O que é que não se encaixava para eu poder continuar com o teatro? Percebi que era a falta da minha palavra. A palavra que eu dizia era a palavra do autor, do outro, não era a minha.

• Imaginosa
Passei um tempo nos Estados Unidos, em Nova York, e meu tio, que era psicanalista no Rio, fazia formação por lá. Eu tinha 16 anos quando fiquei na casa dele alguns meses. À noite, meu tio recebia uns colegas. Eles conversavam e eu via que conversavam sobre sexo. Pensei: “Ah, eu quero fazer é isso, essa profissão. Como se fala de sexo aqui. E todo mundo fala abertamente, ninguém fecha a porta”. Tinha lá a minha prima de 11 anos, e eu com 16, e era uma coisa de pênis, vagina, cópula e não sei mais o que lá, e isso e aquilo. Falei: “Fantástico, é isso que eu quero fazer”. A coisa veio vindo, veio vindo, veio vindo e comecei a fazer análise. E, na análise, você é imediatamente pego pela palavra, pela interpretação que o analista faz do que você diz a ele. Você fornece palavras, mas também recebe palavras. A questão da palavra, portanto, foi se adensando, foi crescendo, se avolumando. E, por isso, fui fazer psicanálise — um trabalho com a palavra. É claro que a sexualidade é fundamental, importantíssima. A psicanálise está fundada na sexualidade humana, mas você trabalha com ela em um nível simbólico. Ou seja, com a palavra. Depois, passei a querer escrever artigos e ensaios sobre psicanálise. Escrevi alguns, mas eles não me satisfaziam muito, não tinha “historinha”. E sempre gostei de contar histórias, desde menina. Fui uma espécie de narradora infantil. Mamãe dizia que eu era muito “imaginosa”. Na época, eu considerava aquela palavra horrível. Achava que significava “mentirosa”. Mas, desde pequena, eu contava tudo. Ia até a farmácia e, quando voltava, tinha muito assunto.

• O banquete de mulheres
Talvez ainda não tenha chegado o momento. Um diretor amigo meu, muito talentoso, anda me cobrando isso. Ele diz: “E aí, Livia, quando é que você vai escrever uma peça de teatro?”. Eu digo: “Vontade não me falta, mas acho que não tenho a carpintaria para isso”. O artesanato, a técnica. Claro que, se pararmos para ler uns livros e estudar, se nos envolvermos, nós conseguimos. Mas sigo muito o que se impõe a mim. Os livros se impõem. Uma peça, porém, não está fora das minhas cogitações. Até bolei um nome para ela. Quando o contei para o diretor, ele ficou todo animado: “Pronto, pode começar”. Se eu escrevesse uma peça, lhe daria o nome de O banquete de mulheres. Ia ser uma loucura. Enfim, é uma possibilidade. Quem sabe chego a esse banquete? Não sei, o futuro dirá.

• Um corpo adiado
Com a liberação sexual, vocês (adolescentes) vivem relacionamentos em que podem ter a maior intimidade possível com o outro, seja esse outro quem for. É até esquisito alguém que não transa hoje em dia. “Essa menina não transa, aquele menino não transou? Que coisa esquisita, tem alguma coisa errada com eles.” Hoje em dia, é assim. Mas, na época em que fui menina, não era assim, as coisas não se passavam dessa maneira. A gente tinha que ter um compromisso, tinha que se relacionar, que se envolver muito e, de preferência, casar. Tudo muito diferente. Com vocês, não sei o que pode acontecer em termos da fantasia. Na minha época, as meninas não transavam. Casavam. E os garotos não transavam com suas namoradas queridas porque elas não transavam. Eles transavam com quem fosse possível. Inclusive, antigamente era um problema ter empregada, principalmente jovem. Não podia, não dava. Era uma coisa terrível. Lá em casa, então, era um sofrimento, por causa dos meninos (risos). Então, a nossa fantasia era muito encorpada, muito desenvolvida, muito detonada, exatamente porque não tínhamos acesso ao corpo do outro. O corpo do outro era um corpo sempre adiado. Não havia motel, não havia onde transar. Era complicadíssimo. Hoje, vocês dormem na casa dos seus namorados, das suas namoradas. E seus pais, seus avós, todos sabem de tudo, todos consentem. E é isso mesmo, faz parte da vida. Vocês exercitam a sua sexualidade. Têm mais chances e mais escolhas. Trocar de parceiro não é tão terrível. Não deu com esse, vai com aquele; não deu com aquele, vai com outro. Agora, o que me pergunto é o seguinte: como é a fantasia de vocês? Será que ela ficou na internet? Como é essa fantasia, como ela é vivida por vocês? Sobre isso, eu não sei muito. Ou não sei nada (risos). E esse mundo da fantasia é fundamental. O mundo da fantasia é o mundo que nos sustenta.

• Freud e os morangos
Freud foi fazer um piquenique com a mulher e os filhos. Estavam colhendo morangos. Colhiam e comiam, colhiam e comiam. Aí, ele disse: “Agora, é para a gente guardar os morangos na cesta, é para levá-los”. E Ana Freud, sua filha famosa, que depois também se tornaria psicanalista, disse: “Não, eu quero comer só mais um, só mais um”. A mulher de Freud disse: “Deixa, deixa, deixa ela comer mais um”. E ele: “Não, porque se eu deixar, à noite ela não terá com o que sonhar”.

• Auto-ajuda
Psicanálise não é ajudar. Psicanálise é levar o sujeito a se ajudar. E auto-ajuda é desconhecer as individualidades. Cada um é um sujeito. Se você faz uma receita, é como se todo mundo coubesse ali dentro, e isso não é verdade. Cada um de nós é diferente. E é isso que nos faz outros, é isso que nos dá a nossa beleza. É essa alteridade, é não ser uma massa, não fazer parte da massa. Porque não existe essa massificação — e a auto-ajuda trabalha com a massificação. Como se fosse uma receita de bolo, você faz e acerta. Isso não existe.

• É como caminhar
Eu vivo lendo. Faz parte do meu dia. É como caminhar, por exemplo. Eu caminho todos os dias.

Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

Rascunho