🔓 Edney Silvestre

"Evito fazer releituras porque tenho medo de não encontrar a mesma mágica da primeira leitura. E não será a mesma coisa certamente."
Edney Silvestre, autor de “Pequenas vinganças” Foto: Leo Aversa
01/03/2023

Reinterpretar fatos históricos ficcionalmente por meio de dramas pessoais. Essa tem sido a “missão” de Edney Silvestre desde que estreou como escritor, em 2009, com o surpreendente romance Se eu fechar os olhos agora.

O livro, que entrelaça fatos históricos e políticos a uma trama policial, venceu os prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura. O que ajudou Edney a construir uma carreira sólida na literatura brasileira.

“Não teria tido a carreira que venho tendo, não teria a confiança para seguir em frente se eu não tivesse ganhado esses prêmios”, diz o autor, que foi o quarto convidado da 11ª temporada do Paiol Literário, realizado pelo Rascunho com o patrocínio do Itaú por meio da Lei Rouanet.

Nascido em Valença, no interior do Rio de Janeiro, o jornalista e escritor foi uma criança tímida e “desajustada”, que encontrou nos livros uma espécie de redenção. A estreia na literatura, no entanto, foi adiada para depois dos 50 anos por conta de uma suposta “falta de voz literária”, identificada por um editor que leu um dos originais de Edney.

Análise que se mostrou equivocada a cada novo livro do escritor. Autor de 11 livros, entre eles os romances A felicidade é fácil e Vidas provisórias e do livro de narrativas breves Pequenas vinganças, suas obras foram publicadas na Inglaterra, França, Sérvia, Holanda, Itália e Portugal.

Correspondente internacional da Globo, Edney cobriu os atentados terroristas de 11 de Setembro, além de ter realizado reportagens no Iraque, Cuba, Vale da Morte (EUA) e América Central. À frente do programa Globonews Literatura, entrevistou, entre outros escritores, José Saramago, Nadine Gordimer, Mario Vargas Llosa, Orhan Pamuk, Adélia Prado, Ariano Suassuna, João Ubaldo Ribeiro e Salman Rushdie.

• Ficção e História
Sempre acreditei que ler é um grande prazer. Mas é muito mais que isso. Na literatura de ficção, vejo retratos históricos e de época que são mais acessíveis e mais amplos que aqueles que encontramos nos livros de História. Rapidinho, citando clássicos: Victor Hugo, você sabe muito mais sobre aquele período da França — o século 19 — através desse autor, do que por meio dos livros de História. Você sabe muito mais do Brasil em uma certa época, através de Graciliano Ramos. Você também sabe muito mais sobre o Brasil dos coronéis do cacau por meio da literatura de Jorge Amado. Porque você junta a história pessoal com a História com “H” maiúsculo. E todas as histórias se entrelaçam juntamente com as histórias íntimas. Essa é minha crença.

• Ampliar a realidade
Quem, da minha geração, pegou tanto a ditadura militar quanto o governo Collor, foi profundamente transformado e teve sua vida virada de cabeça para baixo por conta desses acontecimentos. Sempre acreditei que essa era uma das tarefas importantes para eu fazer em minha literatura. Você abre as portas para o jogo íntimo — como Balzac fazia. E ao mesmo tempo, você faz um painel sobre o que estava acontecendo em volta daqueles personagens.

• Prazer Quando comecei minha caminhada na literatura, lia por puro prazer. E lia de tudo. Nós tínhamos uma biblioteca pública em Valença [município do Rio de Janeiro onde o autor nasceu]. E o prédio ficava em uma praça onde também morava a bibliotecária. Então a gente batia na porta da casa da bibliotecária, pedia a chave emprestada e pegava o que bem entendesse, deixava anotado e devolvia os livros depois. O que aconteceu, é que, lendo desordenadamente, eu lia por prazer. E eram livros de aventuras.

• Jack London
Então cheguei ao Jack London sem saber quem era o Jack London. Não fazia ideia de quem ele era. Apenas comecei a ler Caninos brancos. Aí descobri um americano chamado Ernest Hemingway. E fiquei encantado, mas também não tinha ideia de quem ele era. É que não estudávamos autores estrangeiros. Estudávamos mais Rachel de Queiroz, Machado de Assis, etc.

• Thomas Mann
Lá pelos 14 anos, eu era um rapaz magrelo, desajeitado e desajustado. Estava perdido naquela cidade, que é linda, mas ainda assim eu estava perdido. Lá todo mundo parecia ser feliz, mas eu não era. Não conseguia ser feliz. E aí li um livro, de um autor de quem nunca tinha ouvido falar. O livro se chamava Tonio Kröger, e o autor era Thomas Mann. Aí eu pensei, meu Deus, há outras pessoas como eu. Aí fui juntando, tanto o prazer de ler Jack London quanto o de ler Thomas Mann.

Edney Silvestre Foto: Leo Aversa

• Um garoto diferente
Eu achava que era o único jovem infeliz, desajustado, naquela cidade onde tudo parecia se encaixar. E ao ler Tonio Kröger, descobri que havia reflexo do mundo nas pessoas, nas páginas dos livros. Antes eu lia apenas por ler mesmo. A minha irmã, sim, na época já lia Tolstói. Eu nem chegava perto. Mas comecei a ler e a escrever porque era um garoto raquítico, doente, que não conseguia caminhar direito, então ficava muito na cama. E me davam livros. E foi aí que comecei a fantasiar mundos. E como não conseguia falar direito, tinha problemas de fala, descobri que poderia escrever. E para completar o quadro, sou disléxico. Mas quando escrevia, não tinha esse problema. Então o mundo se abriu para mim.

• Memórias de Adriano
Junto tudo isso para responder sobre a importância da literatura de ficção. Os autores e o leitores têm o mesmo tipo de empatia, às vezes. Você descobre em um autor ou autora algo que você não sabe nem nomear. Lembrei agora quando descobri Memórias de Adriano, da Marguerite Yourcenar, fiquei tão encantado que passei semanas sem conseguir ler mais nada. Eu tinha uns 19 anos. É um livro tão completo, tão pulsante, que passei um tempo afastado da leitura.

• Conselho da dona Odete
Por ser disléxico e ter outros vários problemas, não conseguia ter um bom desempenho em gramática. Mas tive uma professora, dona Odete Coutinho da Silveira, que chegou para mim e disse: “Não se preocupe com gramática, você escreve bem e não necessita da gramática. Mas precisa de leitura”. Então ela completou: “Leia, leia muito. E leia de tudo: biografia, romance, poesia”.

• A magia da primeira leitura
Hoje não costumo revisitar esses livros que foram importantes para mim. Esses tempos, no entanto, abri uma exceção. Por ter que participar de um debate, reli Gabriela, cravo e canela. E fiquei encantando. Descobri que realmente é um belíssimo romance. Também evito fazer releituras porque tenho medo de não encontrar a mesma mágica da primeira leitura. E não será a mesma coisa certamente. Tanto que Gabriela não foi. Na segunda leitura, descobri um outro livro.

• Início da escrita
Quando era adolescente, escrevia e publicava em dois jornais da minha cidade. Quando me mudei para o Rio de Janeiro, com 16 para 17 anos, tive uma vida muito seca, tinha que trabalhar e estudar para poder me sustentar. Nessa época o que eu escrevia era puramente catártico. Não era nada literário. E também traduzia, era um dos trabalhos que eu fazia. E por traduzir, acabei indo trabalhar na Bloch Editores, e dali passei para a reportagem.

• Primeiras histórias
Sempre escrevia algumas coisas. Por exemplo, publiquei um conto em uma revista histórica chamada Ficção. Mas eu tinha que sobreviver e não me ocorria que escritor fosse uma profissão. Aí, lá pelos meus 30 e poucos anos, escrevi um romance experimental, que dei o título de Oh, oh, oh Babilônia, era um livro de histórias que se interligavam. Depois descobri que um grande autor cubano tinha feito isso, num livro chamado Três tristes tigres — e feito fabulosamente bem. Na época eu não tinha lido o Guillermo Cabrera Infante, mas foi algo parecido com o livro dele que eu tentei fazer.

• Sem voz
Apresentei o manuscrito a um editor na época, um ótimo editor. Ele foi muito sincero comigo, disse que eu escrevia bem, mas que não tinha uma voz. Ele me aconselhou a continuar a escrever, etc. Aquelas coisas que os editores falam para se livrar da pessoa… Continuei escrevendo, mas achando que aquele não poderia ser o meu caminho porque eu não tinha voz.

• Ponto de virada
Quando aconteceu o 11 de Setembro, muita coisa interna em mim mudou. Mas o sinal mais forte de que eu necessitava, foi minha vontade de escrever um livro, minha vontade de virar escritor. Então eu pensei, não vou virar um escritor, ou sou ou não sou um escritor.

• Se eu fechar os olhos agora
Tinha anotações daquilo que viria a ser o romance Se eu fechar os olhos agora. Não se chamava assim. Publiquei o livro em 2009, mas comecei a escrevê-lo uns seis anos antes. Escrevi e parei no meio, porque achei que a tarefa era grande demais para mim. Quando a história começou a se mover para trás, para a ditadura de Getúlio, depois para os exemplos de opressão no mundo rural, para o Império no Brasil… Achei que era demais para as minhas ferramentas. E parei. Mas não sabia que estava fazendo um truque comigo. Parei e não fiquei angustiado. Acho que essa parada durou um ano.

• Fazendo sentido
E aí dei de cara com uma epígrafe, que tinha tudo a ver com o que eu queria contar: “Os mortos não ficam onde estão enterrados”. Trata-se de uma frase do autor inglês John Berger. E aí entendi tudo. Você é perseguido a vida inteira por aqueles fantasmas da infância. E era tudo ligado a um período de enorme esperança para mim e para o mundo inteiro, que foi o período do primeiro homem no espaço, com Iuri Gagarin. Teve o Papa João XXIII, o primeiro pontífice que se voltou aos pobres e necessitados. Havia no Brasil também as tentativas de construção democrática, havia o grande Paulo Freire. E isso começou a voltar para mim, até perceber que era disso que eu queria falar. Então consegui terminar o livro e o título brotou espontaneamente, de um personagem: Se eu fechar os olhos agora (ainda sou capaz de sentir o sangue dela grudado nos meus dedos).

• GloboNews Literatura
Eu conduzia o programa GloboNews Literatura, que me dava a oportunidade de entrevistar fabulosos autores e autoras. Entrevistei Adélia Prado, José Saramago, Norman Mailer, etc. Esse convívio me dava enorme prazer. E eu era cronista d’O Globo e publiquei dois livros de crônicas, um deles com várias inéditas, que é Outros tempos, e Dias de cachorro louco, que escrevi enquanto morava em Nova York.

• Finalmente a voz
Mas romance, eu tinha feito aquela tentativa com Oh, oh, oh Babilônia e havia essa maldição pesando sobre minha cabeça: a voz, a voz, a voz… Depois de escrever Se eu fechar os olhos agora, deixei o livro guardado por um tempo. Aí quando fui relê-lo, concluí que realmente eu tinha uma voz literária.

• O empurrão de Saramago
Mas essa busca foi completamente inconsciente. Meu incentivo veio de uma entrevista que fiz com José Saramago. Ele contou que havia escrito Levantado do chão até a metade de um jeito, e em seguida passou a escrever de maneira completamente diferente. Acho que dentro de todo escritor, há um momento em que ele se encontra com ele mesmo. É a tal da voz, que é a maneira de contar o que se quer contar. Pode ser que, para os escritores da indústria americana de livros, que estudam técnicas de construção, de busca de estilo, isso não faça sentido. Mas o estilo está dentro do escritor.

• Prêmio São Paulo
Tomei um susto muito grande quando ganhei o Prêmio São Paulo de Literatura. Eu nem ia à premiação porque achava que era impossível vencer. Ainda naquela época o livro tinha recebido algumas críticas muito ferinas. Pensei, vou lá pra quê? Aí a Livia Garcia-Roza, maravilhosa autora, me disse “vá, você vai encontrar outros escritores, é uma convivência boa”. E eu fui.

• Perplexidade
E estou lá sentado ao lado da Claudia Lage, esperando que anunciassem os vencedores. E eu não ouvi quando chamaram meu nome. A Claudia me deu uma sacudida. Acho que nas fotos dá para ver como estou com uma expressão de perplexidade. E fiquei mais perplexo ainda quando descobri, depois, que eu tinha vencido por unanimidade. • Jabuti Quando ganhei o Prêmio Jabuti, estava na redação fazendo alguma reportagem, e o G1 publicou a relação dos vencedores. Para minha surpresa, eu tinha vencido na categoria de Melhor Romance. Era o mesmo ano de um livro lindo do João Ubaldo Ribeiro, chamado O albatroz azul, que eu adoro. É um livro até subestimado. Eu achava que o João Ubaldo iria ganhar o Jabuti. E fiquei encantado de estar ao lado dele.

• Prêmios incentivam
Não teria tido a carreira que venho tendo, não teria a confiança para seguir em frente se eu não tivesse ganhado esses prêmios. E o prêmio fez toda diferença em relação à maneira com que passei a ser visto. Toda vez que sou citado, mencionam essas premiações. É um clichê, mas sou muito grato por esses prêmios.

• Urgência
Eu tenho uma urgência. Já estreei com mais de 50 anos. Não tenho tanto tempo assim pela frente. Se eu tivesse estreado talvez aos 26, 27 anos, poderia ter mais calma. Tenho algumas urgências então.

• A felicidade é fácil
No caso do meu segundo romance, A felicidade é fácil, eu tinha um recorte de jornal que falava do sequestro de uma criança em São Paulo — e essa criança foi imediatamente assassinada, porque era a criança errada. Foi o sequestro de uma criança errada que nem a mídia nem as autoridades deram a menor importância, porque era um menino filho de caseiros. Isso me comoveu muito e eu carreguei esse recorte por anos.

• Era Collor
Aí comecei a estruturar, mas queria estruturá-lo dentro do lodaçal que foi o governo Fernando Collor. Sabia que sempre há uma correlação entre a corrupção entre as faixas sombrias que cercam uma nação e aquilo que se reflete num cidadão. Nunca teria havido o sequestro dessa criança em outras épocas, não haveria tido tantos suicídios, por exemplo. E foi naquela Era Collor que se iniciou a diáspora brasileira. Não que não houvesse pessoas que fossem trabalhar e estudar fora do país antes disso, mas ali se iniciou com mais força. E eu, já como correspondente nos Estados Unidos, tinha conhecido centenas de expatriados.

• Expatriados
Uma das personagens surgidas em A felicidade é fácil, já é alguém que pretende sair do país. É uma moça jovem, a Bárbara. Embora seja coadjuvante, ela é filha do motorista assassinado durante o sequestro. Enquanto escrevia o livro, fui aprendendo a lidar com a minha memória e a maneira de construir o meu romance, com as anotações, pesquisas, datas e horários, com nomes de personagens…

• Diáspora
Então eu tinha muita vontade de falar sobre a diáspora brasileira, que começa com o Collor. Mas claro que havia exemplos anteriores, inclusive de pessoas queridas, amigos meus, que foram exilados pela Ditadura. E eu me toquei que algumas das pessoas que foram exiladas eram como eu: jovens de 19, 20 anos e que só voltaram depois dos 30 anos. Eu encontrei outro país quando voltei depois de 12 anos fora. A dor do expatriamento, o esvaziamento interno, a saudade das coisas mais banais, tudo isso me marcou. Eu queria muito escrever sobre isso.

Edney Silvestre Foto: Leo Aversa

• Personagens transitórios
Minha esperança é a de que eu possa contribuir para que se compreenda melhor o nosso país. Porque estou contando histórias que você não encontra nos livros de não ficção. O que se passa com os brasileiros expatriados não é um tema que interesse. O que sente uma moça de 18 anos, sozinha em uma cidade do interior dos Estados Unidos, trabalhando como faxineira em vários lugares? E não conseguindo falar a língua. E não é por incapacidade intelectual, mas sim pela tensão em que a pessoa vive, como a tensão de fugir da polícia o tempo todo. Na época dos exilados brasileiros, a Ditadura do país colocava espiões nas embaixadas e violava correspondência. Muitas pessoas não recebiam as cartas que eram enviadas por seus pais, irmãos, mulheres e amigos. E isso não é comentado.

• Pequenas vinganças
Em uma das narrativas breves de Pequenas vinganças, utilizei uma história ocorrida na minha família. O meu bisavô foi um voluntário da pátria. Ele voltou da Guerra do Paraguai como herói, com uma medalha. Mas, subitamente, sumiu de casa. E era um pai doce. Só muitos anos depois foram descobrir os restos mortais dele em uma loca de pedra. Tornou-se um ermitão, que vivia de raízes, caça, pesca, em uma maloca de pedra. Ele abandonou a família sem nunca dizer o porquê. E nunca ninguém comentou isso, só se comentava a história. E eu estava lendo sobre as atrocidades que foram cometidas na Guerra do Paraguai, e finalmente me toquei no que tinha acontecido com aquele homem bom que havia virado uma criatura monstruosa, que degolava crianças e soldados de outros países.

• Narrativas breves x romance
Não sei para onde vou quando começo escrever. A vantagem da narrativa breve é que posso entrar em inúmeros universos diferentes — a Guerra do Paraguai, Brasília, Suécia, etc. Ela permite isso. No romance, você vai se expandindo. Tudo vale. Desde que você encontre o tema que te emocione. Passo pelo menos um ano escrevendo um romance, se não mais, às vezes dois, até três anos. Mas enquanto isso, também escrevo outras coisas.

• Pandemia
Acompanhei a pandemia com o receio de perder o juízo. Teve um momento, lá na TV Globo, onde eu trabalhava, que todos com mais de 59 anos foram mandados trabalhar de casa. E eu tinha medo de que esse isolamento me fizesse mal. Então adotei alguns recursos. Por exemplo: eu fazia a barba todo dia, arrumava a cama, acordava de madrugada, tipo 5 da manhã, e saía para caminhar à beira da praia. Todo dia. Tomei como boia para sobrevivência a rotina. E tinha meu trabalho.

• Perversidade
Para mim, um dos piores momentos do ex-presidente [Bolsonaro] foi quando ele, publicamente, debochou de pessoas com falta de ar por conta da covid-19. Quem já acompanhou uma pessoa numa situação similar sabe o quanto é doloroso, o quanto isso é angustiante. Agora imagine se você é um pai, um irmão, um marido vendo o presidente do seu país debochar da dor do seu ente querido. O que eu percebi ali, é que havia algo além da alegada burrice dessa criatura. Há uma perversidade, há uma maldade nisso, uma intenção de derrubar, de ferir.

• Caminhando sobre escombros
Quando algumas pessoas falavam em genocídio, não era exagero. Havia uma política para destruir um povo. Você acaba com as crianças, você não lhes dá condições de vida, de alimentação, você envenena o ambiente em volta delas. Eu ainda estou sob o impacto de tudo o que nos aconteceu: essa junção de pandemia, com essa criatura no poder e tudo o que ele representa. Esse rancor, essa perversidade, essa maldade… eu tenho tentado escrever sobre isso, porque de certa forma eu sou um sobrevivente de uma situação terrível e precisamos falar disso. Mas ainda não sei como eu vou falar sobre isso na ficção. Escrevi uma peça, que tem um pouco disso, que eu chamei de Grande hotel abismo, cujo subtítulo é “Caminhando sobre escombros”. Que é o que estamos fazendo agora.

• Indiferença aos mais pobres
Desde sempre temos uma classe dominante indiferente às necessidades dos pobres, dos famintos, dos iletrados, analfabetos. Há uma intencionalidade em deixar as pessoas com fome, sem escola, sem saúde, sem moradia. Por que eu digo isso? Porque dinheiro existe. Então por que ele não chega às pessoas? Um homem como o padre Júlio Lancellotti é visto como inimigo porque defende os mais necessitados. Mas talvez o que falta perceber é que existem liberais, pessoas na direita, que são pessoas decentes, óbvio que tem. E pessoas que também querem o bem comum. Mas onde estão essas pessoas? Como foi possível chegar a esse ponto que chegamos, à indiferença do poder público, que constrói, junto a viadutos, partes pontiagudas para que as pessoas não durmam ali? Ninguém escolhe dormir embaixo de um viaduto porque é um prazer estar ali. Dessa perversidade as pessoas tinham vergonha e hoje elas não têm mais.

• Apoio à direita
Quando tivemos a ditadura militar, havia muita crueldade, prisões, tortura, pessoas desaparecidas, isso não significava que o Brasil todo fosse assim. Mas os militares, vale lembrar, eram apoiados por boa parte da classe média. O ditador Emílio Garrastazu Médici, o mais sangrento de todos, foi aplaudido de pé quando foi ver um jogo no Maracanã. Então não é algo que brotou subitamente por causa das redes sociais. Isso já existia, como o apoio à ditadura militar existiu. Não podemos esquecer isso.

• Jornalismo
Sempre acreditei que o jornalismo me dava a oportunidade espetacular de conhecer o mundo, claro, mas especificamente de conhecer o Brasil. Fui para o Norte, Amazônia, Rondônia, conheci brasileiros e brasileiras extraordinários. E pessoas ditas comuns. Por exemplo: estou falando de uma farmacêutica em Belo Horizonte que criou um projeto para tornar o sequestro um crime hediondo a partir do sequestro e do vil assassinato da filha dela. Uma mulher, entre aspas, “comum”. Conheci um rapaz em Rondônia, piauiense de origem, que processou e conseguiu que o prefeito da cidade de Ariquemes devolvesse o dinheiro que foi recebido para construir uma estrada que ligava à capital do Estado e que ficou incompleta. Ele fez isso. Ele não é um herói, é um brasileiro comum que resolveu usar a cidadania como arma. Isso o jornalismo me deu. E eu nunca conseguiria escrever o que escrevo se não tivesse essa experiência jornalística.

Pequenas vinganças
Edney Silvestre
Globo
160 págs.
Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

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