Antônio Torres

“Como todo escritor deve ser, sou essencialmente um leitor. A leitura é meu alimento.”
Antônio Torres. Foto: Matheus Dias
01/08/2008

No dia 9 de julho, o escritor Antônio Torres, autor de romances como Essa terra e Um cão uivando para a lua, foi o convidado do Paiol Literário, projeto realizado na capital paranaense pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná. Numa conversa com o mediador do encontro, o escritor e jornalista José Castello, e o público que compareceu ao Teatro Paiol, Torres falou sobre a importância da literatura para a sua formação como cidadão, no interior da Bahia, analisou a onda de auto-ajuda que invadiu o mercado editorial mundial e discorreu acerca das muitas gerações de escritores brasileiros que leu e conheceu. Leia abaixo os melhores momentos do bate-papo.

Eu queria ser Castro Alves
Acho que a literatura pode mudar as pessoas, sim. Há quem diga que não, que não muda nada. Cada um tem sua idéia. A mim, mudou. Acho impossível que alguém, um dia, não tenha sido mudado por Madame Bovary e por Crime e castigo. Impossível não ser mudado por Kafka ou Machado de Assis. Eu fui. Vim de um mundo rural, agrário e ágrafo. Vim do sertão. Quando descobri os livros, descobri outro mundo. E se me perguntassem o que eu queria ser quando crescesse, eu responderia: “Castro Alves”. O cara era bonito como um corno e dava muita sorte com as mulheres. Quem é que não queria ser Castro Alves? Chegou a Recife, onde havia uma guerra entre a polícia e os estudantes, e gritou: “Soldados, parai. A praça é do povo como o céu é do condor”. E os soldados pararam. Sabendo dessas histórias, como é que eu não quereria ser Castro Alves? Pois a literatura me mudou. Sempre que leio algo que me move, sinto que mudo. Mudo meu jeito de pensar. Li muito tardiamente um escritor francês chamado Boris Vian, autor de A espuma dos dias. E pensei: “Meu Deus, por que não li isso mais cedo?”. Eu seria outro escritor se tivesse lido aquilo mais cedo. Para mim, aquele livro é fantasticamente novo. Vendeu milhões em Paris. E vende até hoje. O cara morreu com 38 anos e ainda tocava trompete. É de matar de raiva: o cara escreveu A espuma dos dias e ainda tocava trompete. Então, a mim, a literatura não só mudou, mas acho que vem mudando. É um processo que segue com o tempo. Como todo escritor deve ser, sou essencialmente um leitor. A leitura é meu alimento.

Verdes mares do sertão
Tive uma professora que me ensinava a ler em voz alta. Lá no Junco (BA). Uma professora da escola rural, do primário. E essa mulher fez a oficina literária da minha vida. A gente estudava na escola para meninos e meninas da professora Serafina, uma escola sob a influência da Era Vargas, meio militarizada. E a professora, logo de cara, me botou na praça pública para recitar Castro Alves: “Auriverde pendão da minha terra…”. Um belo dia, à porta da escola, chegam uma senhora e sua filha. E a filha diz: “Dona Serafina, vim buscar os alunos”. Daí, dona Serafina falou: “Leve os meninos”. E nós saímos murchos. Que graça ia ter irmos a uma escola só de meninos, se uma das nossas maiores motivações era nos sentarmos ao lado de uma menina, quem sabe darmos um beliscão na perna dela, pegarmos na sua mão e tal? Pois aquela professora vinha inaugurar um novo prédio, todo padronizado. Tinha aqui a sala de aula, ali a casa da professora e a área do recreio. Era uma coisa do governo, feita para invadir os fundões do Brasil. E essa professora Tereza chegou, abriu as janelas, pegou um livrinho e mandou todo mundo fazer fila. Para mim, caiu o seguinte: “Ver-des ma-res bra-vios da mi-nha ter-ra na-tal on-de can-ta a jan-daia”. Na segunda vez em que li aquilo, eu já estava melhorzinho. Na terceira, na quarta, já estava lendo legal. Agora, vocês não imaginam o efeito disso sobre um menino que nasceu e que vivia em um lugar onde nem rio havia. O que era esse tal de verde mar? E no plural, “verdes mares”? O que era uma jandaia? Eu nunca tinha visto uma jandaia. O que era uma carnaúba? Isso era coisa lá do Piauí, do Ceará, de muito longe de onde eu estava. Coisa de um Nordeste aquoso. Não tinha água na minha terra. Quando chovia, o povo vestia terno branco e rolava na lama, de tanta alegria. Então, imagina: “verdes mares”?

Em voz alta
Às vezes, escrevo e leio o que escrevi em voz alta, como se estivesse aqui, falando com vocês, falando esse texto para o meu leitor. Não quero perder essa oralidade que vem da infância, da escola rural. Sou produto dessa cultura rural e de uma cultura oral, também. Meu imaginário foi feito dentro disso. Das histórias que me eram contadas e cantadas, do cordel. O cordel vem dessa cultura oral, dessas histórias muito imaginosas, sem tempo nem espaço, que me influenciaram muito. Adoro isso de ler em voz alta. Nas oficinas literárias que faço, boto todo mundo para ler em voz alta.

Meus monólogos
Acho que todos os meus livros são monólogos. Em Um cão uivando para a lua, por exemplo, vemos um cara internado. Minha idéia, ali, era escrever um conto sobre um doido batendo papo consigo mesmo. Dali a pouco, eu já tinha ultrapassado os limites de um conto e, oito meses depois, estava com um romance. E é isto: esse cara, depois de uma viagem de 36 horas de eletrochoques, começa a fazer uma viagem pelo país e por dentro dele mesmo. Quer dizer, faz um monólogo. Eu imagino esse personagem falando alto, contando aquilo tudo para alguém. Em Um cão uivando para a lua,um personagem se chama A e o outro T. É bandeiroso: Antônio Torres, A e T. Esses dois personagens são duas faces da mesma moeda. Na verdade, são um personagem só. Um está internado e outro está visitando. Um está na televisão, o outro é um repórter que pirou após uma viagem à Transamazônica — mas pirou mesmo por causa do LSD. Uma coisa da juventude dos anos 70. Uma parte dela estava na luta armada e a outra estava com Jimi Hendrix e Janis Joplin. E tome LSD! E eu pego esse personagem que explodiu e tento resgatá-lo pela consciência do louco. E também faço uma interrogação sobre onde fica a fronteira entre sanidade e loucura. É esse o jogo desse livro. É um monólogo.

• Memória, exílio e astúcia
Há muito de memorialismo em meu trabalho. E isso não foi premeditado. Toda a minha obsessão é com o romance. Mas minha memória funciona muito. É como aquela frase de Luz em agosto, do Faulkner: “É a memória, e não a dor, que faz você reviver centenas de ruas selvagens e ermas”. Ou então aquela coisa do Joyce, que saiu até no Rascunho, sobre memória, exílio e astúcia. São as receitas para o escritor. É você ir buscar lá na sua memória o seu socorro e o seu material de referência, o exílio para você poder estar consigo mesmo, falando pelas paredes, falando em voz alta. E a astúcia é a própria atividade. A astúcia é o que faz o escritor. Acho que Joyce sabia um pouquinho do riscado.

José Castello e Antônio Torres. Foto: Matheus Dias

• Mailer enterrado
Acho que, com a morte de Norman Mailer, morreu um tipo de escritor que não há mais, que é aquele escritor que interfere no seu tempo, o cara de briga. E ele brigava até mesmo fisicamente, era tão brigão que esfaqueou uma mulher, um negócio doido. Vi uma entrevista dele ao Paulo Francis em que ele dizia que a época do escritor já tinha acabado. Que escritor, agora, é coisa de moda, de celebridade. Que o escritor acabou. O enterro de Mailer enterrou também, simbolicamente, o tempo do escritor.Nos meus momentos mais pessimistas, concordo com ele. Nos mais otimistas, acho que a vida continua. O mundo é dialético, o tempo é dialético, a literatura vai mudando com o tempo e com os escritores. E a gente vai querendo que as coisas se repitam dentro de um tempo que você viveu, um tempo de que você gostou e no qual você se formou.

Leitor mudado
É uma realidade um tanto complexa que, às vezes, escapa das minhas mãos. Percebo no nosso tempo a sua instabilidade de valores. Quer dizer, se instaurou no nosso tempo uma instabilidade total de tudo, até da forma de pensar. A gente vinha do iluminismo, a gente vinha de um mundo de idéias mais ou menos sólidas. Você tinha o preto e o branco, a direita e a esquerda e, de repente, tudo isso explode. Tudo vira essa coisa triunfalista do capitalismo. A globalização chegou muito mais forte do que todos os tanques soviéticos, chegou arrasando quarteirões e mudando tudo. Sou um escritor formado por frases assim: “Conhecia-o de vista e de chapéu”. Machado de Assis, no começo de Dom Casmurro. Levei um choque com essa frase. E achei que ser escritor era isto: você ficar horas e horas e horas em busca de uma frase que, primeiramente, nos provoque um desconcerto pessoal. Um choque. E aí no que é que isso resulta? Fico horas e horas esperando aquela palavra, catatônico diante da tela em branco. Em busca da palavra que exprima exatamente aquilo que quero dizer. Sempre torturado por uma sensação de limitação, pelo fato do meu conhecimento de palavras ser tão inferior à necessidade que sinto delas. Você precisa de uma palavra, daquela que vai dizer aquilo tudo que você está sentindo, e você não a encontra. Passa horas e horas torturado com isso. E, aí, ela vem, vem a frase, depois o bloco de texto todo. Sou escritor formado assim. E acredito que a maioria dos escritores do mundo foi formada assim. Mas, hoje, parece que isso já não tem a menor importância — é claro que existem as exceções. Mas a sensação que tenho é a de que o leitor de hoje não está mais procurando aquilo que eu procurei um dia, como leitor. O leitor mudou completamente.

A felicidade em 15 segundos
Essa mudança nos leitores não é unilateral. Quer dizer, esse rolo compressor que está aí não é por acaso. Por exemplo: qual é o grande segredo do Paulo Coelho? Ele teve um saque de gênio quando percebeu, intuitivamente ou não, o vazio do nosso tempo. Então, desapareceram as utopias — e a literatura fazia parte das utopias. Então, a utopia desapareceu. Isso não foi só uma coisa política. É claro que há o fator político por trás. Mas me parece que o Paulo Coelho sacou esse vazio que se instaurou com o fim da história, com o fim da utopia — coloquemos isso entre aspas ou não. Ele sacou que o leitor estava desamparado. O leitor não queria mais o mundo organizado da alta literatura, do pensamento, da psicanálise, da filosofia. Ele sacou um negócio que hoje está valendo milhões de dólares: a tal da lenda pessoal. Você sai do projeto coletivo e vai para o pessoal, entendeu? E aí é que se impôs, junto com ele, tudo isso que está aí. Você entra numa livraria, hoje, e com o que você dá de cara? Com 350 mil Paulos Coelhos. Tudo na entrada da livraria. É tudo auto-ajuda, meus senhores e minhas senhoras. Produto de ocasião. Os psicanalistas estão sobrevivendo de auto-ajuda, os filósofos estão fazendo livros de auto-ajuda. O leitor está querendo outra coisa, está querendo isso. O cara compra o livro Como ser feliz em 15 dias. Aí, ele não fica feliz em 15 dias, mas fica viciado em ler isso. E vai buscando o menor prazo. Como ser bom de cama na velhice. Puxa, até eu quero, não é? Então, ele vai ficar viciado nisso. E não vai melhorar sua performance na cama. Mas vai comprar o próximo livro que lhe der outra dica a respeito do tema. Gore Vidal falou sobre isso. Pego o exemplo dos americanos porque eles entendem mais disso do que nós. Vivem dentro do capitalismo desde antes de nascerem. Um repórter da Veja perguntou para o Vidal: “Por que nos últimos tempos nenhum peso-pesado das letras norte-americanas figura nas listas de best-sellers?”. E ele respondeu que a literatura sempre havia sido para poucos. Agora, mais ainda. Mesmo esses caras que foram tremendos best-sellers, e fazendo literatura, já caíram na real. Acho que nosso destino é escrever para os leitores do Rascunho. Outro dia, fui a um evento do Sesc, em Vitória, falar sobre “o lugar do local”. E havia muitas perguntas sobre esse assunto. Daí, eu pensei: “Puxa, eu inventei isso e o feitiço virou contra o feiticeiro. O que é que eu vou dizer? Sei lá onde é o ‘lugar do local’”. Mas, de repente, me veio o seguinte: eu me sinto como um velho contrabaixista de jazz que sai pelo país e pelo mundo. Tenho viajado muito, acreditem se quiser. Fiz palestra até na Bulgária. Tocando aquele contrabaixo para um pequeno auditório como este aqui. Pequeno, mas fiel. Então, acho que a única saída para nós, hoje, está na soma desses pequenos auditórios. O grande auditório já está tomado por aqueles que vão ensinar a felicidade em 15 segundos.

A homeopatia do mercado editorial
Não sei até quando as livrarias trabalharão com literatura. Fico até com medo. Até quando o que escrevo vai interessar? Até agora está interessando a uma boa dúzia e meia. Mas é um negócio complicado. E tem aquela história: vamos olhar pelo lado otimista. Diz o Carlos Heitor Cony que o otimista é apenas um mal-informado. Mas o que acontece? Por um lado otimista, vamos combinar também que pode ser que este momento esteja nos propondo alguns desafios, para que a gente asseste melhor nossas alças de mira. Mas é um horror. Quando quis ser escritor, eu não sabia nada de mercado, de crítica literária, de lista de best-sellers, de editora. Não sabia nada. Queria escrever e pronto. O dia em que consegui escrever e publicar, me ligaram do Jornal do Brasil para me entrevistar. E eu achei que era um trote. Nem sabia que escritor dava entrevista. Mas acho que vivemos um momento como aquele do motorista de um ônibus lotado que, de repente, pisa no freio para “ajeitar” o pessoal, o excesso da carga humana. Porque há um excesso aí. Nunca houve tanto livro no mundo. Eu estava no Salão do Livro de Paris, com Jean Soublin, e fomos ao estande da editora, fazer umas fotos. Daí, olhei para aquilo e disse: “Jean, olha quanto livro. Como é que a gente vai sobreviver?”. E ele vira para mim e diz: “Sabe o que é pior? É que a maioria é boa”. Isso é que é o diabo. A maioria é boa. Isso que a gente acha que é descartável também deve ter o seu valor. Porque tem tanta gente lendo, não é? Para alguém, tem que ter valor. Pode não ter para mim, mas tem para muita gente. Então, não sei qual vai ser o destino da literatura. Quem sabe ela fique como uma espécie de antídoto. “Ah, você está todo envenenado por essas pragas mercadológicas? Quer aqui um antidotozinho? É a homeopatia do mercado editorial. Pode ser assim o último livro do João Gilberto Noll? Um livro do Caio Fernando Abreu? Quem sabe uma reedição do finado João Antônio?”.

Um filtro
Aquelas sonoridades que me encantavam na arte, na música, no teatro e no cinema, tudo isso formou em mim uma sensibilidade. Acho que é isso que pega, é onde as coisas mudam. Não se trata estritamente da leitura de livros, mas também da leitura de uma música. De um Villa-Lobos, um Tom Jobim, um Miles Davis, um Mozart, um Luiz Gonzaga. É como se tudo isso tivesse contribuído para afinar a minha pele. Você fica mais sensível, claro. Isso também o canaliza para outros sofrimentos, pois você fica muito mais vulnerável. Sua pele fica mais vulnerável à poluição atmosférica, se impregna das coisas ruins que estão no ar, em um sentido mais simbólico. E por que é que a gente escreve? Deve haver uma falha dentro de nós. Por que o homem cria? Primeiro, porque ele não é capaz de carregar um ser humano dentro dele. De gerar um ser humano dentro dele. As mulheres não, elas não deixam de criar por causa disso, mas acho que, no homem, há esse componente, essa diferença, essa falta. Ele não gera uma criação dentro dele, então cria outras coisas. Tem um buraco dentro dele que ele precisa preencher. Tem que criar, inventar coisas e se entreter com isso. E, de outra parte, você vê o seguinte: a literatura serve muito, muito mesmo, para a gente se centrar. Enquanto você a está fazendo, você está filtrando, está sendo a esponja de uma atmosfera que não é necessariamente saudável. E aí é que entra o escritor como alguém muito incomodado, alguém desconfortável dentro do seu tempo. Todo escritor mostrou o desconforto que sentiu durante seu tempo. Vá ver Proust e Dostoievski, vá ver quem você quiser. Há um desconforto ali, terrível. Diante da sociedade, diante de tudo. Tem algo de auto-análise.

Antônio Torres. Foto: Matheus Dias

Portugal e a reconquista
Peguei um navio e fui para Portugal. Fiquei lá três anos. Agora, gozado: há uma febre fantástica de portugueses no Brasil. Desconfio que este prêmio Portugal Telecom foi feito para testar o mercado. Não foi feito para o Brasil. Houve até um certo engano no começo. Ia ser um prêmio brasileiro, mas agora ele já se definiu. Os portugueses estão tentando a reconquista. Como os espanhóis já reconquistaram o mundo hispânico, os portugueses estão vindo para a reconquista do Brasil na área econômica. Há altos investimentos. Já li no jornal que uma editora portuguesa quer comprar a Record, a minha editora. E eu digo: “Opa! Que é isso? O, pá!”. Vejo portugueses fazendo relatos fantásticos: vieram para um passeio a Salvador e aí fizeram um romance. Beleza. Eu morei três anos em Portugal para fazer um. […] Lá, tive três empregos. Foi difícil, porque até o teclado deles era diferente do nosso. E, no primeiro anúncio publicitário que escrevi, um cara me falou: “Tu pareces que escreve em língua de preto”. O “brasileiro” era, para eles, língua de preto. Só quando consegui criar um meio-termo, dentro de uma norma lusitana, mas com um certo ritmo brasileiro, passei a ser aceito como redator. O escritor de hoje também é muito isto: “Ah, vou fazer um romance sobre Curitiba. Beleza. Falei lá no Teatro Paiol. Olhei para os rostos das pessoas, vi um personagem que tinha um gorro, uma barba e tal. Já sei: começo com ele e vou embora”. Está tudo muito fácil, hoje, para ser escritor.

Jovens sem leitores
Trabalhei com publicidade quando até para se fazer propaganda havia uma curtição artística, criadora. Dos meus amigos que ainda estão nisso, não sobrou quase ninguém. Mas fui um cara que até teve uma vida longa nesse negócio. É como no futebol: a profissão dura pouco, é uma profissão para jovens. Depois que alguém fica velho, já não sabe pensar, não sabe das modas, não sabe das linguagens, não sabe disso e daquilo. É engraçado: na literatura, acho que os jovens não conseguem criar uma linguagem que reflita a linguagem do seu tempo. Se conseguissem, eles seriam muito lidos. Pelo menos eles me dizem isso. Teve um jovem autor que foi a minha casa para dizer: “Você é de uma geração que teve a sorte de ser lida de cara”. É e verdade. A geração de João Antônio, Ignácio de Loyola Brandão, Sérgio Sant’Anna — que começou antes de mim, apesar de ser mais novo do que eu. Todos tínhamos muitos leitores na nossa geração. E, hoje, os jovens se queixam de não ter leitores na própria geração. Então, tem aí algo complicado com a percepção desse leitor novo. Acho que há um distanciamento entre o escritor e o leitor. Que haja um distanciamento de mim para eles é normal, mas que haja um distanciamento entre eles mesmos, isso já me causa um ponto de interrogação.

Geração esmagada
Quando estreei, deu um rebuliço nos velhos. Jorge Amado, José Américo de Almeida. E os da minha geração começaram a aparecer. Deu a sensação de que, se todos nós comprássemos os livros uns dos outros, todos seríamos best-sellers. […]E fomos conhecendo todo mundo: João Ubaldo na Bahia, Márcio Souza em Manaus, Moacyr Scliar em Porto Alegre, Domingos Pellegrini em Londrina… Tinha gente à beça. Naquele tempo, a gente se aliou muito aos que vieram antes. Rubem Fonseca, Cony, José J. Veiga, Lygia Fagundes Telles, Autran Dourado, Fernando Sabino, todos esses grandes nomes. Uma geração muito poderosa, mas que ficou esmagada pelo peso de Guimarães Rosa e de Clarice Lispector, e que, só mais recentemente, emergiu. Mas essas duas vertentes foram pesadas demais para a nossa literatura. Guimarães Rosa, para mim, é o São Francisco que deságua no Mississipi onde Faulkner fundou um território mítico e descreveu sua legenda. Guimarães Rosa é isto: é o grande rio do continente. O São Francisco e o Mississipi desses dois grandes autores.

Adiposidades da língua
De forma redutiva, vá lá, começamos com Machado de Assis, Lima Barreto. Aí, veio 22, que propunha um ideário de rompimento com a norma lusitana, que propunha a gente escrever conforme a nossa norma, até com a incorreção das nossas falas. E esse ideário foi realizado pelo romance de 30. O romance de 30 é que vai executar mesmo — na prosa pelo menos — esse ideário. E, na poesia, Manuel Bandeira, Drummond. Mas o abrasileiramento do texto, proposto em 22, vem a se concretizar só nos anos 30. Tanto que Graciliano Ramos disse que tinha dois trabalhos: primeiro, o de escrever; e, segundo, o de reescrever para abrasileirar seu texto, que era muito influenciado, no começo, pelo de Eça de Queiroz. Quer dizer, ele tinha muita influência lusitana. E, aí, quando chegamos a Guimarães e Clarice, tudo se extrapola. Essa literatura se revira pelo avesso, dando espaço a uma outra, que começa com Rubem Fonseca e Fernando Sabino. Para mim — e isso não tem nenhuma base científica, é só uma intuição minha, uma coisa de leitor —, esses autores fizeram uma cirurgia da língua, tiraram as adiposidades da língua portuguesa. O português colonial. O português colonial é barroco demais, muito rococó. Criou-se no Brasil uma mentalidade de que escrever e falar bonito é falar difícil, complicado, com adornos e floreios. Então o parnasianismo entrou, deitou e rolou. Mas atenção: com toda a qualidade poética daqueles caras, o fazer literário do parnasiano era fantástico. Mas havia um outro lado que reforçava esse gosto do Brasil pelo embolado, pelo barroco. Até chegar Fernando Sabino, com O encontro marcado, com sua influência americana — e com o lado bom dessa influência.

Antônio Torres. Foto: Matheus Dias

As duas professoras da roça
Tenho um filho que já escreveu quase 20 livros e está rico. Só que os livros dele são de informática. Se eu me visse nesse menino, no meu filho, certamente não teria passado por todo esse século 19, por todo esse século 20, até chegar à pós-modernidade, com essa minha trajetória de leituras. A minha leitura era outra. Se as coisas seriam melhores ou piores não vem ao caso. Sou produto de um tempo. O mundo é produto de um tempo. Não há como fugir dessa realidade. Acho que meu tempo foi um tempo muito rico. Até escrevi um texto a pedido do Júlio Diniz, o novo diretor de Letras da PUC-Rio, para um livro que ele está coordenando. O tema é fantástico: “Razão de ler: memórias”. Levei dias e dias produzindo um texto longo de 15 páginas, para costurar coisas que tenho falado aqui e ali. Criei um personagem, um menino. Comecei com aquela fábula de Leonardo Da Vinci, O papel e a tinta, dei todo um tom de fábula a esse relato. As professoras eram fabulosas, a mãe era fabulosa. A palavra “fabulosa” remetendo exatamente para o nosso campo, o nosso território, que é o do romance. É claro que não há nada melhor no mundo, é claro que eu queria ser, hoje, um jovem autor. Mas um jovem autor com a vivência que eu tive, porque me parece que o mundo está muito complicado para o jovem. De repente, olho para o jovem e parece que está mais fácil eu sobreviver de escrever e falar sobre isso do que um jovem autor fazer o mesmo. Embora o mundo seja sempre dos jovens. Tem uma coisa complicada no nosso tempo. O velho, por pior que esteja, ainda tem algo pelo que recorrer a ele. Uma conferência, um negócio, um texto como esse que fiz, de memória. Talvez o mundo até esteja carente desse tipo de memória, queira criar alguma referência para um tempo que parece estar completamente descentrado. É a questão da pós-modernidade, que é o descentramento do homem mesmo. Não sei. Mas devo ter tido uma boa infância, porque, de alguma maneira, não sou uma pessoa infeliz. Não é que eu não encare o sofrimento. Não é que eu não vivencie estados de dor. Mas não sou necessariamente uma pessoa infeliz, ressentida, rancorosa ou catastrófica. Quer dizer, a realidade é dura e tal, mas será que ela já foi fácil? Olhando para trás, a gente tende a pintar uma aquarela onde tudo era verde. Os verdes mares. Mas eu tive uma escola primária rural boa. E saí dali formado. Devo muito a isso. Àquelas duas professoras da roça.

Sai Cabul, entra a China
O bom mesmo é que a gente está vivo. O mundo está ruim? Vamos melhorá-lo, gente. Eu quero manter, até a morte, o meu sonho de arte e de beleza. O sonho que herdei daquela escola que me aprimorou com a leitura daqueles autores todos. Dava pra ficar a noite toda só falando de autores. É o que me dá prazer. Falar dos novos que estão aí. Não dá para falar de todo mundo, porque, no Brasil, tem mais autor do que gente. Dizem que, no Brasil, tem mais autor do que leitor e mais editora do que livraria. É uma operação complicada. Sou de uma geração de autores que, quando procuravam outro autor, é porque já o tinham lido e tinham, com ele, uma relação de admiração. Talvez agora a literatura seja formada por tribos. Diz um amigo meu que os poetas nem tribos formam. Formam seitas. Seitas de poetas. É uma seita contra outra, uma tribo contra outra. Os tupinambás contra os tupiniquins. Quando eu era um jovem autor, os jovens autores tinham uma consciência muito grande dos outros e da necessidade de lutar pelo espaço da literatura. Aí, acho que talvez falte certa consciência política do que esteja acontecendo. Idealização da arte? Não é nada disso. É a consciência do mundo em que a gente vive. É a consciência de que estamos ficando aleijados nesse processo. Eu conversava, outro dia, com um amigo escritor, e ele me dizia: “Deu uma impotência no autor. Antes, a gente gritava, chiava e funcionava. As editoras se abriam para nós, os jornais se abriam, as salas de aula”. Mas hoje, talvez, isso não esteja mais valendo. O que está valendo é o que vai vender um milhão em qualquer país do mundo. Primeiro, foi a febre de Cabul. O livreiro de Cabul, A prostituta de Cabul, O corno de Cabul, O traficante de Cabul. E aquilo é para vender um milhão de exemplares em todo mundo, inclusive no Brasil. Agora, vai sair Cabul e entrar a China. Como era gostoso o meu chinês… Se preparem, porque a China vem aí, pesadamente. E, nisso, a gente fica folgado. Nós estamos vivendo um tempo tão curioso, em que o Brasil tem a sedução do estrangeiro. Nosso lado colonizado é forte. É forte demais. A gente vai ao Salão do Livro de Paris e temos, lá, um espaço de estima. E é assim na Alemanha e em qualquer lugar. Aqui, temos uma Bienal onde todos os espaços são para O livreiro de Cabul, O viado de Cabul, A puta de Cabul, O doido de Cabul, O baiano de Cabul. E mais 300 autores brasileiros. O espaço para a gente é esse: “E mais 300 autores brasileiros”.

Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

Rascunho