Poemas de Anna Mariano

Leia os poemas "Quietude" e"Lavados"
Anna Mariano, autora de “Pra amanhecer ontem”
24/12/2018

 

Quietude

Deixar o dia passar em brancas nuvens
sem cobiça, sem querer, como quem troca
palavras desatentas com a vizinha
— hoje a tarde está tão quente, talvez chova —
receitas sobre o muro, madressilvas.

Deixar o tempo correr por sob a casa
entre canos de cimento, fundamentos
lá por trás do assoalho, lá por baixo
onde brincam amores fracassados
e uma dor tão velha que nem mais é triste.

Também a noite deixar que passe em branco
sobre o sereno lacrimar das pedras
sem ouvir o coração pulsando sangue
e no fundo mais profundo de ti mesmo
adormecer sofrendo normalmente.

Lembrar por lembrar que o leiteiro
num repicar de vidros e garrafas
acordava com leveza as madrugadas
afagava os que dormiam com seus sonhos
e partia sem saber que foi poema.

…..

Lavados

Sobre a corrente do arroio
arregaçavam as saias
deixavam entrever o cerne
da rosa rubra, carnosa
escura rosa de carne
que lambaris beliscavam.

Com mãos de chumbo batiam
na pedra branca segredos
de muito, ensaboados
lençóis, cortinas, babados
o sangue da negra virgem
o choro azul da sinhá
o suor de quem lavou
o sêmen do seu sinhô
na mesma água encadeados
corrente abaixo rolavam.

E se alguém perguntasse
porque assim ocorria,
a luz cinzenta dos gansos
diria em voz de mil banzos
que nos lavados do amor
não tem sinhá nem sinhô.

Anna Mariano

Nascida em Porto Alegre (RS), publicou seu primeiro livro de poemas em 2006, Olhos de cadela (finalista do prêmio Açorianos de Literatura). Seu primeiro romance, Atado de ervas, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura — Autor Estreante. Pra amanhecer ontem (2017) é seu mais recente romance.

Rascunho