Heloisa Seixas

Trecho do romance inédito de Heloisa Seixas, ainda sem título
Heloisa Seixas, autora de “O livro dos pequenos nãos”
01/04/2010

Faltam cinco horas. Cinco horas porque eu assim decidi, é como deve ser. Cinco horas, trezentos minutos, como trezentos mil serão os caracteres deste livro, para que você possa lê-lo de uma arrancada, a mil caracteres por minuto, no tempo que nos resta, a mim e a você, irmanados na vertigem de percorrer este território — noturno, lunar, onírico — que é o cenário da morte.

Cinco horas, o tempo de uma madrugada. O pino do cronômetro foi pressionado, como arrancado seria o de uma granada — e não há retorno. Fiz uma aposta comigo mesmo e perdi, portanto está feito. Tudo será como deve ser, cinco horas, mais nada.

O livro está pronto. Suas histórias — múltiplas, últimas — deram a sentença. Conheço o exato instante em que começaram a surgir, ganhando substância, ansiosas por escorrer dos meus dedos sobre essas teclas cor de marfim, das quais a vida toda fui escravo. Teclas que receberam as gotas do suor-alimento, nas quais imprimi palavras vazias, não minhas, mas que me deram sustento. A arte da fome. São elas, essas teclas, as testemunhas do meu silêncio amargo, o travo na boca, a barba crescida, o olhar baço, os pés que se arrastam até a estante em busca de um livro qualquer. Conhecem como ninguém este ser noturno, solitário, o apartamento sórdido, a poeira, as guimbas de cigarro, a borra do café solúvel no fundo da xícara sem asa. O desencanto.

Mas agora, chega. O livro está todo aqui, já disse, contos que têm algo em comum, obsedados por um mesmo ponto, o ponto inexorável para o qual convergimos — todos nós. Que meus dedos grossos, brutos, se grudem às teclas e daqui não saiam mais, até o fim.

Vem um primeiro toque, e mais outro e ainda outro. Logo as mãos se movem por vontade própria, centopéias nervosas. Observo a pele calosa, os dedos de unhas sujas. Não parecem as mãos de um escritor. Passam a idéia de força bruta, fragilidade nenhuma. São destemidas. Difícil, olhando assim, dizer que são condenadas, as mãos de um homem morto. Não há qualquer cuidado em seu toque sobre as teclas, apenas talvez um tremor mínimo. Mas quando chegar a hora elas estarão firmes, tenho certeza.

O primeiro a se apresentar é o velho.

Ele não tem nome, é um velho apenas. Ouço sua respiração pesada e nesse ponto ele se parece comigo. Falta-lhe o ar. Imagino seus pulmões como cavernas escuras onde a poeira se vai sedimentando com os anos e a cujas paredes em curva aderem ácaros, em lugar de morcegos.

O velho está cercado de livros. O aposento à sua volta é formado por pilhas e mais pilhas de volumes, de todos os tipos, todas as cores. A penumbra não permite discernir os títulos, mas dá para saber que são, na maioria, livros muito antigos. O velho tenta pegar alguma coisa no alto de uma das pilhas. Suas mãos ressecadas, a pele clara de pergaminho, tateiam com cuidado, há delicadeza nesse toque. Quando se movem para o lado, parecem duas aranhas albinas prontas para o acasalamento.

Com esforço, retiram da pilha alguma coisa, tomando cuidado para não provocar um desastre. A pilha estremece, mas o velho consegue o que quer: um volume de couro escuro, com acabamentos de rolotês na lombada e dois grandes buracos de traça na capa. Assim que o tem nas mãos, abre-o ao meio e aproxima o nariz do ponto em que as páginas se encontram. Inspira com força. Depois, passa a ponta do nariz pela junção das páginas, de cima para baixo, uma, duas, várias vezes, num movimento sensual, quase obsceno. Quando ergue o rosto, sorri.

Logo, com o livro apertado contra o peito, recomeça a caminhar com seu andar incerto, esgueirando-se por entre as pilhas inclinadas, que formam um desfiladeiro. Em alguns pontos, a passagem se estreita a tal ponto que ele se vira de lado para não perturbar as paredes de papel. Toda a casa é escura e curva e labiríntica, debruçada sobre si mesma, com paredes que sufocam. Toda a casa é como seus pulmões — uma caverna.

O velho vive ali, sozinho. Apenas uma empregada meio louca aparece dia sim, dia não, para lhe levar algo de comer. Como é impossível se orientar na casa soterrada, ela abre a porta dos fundos e deixa o prato, coberto por um guardanapo, numa pequena clareira no chão. Quando volta, um ou dois dias depois, para deixar mais comida, recolhe o prato sujo, que sempre é deixado no mesmo lugar. Não sabemos quem é ela, imagino que uma empregada antiga, remanescente dos tempos limpos, quando a casa era apenas uma casa, antes da morte da mulher. Mas jamais veremos seu rosto. Não há tempo.

Perto da porta da cozinha, onde a empregada deixa a comida, há um pequeno banheiro, uma pia, uma bica d’água, onde o velho agora se serve, mata a sede. Quando a água toca sua boca de lixa, temo que a poeira vire pasta, a língua se transforme em escultura de papier maché. Mas ele sorve com avidez o líquido da mão em concha, a outra mão ainda segurando contra o peito o livro que há pouco retirou da pilha e cheirou.

Depois de beber água, volta a enveredar pelas passagens. Nada parece incomodá-lo, nem o silêncio ou a escuridão que existem dentro e fora dele, nem a poeira ou os cheiros de mofo, excrementos, podridão. O velho se orienta bem pelos corredores entre as pilhas, conhece os atalhos. A casa caótica é como uma continuação de seu corpo, há entre eles harmonia e intimidade.

Sempre foi assim. Mas no início, antes de começarem os sintomas, havia ordem no caos. Se precisava procurar um livro, ele seguia pelos caminhos — já, então, estreitos — e ia direto ao ponto. Tinha na cabeça a memória das pilhas, dos corredores, dos aposentos. Sabia onde estava tudo, os livros eram divididos por temas, e dentro de cada tema colocados uns sobre os outros por ordem alfabética de títulos ou de sobrenomes dos autores. Mas aos poucos os fios desencapados começaram a se tocar, provocando chispas e por fim calcinando os dutos, criando grandes regiões de matéria morta. Tudo se fundiu, as fronteiras foram transpostas. Hoje sua mente é escura e curva e labiríntica, debruçada sobre si mesma, com paredes que sufocam. Sua mente é como seus pulmões, sua casa — uma caverna.

Heloisa Seixas

É jornalista e escritora. É autora, entre outros, de Pente de Vênus, b, Pérolas absolutas e Contos mais que mínimos.

Rascunho