🔓 Julián Fuks

"Não faço a menor ideia do que vou escrever sobre a pandemia. Nem se vou escrever. Sinto que houve uma antecipação enorme dessa resposta"
Julián Fuks, autor de “Lembremos do futuro”. Foto: Toma Bertelsen
01/07/2021

O escritor e crítico literário Julián Fuks abriu, em 8 de junho, a 10ª temporada do Paiol Literário — projeto realizado pelo Rascunho, com patrocínio do Itaú, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura. Neste ano, os encontros acontecem online, com transmissão pelo YouTube, e todo conteúdo fica também disponível no site paiolliterario.com.br.

Paulistano de 1981, Fuks lançou recentemente Romance: história de uma ideia (2021), no qual repensa a história elitista desse gênero literário. Como romancista, entre outros títulos, é autor de A ocupação (2019) e do premiado A resistência (2015), vencedor dos prêmios Jabuti, Saramago e Anna Seghers.

Realizado desde 2006, o Paiol Literário já recebeu 72 escritores. O próximo bate-papo acontece em 6 de julho, às 19h30, com participação da poeta e tradutora carioca Marília Garcia. A medição dos encontros é do jornalista e escritor Rogério Pereira, editor do Rascunho.

• A literatura transforma
A literatura multiplica, diversifica, abre caminhos. Aprofunda um cotidiano, uma rotina. Rompe superfícies, limitações imediatas do nosso dia. Da nossa vida. Ela tem esse poder de transformar um dia em uma coisa completamente diferente do que a gente esperaria, imaginaria, do que temos à disposição comumente. Estou aqui me aproximando dos riscos do clichê, óbvio, as perguntas mais amplas sempre nos colocam nessa condição. Mas, de fato, é algo que sinto. Sinto que o dia pode existir em uma certa normalidade, num certo torpor do cotidiano, da notícia, do irrelevante, e a literatura é capaz de romper esse registro, abrir um tempo a partir do outro tempo. De constituir uma experiência completamente distinta naquele mesmo lugar e momento.

• Leitor pacífico
Meu processo como leitor, de início, foi bastante tranquilo e harmônico. Nada que se assemelhe aos grandes registros dos leitores históricos da literatura, um sujeito que precocemente se entregava a ler Dante, Cervantes, o que quer que seja. Fui trilhando o caminho básico de me dedicar aos livros correspondentes à minha idade, lendo literatura juvenil com entusiasmo, com entrega. Isso foi se tornando outra coisa à medida que se fez mais evidente o desejo de me tornar escritor.

• Cronicamente insatisfeito
Gostaria de dizer algo mais borgiano, do tipo “meu grande feito na literatura são os livros que li, e não os livros que escrevi”, algo assim, mas não sou um leitor pacífico. Nem passivo. Me sinto um leitor arredio, muitas vezes. Minha relação com a escrita é por si mesma um tanto arredia — de aproximações e afastamentos, de lugares de desconforto. Escrever é um problema desde sempre. Há uma percepção de impossibilidade quase constante. Na leitura, não é tão diferente. Há momentos em que me vejo cronicamente insatisfeito, deslocado no exercício da leitura, sempre à procura de uma obra que me envolva, me cative, me domine — como talvez aconteça nas melhores leituras. Sinto que, às vezes, isso falha.

• Referências mutáveis
Aos poucos, fui criando referências mutáveis. A cada momento, cada fase da minha vida, me aproximo mais de alguns autores, geralmente bastante relacionados com aquilo que desejo escrever, com o que tem me movido para a escrita literária. No meu primeiro livro mais sério, Histórias de literatura e cegueira (2007), há referências que eu tentava emular no meu próprio estilo — muito Borges, João Cabral, James Joyce. Depois, fui migrando para o Juan José Saer, um autor argentino que me marcou muito durante a escrita de um livro posterior.

“A crítica literária — como a própria literatura, a cultura como um todo — tem sido estrangulada no atual cenário da nossa sociedade.”

• Leitura inquieta
Em parte, sinto que tenho uma infidelidade grande com os autores que abraço, que desejo que me influenciem. E me vejo, também, migrando continuamente entre uma proposta e outra, em uma certa inquietude que deriva do exercício da escrita. A escrita inquieta cria uma leitura inquieta, quase que inevitavelmente. Desejaria ser outro tipo de leitor, mas não consigo. Quem sabe um dia.

• Contágio literário
Sinto que quase toda leitura acaba incidindo no que a gente produz. A gente se deixa permear, e se contagiar, por tudo aquilo que lê. Acontece uma transmissão forte em qualquer leitura, e sinto isso muito evidente no momento em que vou escrever, marcado pelo que li nos últimos meses, ou nos últimos dias, ou no momento anterior à própria escrita. Algo que reverbera, que repercute no ato da escrita. Claro que isso gera certa inquietude, desconforto.

• Desejo de leitor
Desejaria ser um leitor mais generoso, mais entregue, capaz de devassar outros mundos, e de me deixar ler sem tanto juízo. Sem tanto julgamento, sem tanto controle no exercício da leitura. Acho que isso deriva do fato de eu ser um escritor que se propõe muito ao controle, que deseja trilhar muito imediatamente aquele trajeto da escrita, escolher precisamente cada palavra, cada frase. Em parte, isso me fere como leitor. Passo a observar isso em outras obras, passo a controlar o exercício da leitura em si, e perco certa entrega e generosidade. Gostaria de ser esse outro sujeito. Almejo ser. Acho que em algum momento algo pode arrefecer em mim, e eu passe a ser outro tipo de leitor. Seria muito favorável ao meu prazer.

• Decisão incontornável
Me dei conta de que a escrita tinha mais importância para mim do que todas as outras coisas. Que eu me dedicava, ou me divertia, muito com o futebol, mas que não seria um ofício. Que poderia ficar contente em me sair bem numa prova de matemática, mas aquilo importava menos do que receber um elogio depois de escrever uma redação. Em algum momento, a escrita se tornou mais central em minha vida. Comecei a escrever muito lateralmente uns poeminhas, que depois guardava numa gaveta e nunca voltava a olhar. Meu começo foi bem convencional. Mas, sobretudo, sinto que se definiu um imperativo. Num dado momento, decidi que seria escritor. Tornou-se um objetivo, um caminho a ser perseguido.

• Rigor
Desde o começo, me perguntava o que merece ser escrito, o que deve ser escrito — em confronto com as possibilidades diante da página, diante daquilo que assombra. Isso permanece muito vivo em mim: a busca de algo que ganhe suficiente pertinência, que mereça ser conduzido ao papel e trabalhado com o devido rigor, com o devido esforço, para que constitua uma obra bem-sucedida. Em algum sentido, foi o que estabeleci há muito tempo.

• Fazer-se escritor
Como leitor, fui me guiando, procurando certos caminhos, tentando me constituir escritor. Antes de escrever meu primeiro livro, por exemplo, lia muitos primeiros livros de romancistas que apreciava e admirava. Lia bastante biografias de escritores, também, para saber, afinal, como eles chegaram a escrever e constituir uma obra. Estou menos entregue a esses vícios, mas à época parecia uma espécie de esforço medido para constituir algo próprio.

“Sinto que a literatura nos exige tudo, como a vida nos exige tudo, neste momento do país.”

• Crítica literária e ficção
Em nenhuma medida, num primeiro momento, fui escritor de projetar muitos livros consecutivamente. De construir um projeto amplo de obra e me dedicar a ele. De forma alguma. A entrega ao próximo livro, ao que vem por aí, acontece a cada momento. No entanto, há um certo olhar para a literatura que guarda sua coerência, sua organicidade, por assim dizer. As respostas ficcionais que vou encontrando para os problemas insolúveis da crítica literária acabam, talvez, constituindo o efeito de construção consabida ou sabida com antecipação, a ideia de que cada livro deriva do anterior. A crítica vem me habitando há certo tempo, desde que me dediquei à trajetória acadêmica. É um caminho mais coerente, estável, firme, embora também sujeito a oscilações. Uma coisa acaba incidindo sobre a outra. Na verdade, uma coisa e outra são a mesma coisa.

• Caminhos sobrepostos
Não consigo nem desejo desligar a chave do crítico literário na hora de escrever ficção. Aliás, não considero nem viável do ponto de vista conceitual. Por um tempo me senti, em alguma medida, dividido. Ou me concebi como sujeito dividido sem necessariamente sentir. Tinham duas atividades que eu trilhava simultaneamente: a de pensar literatura e a de produzi-la. Na prática, com o tempo, fui me dando conta de que é uma só trajetória. De que as coisas estão completamente imbricadas, interconectadas. Uma coisa incide sobre a outra, inclusive de maneiras que eu mesmo não consigo controlar ou enxergar. Algumas vezes, tornam-se muito visíveis as influências.

• Nada divisível
História de literatura e cegueira (2007) é derivação imediata do meu TCC em Jornalismo, ou seja, de uma pesquisa literária. Em seguida, o Procura do romance (2011) é uma resposta possível aos problemas que eu vinha encarando na dissertação de mestrado sobre a impossibilidade de narrar e a morte do romance. Então passa a ser um romance que encara como inevitável a morte do romance e, paradoxalmente, tenta externar aquilo como romance. Mais tarde, enquanto escrevia A resistência (2015), me vi refletindo criticamente sobre as questões ligadas à autoficção. Tudo que venho escrevendo desde então é sobre a crise da própria ficção, que incide em uma forma de pensar e na minha maneira de escrever. Está tudo completamente interligado, não existe um sem o outro. Não é que não dá para dividir, é que não há nada divisível aí.

• Em busca da pertinência
Na prática, não havia um programa literário prévio que eu estivesse disposto a seguir. Talvez perdesse absolutamente todo o sentido se o projeto estivesse definido de partida e só me coubesse preencher as lacunas. Pelo contrário, é um exercício de pensamento e de busca da pertinência em cada novo livro. E, sobretudo, a cada novo presente — atento às transformações da própria literatura e do mundo. Cada vez mais estou convicto da ideia de que a literatura responde muito concretamente, muito diretamente, ao seu tempo. E de que isso constitui sua própria forma.

• Sebastián, o alter ego
O personagem Sebastián é um alter ego, com certeza. Já venho escrevendo com esse sujeito que encarei e concebi como alter ego há três romances, desde 2011, quando publiquei Procura do romance — um livro que demorei quatro anos para escrever, ou seja, comecei em 2007, e o Sebastián não me abandonou desde então. Em alguma medida, sou refém dele. Me sinto comprometido além da minha própria vontade, além do meu próprio desejo, com esse sujeito e com essa forma de escrita.

• Era da suspeita
Entendo quando se acusa o excesso de autoficção, se acusa um viés quase mercadológico nesse tipo de escrita, mas acho que ele é atribuível a fatores muito mais longevos, profundos. Há uma crise da própria ficcionalização que se instaurou na literatura há muitas décadas, e que vai encontrando saídas as mais diversas, influenciando-se mutuamente. Há um sistema de influências dentro da literatura, que acaba por constituir essa forma múltipla, coletiva, de escrita. Isso é tributário ao tempo que a [escritora russa] Nathalie Sarraute chamou de “era da suspeita”, o lugar onde leitor e autor se indispuseram. O autor já não conseguia projetar-se a si mesmo em um personagem muito diferente de si próprio, num segundo sujeito. E o leitor também já não conseguia, não queria, se reconhecer naquele sujeito, naquele protagonista. Então se indispuseram autor e leitor, e algo sobre as possibilidades narrativas se rompeu.

• Relação com o real
Claro que se poderia explicar esse processo de muitas maneiras. Seja como for, parece que se revelou a arbitrariedade grande do exercício de constituir um ser, dar-lhe um nome, uma trajetória, inventar um enredo para essa vida, com datas específicas, acontecimentos, peripécias. Tudo isso se fez muito arbitrário para uma série de autores. Um exercício quase aleatório de criação, que se tornou quase impossível para muita gente. Há muitas saídas para essa impossibilidade, e uma delas — que vem se dando com muita força — é a tentativa de aproximação ao real, abandonando o que era a prática do realismo como forma. O que se tenta reconstituir é uma relação mais imediata e mais concreta com o real. A autoficção é uma dessas maneiras.

• Pós-ficção
A autoficção é o momento em que o romance se aproxima da autobiografia. O autor tenta se fazer o mais sincero possível, tenta constituir um olhar para sua própria vida, buscando o que há de relevante e de autêntico. Essa é uma das formas de fazer autoficção, é claro, há outras. Mas é uma das muitas maneiras de lidar com a crise da ficcionalização. Sinto que essa crise é muito mais vasta do que a própria autoficção e que se manifesta na aproximação do romance em relação ao ensaio, em relação à historiografia, à filosofia, ao discurso político. Enfim, uma série de hibridismos muito comuns na contemporaneidade, que eu prefiro chamar de pós-ficção, e não de autoficção, justamente para dar conta do problema mais vasto.

• Primado do objeto
O leitor, em alguma medida, sempre teve vontade de saber se o que está escrito é real, mas era uma pergunta envergonhada. Deixada de lado. A própria academia não permitia esse tipo de associação, esse tipo de olhar para a leitura. A vida do autor não interessaria nada para compreender sua obra. É a ideia do primado do objeto: o que interessa está na obra em si, e o que está fora não nos diz respeito, não deveria atrair nossa atenção. Só que os autores começaram a brincar com esse campo externo à literatura, a ir buscar, com suas próprias mãos, o que está fora e levar para dentro. Os leitores encontraram nisso a saída para finalmente fazer aquela pergunta envergonhada. Afinal, o que está aqui é a sua vida? O que você está narrando aconteceu? São questionamentos que devolvem certa vida ao próprio exercício da leitura.

• Pacto ambíguo
Dessa nova forma de fazer literatura se constitui um pacto ambíguo. Não é mais o pacto ficcional, em que um finge que as coisas que está inventando são reais e o outro finge acreditar. Há um tensionamento na relação: tudo pode ser real e pode não ser. Os escritores começaram a brincar mais diretamente com essas correlações, constituem ambiguamente sua própria matéria, e isso altera o regime de leitura. Se me confessei um leitor arredio, e às vezes exigente, me sinto muito mais entregue em certo tipo de livro que trabalha essa margem entre o ficcional e o não ficcional. Me sinto mais entregue diante desse tipo de leitura, e talvez por isso me veja escrevendo dessa maneira.

“Num dado momento, decidi que seria escritor. Tornou-se um objetivo, um caminho a ser perseguido.”

• Deslocar a realidade
Tudo que venho escrevendo nos últimos anos passa pela experiência pessoal e ao mesmo tempo é transformado, deslocado, combinado, conjugado. As três histórias que constituem o romance A ocupação (2019) não se deram propriamente no mesmo tempo. O episódio do pai no hospital é algo acontecido dez anos atrás, que permaneceu em mim e quase exigiu ser narrado. A gravidez e a perda do bebê foram fatos mais recentes, de uns cinco anos atrás. E toda a experiência na ocupação se deu durante a escrita do próprio livro, em 2017. Há, de partida, o deslocamento temporal. Existe também um deslocamento espacial. Alguns dos personagens que narro como presentes na ocupação não os conheci ali, desloquei de outros lugares. Geralmente, o que levo para a literatura são experiências que tenho e que, por alguma razão, não se resolvem por completo em um primeiro momento. Que continuam me convocando, me exigindo pensamento, reconvocando nas suas nuances a minha memória, e acabo me sentido preso àquela experiência e desejoso de transformá-la em outra coisa. É no deslocamento, no exercício de montagem, travessia, tempos e espaços, que a coisa se torna propriamente ficcional. Esse é o elemento de ficção que existe na obra em si, nas coisas que tenho escrito. Muito mais do que qualquer possibilidade de fabular. Muito mais do que invenção. O que existe é o deslocamento que tem a finalidade de tornar tudo mais expressivo, mais enfático, e mais coeso.

• Cenário desfavorável
A crítica literária — como a própria literatura, a cultura como um todo — tem sido estrangulada no atual cenário da nossa sociedade. Resta pouco espaço para a crítica literária. Os espaços tradicionais foram sendo perdidos pouco a pouco. O investimento em crítica literária, tanto nos cadernos culturais, nos jornais, quanto nas universidades foi caindo paulatinamente. Neste momento, talvez nunca tenha sido tão baixo. É inevitável que isso incida no alcance, na qualidade, na profundidade, do exercício crítico. É uma consequência incontornável. Só que, ao mesmo tempo, como a própria literatura e cultura, a crítica literária sobrevive. A crítica literária resiste, encontra seus novos espaços. Busca outras maneiras de existir.

• Novo lugar das letras
Sinto que, da mesma maneira que a literatura, a crítica literária tem se subjetivado. Novos canais de discussão de livro se tornaram muito menos afeitos a uma ideia científica de literatura, ou uma visão objetiva de leitura, e muito mais entregues a uma visão pessoal, a um olhar subjetivo para os livros. Às vezes pautado demais pelo gosto, pela estima mais imediata e rasteira. Mas, de qualquer forma, acontecendo com enorme relevância. O importante é que a literatura se realize como debate, como diálogo, do qual participam não só os leitores mas também escritores, críticos. Um debate que se faz mais plural, múltiplo. Em vários sentidos, isso tem se incrementado, enriquecido. Pode ver que, nesse trajeto, saio de um olhar pessimista sobre o papel e o lugar da crítica literária e vou migrando em direção a algo que pode ser muito mais positivo e construir um futuro da literatura mais dialógico, aberto à diferença.

• Papel do escritor
Não costumo gostar de respostas muito estáveis e rígidas, atemporais, sobre o papel do escritor. Poderia dizer que o escritor deve se engajar, participar dos debates sociais e políticos. Seria, me parece, algo razoável e justo neste momento, mas não serve necessariamente para qualquer tempo. Pelo contrário, a percepção é que essa questão é muito longeva, atravessa a literatura há muito tempo, é respondida de maneiras diferentes, em épocas diferentes, em função das circunstâncias e dos contextos que vai encontrando. Dez anos atrás, acho que a resposta mais razoável seria pensar que o escritor pode se comprometer mais diretamente com sua própria forma, com sua própria linguagem, e constituir a partir disso a obra mais relevante, rigorosa e profunda possível. Só que, em tempos de máxima urgência, de alarme, parece que se exige — não só dos escritores, mas de cada um de nós — um posicionamento mais direto, mais claro. Uma intervenção. Não acho que se torne obrigatório ao escritor participar de um debate público, mas o próprio momento exige ao máximo de quem puder realizar algum tipo de intervenção. Algum tipo de transformação da sensibilidade, do olhar. O país, neste momento, nos exige isso muito concretamente, e o escritor que puder responder a esse apelo vai ser muito bem-vindo. Sinto ao mesmo tempo que isso tem acontecido. Não acho que os escritores tenham perdido o espaço nos tempos recentes.

• Literatura ocupada
A literatura conseguiu se engajar bastante. Eu mesmo vinha defendendo, ao escrever A ocupação, um olhar para uma literatura ocupada. A possibilidade de uma literatura ocupada, que temporariamente tem sua função transformada, para que consiga lidar com o presente e a política. Ocupada não mais exclusivamente pela voz do próprio autor, mas também pela voz dos outros. Pelas vozes que vêm sendo silenciadas. Pelas vozes que precisam ser mais ouvidas neste cenário. Minha resposta para um imperativo da política no nosso tempo é a possibilidade de uma literatura ocupada.

• Literatura total
Ao mesmo tempo, posso dizer que isso já começa a oscilar em outra direção na minha própria sensibilidade. Ao me dar conta que neste momento — tão dramático e tão extremo — a literatura tem se engajado amplamente, e resolvido lidar com este presente com um comprometimento que se viu poucas vezes ao longo da nossa história, também começo a sentir falta de outras coisas na literatura. Meu sentimento é de que a literatura precisa ser tudo. De que a gente precisaria de uma literatura total: capaz de lidar com o presente, com os desafios políticos e sociais do país, mas também aberta a outros voos — lirismos, possibilidades mais íntimas, exploração do pessoal, não só do político e do coletivo, aberta justamente a compreender essas relações múltiplas que se criam entre o individual e o coletivo. Sinto que a literatura nos exige tudo, como a vida nos exige tudo, neste momento do país. Que a forma de resistência é justamente multiplicar possibilidades, aderir à vida no seu sentido mais amplo, e não fechar o olhar num único aspecto das possibilidades de intervenção.

• Imersos no pesadelo
Não tem como não olhar de forma aterrorizante diante do que está acontecendo no Brasil de hoje. A gente fica oscilando num vasto rol de sentimentos, que vão do desespero à indignação. Não conseguimos sair muito disso. É preciso, e vai ser preciso durante muito tempo, compreender o que se deu para estarmos neste lugar. Por um tempo se julgava que o que estava acontecendo podia ser prenúncio de algo pior. A eleição do Bolsonaro seria o vaticínio de um golpe, de uma ruptura da democracia, de uma guinada em direção a um autoritarismo extremo, de um novo pesadelo. Mas já estamos imersos nesse pesadelo, e ele não precisa ficar mais grave do que isso para que a gente conceba sua extrema gravidade. Estamos num momento muitíssimo agudo, muito mais agudo do que qualquer outro que eu mesmo tenha vivenciado. Nunca imaginei, na minha vida, chegar a este lugar. Não imaginei que o Brasil chegaria a este lugar, em que parte de sua população batalha pela preservação das desigualdades e violências. Vai ser preciso compreender isso com a máxima profundidade e transformar o cenário da melhor forma possível. Sinto que o processo já está acontecendo, que começamos a nos descolar disso. Mas tem muito chão pela frente.

• Tipos de resistência
Em A resistência, eu tinha um olhar que se voltava para o político, mas não com a disposição de uma intervenção. Era mais para pensar as muitas maneiras que a trajetória política de um país acaba incidindo nas vidas individuais. Esse continua sendo meu foco, meu olhar. Em A resistência e A ocupação, isso me interessou: a maneira que os processos coletivos incidem sobre o indivíduo e sua vida particular. Isso me movia muito para a escrita. Mas, enquanto escrevia A resistência, não era por si mesmo uma literatura resistente, não tinha esse propósito. Só num específico sentido. Gosto do termo “resistência” pela complexidade que ele tem, pela ambiguidade, sobretudo. Resistência a gente usa para nomear duas coisas muito opostas: a resistência no sentido mais negativo, de não querer encarar, não conseguir olhar, e isso se dava dentro da minha esfera familiar. A gente resistia a falar sobre a questão da adoção, a relembrar a perseguição política na Argentina, as nuances do exílio. Havia muitas dimensões de resistência negativa na família. E, ao mesmo tempo, a gente nomeia como resistência uma coisa muito mais assertiva: uma tomada de posição, uma composição de força coletiva, e a ideia de um ato de força. Minha ideia de uma literatura efetivamente de intervenção é a que transforma uma resistência em outra. Queria que a literatura fosse essa ponte que leva da resistência em seu sentido mais negativo à resistência positiva. Agora, em termos de literatura de intervenção, isso se tornou muito mais forte na escrita de A ocupação — tem, de partida, a proposta de olhar para o presente, para a condição política do Brasil no nosso tempo, abrir espaço para vozes silenciadas e, assim, talvez, em alguma medida insondável, produzir transformação.

• Novo mercado editorial
Talvez seja possível utilizar a mesma dinâmica do comentário sobre crítica literária: algo de tradicional que vai se partindo, se rompendo. As livrarias e as editoras tradicionais estão encontrando mais dificuldades nos tempos recentes. O mercado literário pena, em alguma medida, diante de um novo cenário que vai estrangulando a própria cultura. Mas há muitas formas de resistência. A resistência também se dá dentro do mercado editorial. Alguém poderia conceber esse ramo na sua condição estritamente de mercado, e portanto de lugar de repetição, dogmatismo, mas é algo muito mais vivo e rico do que isso. Pode ser um agente, por si próprio, de transformação cultural e de abertura para o novo. Sinto que, nessa transformação constante e plena do mercado, vão se abrindo espaços para novas iniciativas, novas livrarias, novas editoras. Isso tudo tem acontecido com bastante efervescência.

Cultura do romance
A questão do romance, para mim, é gigantesca e interessantíssima. A gente pode olhar para ela só pelo viés do que tem de excessivamente dominante, mercadológico, do que tem de opressor. A ideia de que um escritor precisa escrever seu romance para ser finalmente lido e reconhecido; editoras que vão preterindo obras de outra natureza, rejeitando contos, poesia. Tudo isso se dá e é parte do problema da cultura do romance. Mas o romance como questão é muito mais amplo do que isso. E muito mais vivo.

Gênero indefinido
Em alguma medida, o romance consegue conjugar em si mesmo uma série de tensões do exercício literário, da própria arte, e expressar essas tensões de forma muito contundente, eloquente. É uma questão, um problema, muito interessante de acompanhar. Para mim, a indeterminação, a instabilidade, a ausência de marcas ou regras estritas que caracterizam o romance são o que ele tem de mais interessante e que o torna mais vivo e revolucionário em sentido formal. O romance é completamente aberto. O futuro do romance é completamente indefinido, também. Há tanto vaticínio sobre a morte do romance porque algo está sempre morrendo e nascendo no gênero, e a gente não sabe exatamente para onde vai.

• Crise do romance
Estudando a história do romance, percebi que o que a gente conhece por crise do romance é algo que perpassa tudo. Que existe desde sua origem. E que vai, ela própria, se transformando e se confundindo com a história do gênero. A história do romance e a história da crise do romance estão completamente interligadas, imbricadas. Considero que há algo de muito fundamental aí para entender se se desejar escrever literatura hoje e pensar uma literatura do futuro. Acho fundamental que o escritor se mantenha atento ao que já se produziu, ao que já se discutiu, e que perceba que ele está sendo conformado por esse passado, que esse passado existe dentro dele — quer ele queira encarar, quer não. Que isso é uma das marcas da sua própria trajetória. Que o melhor talvez seja abraçar essa influência e tentar transformar em outra coisa. É o que eu mesmo tenho tentado fazer na minha própria literatura e nesse olhar dividido entre o exercício da crítica e da escrita.

• Literatura e poder
A literatura é uma forma de exercer o poder, mas também um espaço de poder. Um espaço de disputa. A hegemonia econômica de certas nações vai se traduzindo muito concretamente em hegemonia cultural e literária. Meu olhar na escrita do livro Romance: história de uma ideia (2021) foi justamente para refletir o papel do cânone e a constituição do cânone por si mesmo. De fato, o que eu poderia estabelecer como recorte é uma leitura a partir dos autores mais influentes da história da narrativa, do romance. Os sujeitos influentes estão marcados por características centrais e opressivas, que precisam ser desconstruídas. Tenho plena consciência disso, de que essa não pode ser a história do romance. Que é preciso escrever muitas histórias do romance, constituídas a partir de outros vieses.

• Olhar para o romance
No meu livro mais recente, o objetivo é tentar olhar atentamente para a história do romance tal como ela costuma ser contada e romper com certas visões estanques demais, calcificadas demais. Construir outro olhar baseado e fundado nas instabilidades do próprio gênero e naquilo que acaba por constituir suas falácias, suas mentiras. As mentiras que o romance fala sobre si mesmo. Mas, de fato, um movimento muito mais importante do que esse que fiz no ensaio é o de multiplicar o olhar. O de perceber que, em algum momento, o romance sai de um continente único, se expande e se torna dominante no planeta inteiro, que ali vai encontrar outras origens, inclusive, outras formas de narrar que influenciam o novo romance em cada novo continente, em cada novo país. É preciso trilhar várias genealogias. Não é uma só a história do romance. O romance tem múltiplas histórias, e pode ser contada de infinitas maneiras. Quase tão infinitas quanto são os próprios romances. Seria preciso olhar de novo para essa história, e olhar por vários ângulos. O meu olhar é só uma maneira, obviamente parcial e contingente, de fazer esse exercício.

• Exercício hercúleo
Precisamos, com máxima urgência, olhar para aquilo que ficou esquecido na história da literatura. Que foi relegado ao segundo plano, não encontrou o devido espaço. É um ofício hercúleo refazer essa história. Não me vejo apto, mas aprecio muito os críticos e historiadores que são capazes de refazer essa trajetória com outro viés, outro olhar. Algo de fundamental tem acontecido no presente, e com a transformação do presente acredito que o passado também vai ser reconstituído.

• Transformações atuais
A gente tem dado muito mais atenção, a devida atenção, à literatura feita por mulheres. Isso é muito claro na América Latina. Os principais autores jovens da América Latina são mulheres: Lina Meruane, Mariana Enriquez, Samanta Schweblin. Muitas autoras transformando a literatura na América Latina e no mundo a partir de um olhar próprio. Esse movimento está acontecendo, acredito, com mais força do que em qualquer outro tempo. Lembrando que faz poucas décadas que tivemos o realismo mágico, e o boom latino-americano, escrito quase que somente por homens, em um cenário em que os homens eram muito mais lidos do que as mulheres. Isso vem se transformando. Também acho que a literatura feita por negros e negras vem adquirindo mais atenção, e a partir desse novo espaço vão surgir novos olhares — para o passado e para o futuro. A literatura vai se transformar. Acho que é o que temos de mais auspicioso no momento.

Foto: Tomas Bertelsen

“A hegemonia econômica de certas nações vai se traduzindo muito concretamente em hegemonia cultural e literária.”

• Escrita na pandemia
A pandemia me afetou imensamente, como afetou a todos nós. É curioso porque, no momento em que começou a pandemia, minha segunda filha tinha nascido fazia pouco tempo, tinha quatro ou cinco meses, e eu não estava escrevendo nada naquele momento. Quando se deu a quarentena extrema, me vi completamente entregue à função parental, com minha mulher em trabalho de tempo integral, e incapaz de escrever qualquer coisa. Foi completamente impossível encontrar o espaço e o tempo necessários para a reflexão e escrita. Só que foi nessa circunstância mais complicada possível que me vi tentado a aceitar um convite que tinham feito para mim, muitos anos antes, para me tornar colunista do UOL. Sem tempo para nada, e sem a possibilidade efetiva de uma reflexão aprofundada de tudo isso, me vi desafiado a escrever. Precisei escrever. O imperativo da escrita falou mais alto. Foi o que fiz. Aceitei me tornar colunista. Aceitei esse convite que era antigo, e portanto passou a ser quase um pedido meu. Com o tempo, me vi refletindo muito sobre o estado das coisas do Brasil de hoje, sobre a minha própria vida familiar, essa situação tão peculiar, e sobre a própria pandemia.Projeto do momento

Publicando no UOL, me dei conta de que estava escrevendo um livro. Que de pouco a pouco, um texto por semana, aquilo ia se constituindo um pensamento único, com muitas nuances, facetas. Aos poucos, ao perceber que estava escrevendo algo como um livro, fui o constituindo. Pensando: o que falta? O que deixei de falar? Qual aspecto desse presente ainda não encarei? Na prática, óbvio, é um exercício muito diferente: escrever uma coluna envolve atenção ao assunto do momento, aquilo que as pessoas estão discutindo, ao que está se dando mais amplamente entre todos. Não é uma decisão muito exclusiva e individual sobre o que escrever, mas ao mesmo tempo não difere tanto da escrita de um livro como qualquer outro, que traz planejamento, certa dose de surpresa em cada passagem, que exige uma reflexão contínua de por onde ir, por onde seguir. É isso que estou escrevendo neste momento. Aderi como projeto. É o único possível. Em outro momento, obviamente, vou voltar ao romance.

• Futuro
Não faço a menor ideia do que vou escrever sobre a pandemia. Nem se vou escrever. Sinto que houve uma antecipação enorme dessa resposta. Havia um ou dois meses de pandemia e já se publicavam longos artigos, por exemplo no The New York Times, temendo o excesso de romances sobre pandemia que haveria nos anos seguintes. O boom de romances pandêmicos. Mas ninguém tinha escrito romance pandêmico nenhum. Há uma antecipação da própria crítica literária. E há um medo dos escritores de que vão chover no molhado: “É impossível escrever sobre qualquer outra coisa neste momento, porque a escrita de outros assuntos é impertinente, mas escrever sobre pandemia vai resultar de novo em mais um livro sobre tudo aquilo que todo mundo viveu e já conheceu demais”. São problemas que acho que foram antecipados e que ainda precisam encontrar, e encontrarão, sua resolução formal. Não sei o que vai acontecer, porque a imprevisibilidade é uma das marcas indissolúveis da própria literatura e o que ela tem de mais interessante. Não tenho dúvida de que a pandemia em si é um fenômeno que rende boa literatura, que pode nos levar a lugares muito interessantes na escrita. Agora, como isso vai se dar como fenômeno mercadológico, aí não consigo prever.

Romance: história de uma ideia
Julián Fuks
Companhia das Letras
216 págs.
Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

Rascunho