Poemas de Dalila Teles Veras

Leia os poemas "Abismos", "Engarrafamento", "corpo em dor " e "vias oblíquas"
Dalila Teles Veras, autora de “Retratos falhados”
01/06/2012

Abismos

Dizem as velhas da praia que não voltas.
São loucas!
São loucas!
Barco negro, Caco Velho, Piratini, David Mourão-Ferreira

diante de seus medos
um homem
com toda a fragilidade
de um homem

(na esquina do viver onde
a luz encontra as trevas e
prenuncia tormentas)

um homem
que se recusa
assistir ao embarque
à despedida

em desespero, agarrado
ao cordão, em vias de

um homem e seus abismos
incontornáveis

Engarrafamento
ou
o eterno retorno

Estou na estrada de volta p’ra onde eu já não quero ir
Rumo ao sul – Jorge Fernando/ Carlos Viana

entre tantas, a
semovente máquina
entretanto
não se move…
não se move…

prisioneira
de sua própria armadilha
estanca
(prodígio tecnológico)

ícaros futuristas
em fila e ânsias antigas
compartilham
solidões enclausuradas
(inúteis 350 cavalos
impotente (des)comando)

já não se vai
(distâncias incontornáveis)
nem é possível voltar
(inalcançáveis destinos)
paradoxo pós-moderno

corpo em dor

Não queiras penas alheias,
Que as tuas chegam-te bem
Filosofias, João Linhares Barbosa e Francisco Viana

seta açodada, pungitiva adaga
(dor, dor, dor, dor)
corpo em frangalhos, avinagrados alhos
dolor, ache, douleur
dor sem filiação lingüística
dor (in)verbalizável

indecência da dor
humilhação da dor
íntima e invisível
(vergonhosa experiência misantrópica)
duradoura dor, dura dor
nervura fervente
dor que não deixa, dor impertinente

nocauteado
vai à lona o corpo
paroxismo ao oitavo dia

vias oblíquas

Porque parte tudo um dia
O que nos lábios ardia
Até não sermos ninguém
Paixões diagonais, Miguel Ramos e João Monge

depois que a mulher voejou
levando consigo a
claridade dos cômodos e
duas décadas coabitadas, o
marido, no escuro
ensimesmado,
deixou o cabelo crescer, o
mato tomar conta dos
canteiros, o
pó cobrir os móveis

depois que a mulher voejou
levando consigo
a sonoridade da alcova, o
marido, às claras
resoluto, reagiu
engaiolou dez pássaros
registrou em cartório o
certificado de propriedade
dos novos moradores
(garantia do controle de vôos e
ingresso permanente a
concertos privados)

Dalila Teles Veras

Nascida em Portugal em 1946, vive no Brasil, em São Paulo, desde a infância. É autora de diversos livros de poesia, reunidos no volume À janela dos dias – poesia quase toda (Alpharrabio), além de Poesia do intervalo (Alpharrabio) e Retratos falhados (Escrituras). Publicou ainda os volumes de crônicas A vida crônica e As artes do ofício, o diário Minudências, bem como outros títulos no gênero ensaio. Os poemas aqui publicados integram o livro inédito Estranhas formas de vida.

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