Alexei Bueno

“Eu sinto uma angústia terrível quando alguém lê os meus poemas na minha frente."
Alexei Bueno no Paiol Literario. Foto: Matheus Dias
01/10/2007

O poeta Alexei Bueno foi o sétimo convidado da temporada 2007 do Paiol Literário, projeto realizado pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba. A partir de uma pergunta inicial — qual a importância da literatura e da poesia na vida cotidiana? —, Alexei falou do início como leitor de poesia, de sua obra e de seu processo criativo, entre outros assuntos.

• Acima da existência banal
Em relação à importância da literatura, eu dou a mesma resposta que daria às outras artes, como cinema, artes plásticas, música… Várias respostas são, pelo menos, parcialmente verdadeiras. O Robert Hughes, que acaba de lançar uma biografia do Goya [Companhia das Letras], por exemplo, diz o tempo todo que a função da arte é dar prazer. Eu considero o prazer proporcionado pela arte um fenômeno. Toda arte, de fato, dá prazer. A culinária me dá um prazer enorme e, em certo sentido, a considero uma fabulosa arte. No entanto, no sentido que eu dou à palavra arte, a culinária não é arte. O prazer estético em qualquer obra artística digna do nome é de fato uma das funções. Depois de ler inúmeras opiniões sobre a função da arte, há uma de que gosto muito — a de Fernando Pessoa: “a função da arte é engrandecer”. Você sai maior de qualquer experiência estética. Quando você se encontra com qualquer obra de arte, seja um poema, seja uma música, você sai ampliado, acima da sua existência diurna, cotidiana, banal. Há momentos em nossa vida que isso fica muito claro. Quando eu tinha 13 anos de idade, em 15 de janeiro de 1977, no Cineclube Macunaíma, eu fui ver Deus e o diabo na terra do sol [filme de Glauber Rocha]. Quando a luz acendeu, eu saí quase de quatro do cinema e durante um ano só falei do filme. Foi uma das experiências estéticas mais tremendas que tive na vida. Eu saí do cinema me sentido como o gigante Adamastor [figura mitológica presente em Os lusíadas, de Camões]. Então, voltando à definição do Pessoa, acho que a função da poesia é engrandecer, não no sentido megalômano da palavra, mas no sentido de você conseguir sair desta miserável condição humana, que é nascer neste mundo outorgado, algo completamente absurdo. Algo existir é um absurdo científico e filosófico. Nós nos encontramos nesta coisa estarrecedora, num lapso de tempo entre duas eternidades das quais nós não sabemos nem o que aconteceu antes nem o que vai acontecer depois — se é que vai acontecer alguma coisa. Isso tudo me deixa profundamente angustiado e apavorado. E num dos poucos momentos em que sinto certo alívio disso é com a arte, que consegue me tirar um pouco da ratoeira metafísica em que todos nos encontramos.

• Ao som da mãe
Minha mãe, que ainda é viva, recitava muito bem poesia. Fui criado por minha mãe e minha avó. Só fui conhecer meu pai aos 36 anos. Ao ouvir minha mãe recitar, comecei a ter uma atração muito visível, muito forte, pela poesia. Nessa idade, entre os 5, 6 anos, antes de saber ler, tive acesso aos poetas românticos brasileiros, que eu consegui compreender de maneira mais integral. A poesia tem uma coisa extraordinária: na grande poesia, você passa perfeitamente por cima de lacunas de vocabulários. A popularidade de Augusto dos Anjos nunca se ressentiu dos poemas nos quais ele usa um vocabulário muito pesado, de biologia, de filosofia. Óbvio que há na obra lírica dele coisas muito simples, de uma simplicidade cristalina, que qualquer pessoa pode ler. Mas o fascínio que eu tinha por Augusto dos Anjos sempre passou por cima desses obstáculos. Certamente, havia palavras que eu não conhecia, mas a obra me impressionava muito. Minha mãe recitava Casemiro de Abreu, Castro Alves, Gonçalves Dias. Me lembro muito bem de minha avó recitando partes do I-Juca Pirama [poema épico de Gonçalves Dias], que para mim é um dos monumentos totais da poesia em língua portuguesa. Quando comecei a ler, minha primeira fonte de poesia foi O tesouro da juventude, aquela coleção de 18 volumes de capa azul, de origem inglesa, admiravelmente adaptada para o Brasil. Nessa mesma época, comecei a ouvir muita música clássica. Aos 10 anos de idade, eu já tinha lido muita coisa e, então, escrevi uma quadrinha popular: quatro versos, de redondilha maior, sobre um tema completamente absurdo: a explosão do vulcão Cracatoa. Aos 12 anos, escrevi um poema mais ou menos longo, no estilo verso livre modernista, que era o estilo de época do leitor médio, sobre a Bahia. A partir daí, passei a escrever regularmente. Nunca mais parei.

• Poesia e prosa
Minhas primeiras leituras foram os poetas românticos brasileiros, com destaque para Castro Alves e Gonçalves Dias. Logo depois, veio Camões, que é uma paixão absoluta até hoje. Eu detesto ler poesia minha, mas adoro recitar a dos outros. Camões, eu posso ficar horas recitando. Tenho uma memória razoavelmente boa para versos. Em seguida, a prosa começa a entrar na minha vida juntamente com a poesia. Comecei a ler Edgar Alan Poe, que atrai muito os adolescentes, não só a obra tenebrosa, mas também a humorística. E a partir do momento em que começo a ler em outras línguas, liberto-me da tradução. Em certo momento, começo a ler diretamente do francês, inglês, espanhol, italiano.

• Obsessão pelo tempo
Havia áreas de temática que me atraíam muito. Uma certa obsessão pelo tempo sempre foi muito forte em mim. O tempo é uma questão do ser. Essa coisa do irrecuperável, esse fluir de nós mesmos — nós não podemos nos segurar —, e os resultados disso na nossa ambiência, em volta de nós. Tudo o que há em volta de nós vai desaparecendo junto conosco. Os anos vão passando e você não vai só perdendo os amigos, os parentes, mas também os prédios, as ruas, os locais a que você está acostumado. Sou um homem totalmente urbano: fui criado no nono andar de um prédio em Copacabana. Sou um urbanóide total, muito ligado a essa visão da cidade, meio budelaireana, digamos assim.

• A inspiração
Não acredito em nenhuma obra de arte em que não haja alguma colaboração do inconsciente. Para mim, na própria noção de arte existe isso. Ou, então, seria uma atividade absolutamente fria, como outra qualquer. Mas não é. A prova disso é que na arte a aparição das coisas não tem uma lógica cronológica. Rainer Maria Rilke ficou quase 10 anos em silêncio, sem escrever praticamente nada, e em duas semanas — exatamente em 14 dias — escreveu 55 Sonetos a Orfeu e as sete últimas Elegias de Duíno. O que é isso? Isso é inspiração. Óbvio que nesses 10 anos, ele foi acumulando pensamentos, idéias, emoção. Um dia, essa coisa toda se junta e dá origem à obra de arte. Nas artes de tempo — aquelas que precisam de um tempo para ser vistas pelo leitor: literatura, música e cinema —, o processo é diferente do das artes plásticas, por exemplo. As pessoas podem ter implicância com a palavra “inspiração”. Os gregos chamavam de “mania”, de “entusiasmo”. O Guimarães Rosa, minha grande paixão na prosa brasileira, dizia que só escrevia “tomado pelos caboclos”. Ele usava uma expressão de macumba. Ao ler Guimarães Rosa, nota-se que ele nunca escreveu aquilo de maneira fria.

• Entressafra
Já fiquei quatro anos sem escrever uma única linha. No ano passado, quando publiquei meu último livro [A árvore seca], eu escrevi centro e trinta e poucos versos em três meses. Durante um período, eu ficava muito angustiado, se ficasse um longo tempo sem escrever. Hoje, eu nem penso nisso. Já escrevi em talão de cheque, andando na rua, e parando de dez em dez metros. Tenho corrigido cada vez menos. De uns anos para cá, tenho escrito com intervalo maior entre um período e outro. A coisa sai cada vez mais límpida. O período de entressafra está aumentando. Mas isso pode mudar a qualquer hora. Durante esses quatro anos, fiz muita coisa, escrevi outras coisas. Em nenhum momento me angustiei por não estar escrevendo poesia. Algum tempo atrás, eu me angustiava. Fui tocando a minha vida, pagando as minhas contas, os impostos — esta coisa amarga que nos inferniza a todos nós. Mas teve um dia em que escrevi sete poemas. Foi uma maravilha.

• Paz de espírito
Toda santa noite (a não ser que esteja fazendo algo que me impeça), entro no quarto, fecho a porta, ligo o abajur e leio das 10 até as 2 da madrugada. Não acordo muito cedo. Tenho horror natural de acordar muito cedo. Tenho essa rotina. É um momento ótimo: depois de fazer tudo o que tinha de ser feito durante o dia, você tranca a porta do quarto e fica naquela paz de espírito.

• Prosa e poesia
Na prosa, estou lendo grandes autores dos séculos 19 e 20. Não tenho lido prosa contemporânea. Poesia, eu leio sempre. A poesia tem uma certa vantagem: com uma passada de olhos, você sabe se o livro te interessa. Se o livro é muito ruim, em dois ou três poemas já é possível descartá-lo. No caso do romance, é necessário um bom trecho para saber se o livro presta.

• Difícil panorama
Não gosto muito das classificações por geração. Da minha geração para baixo, conheço muitos poetas interessantes, mas espalhados pelo Brasil e sem muita repercussão nacional. Admiro muito o poeta pernambucano Carlos Newton Júnior. O Henrique Samin, um rapaz que estreou agora, muito jovem, de apenas 27 anos, me parece ser um crítico muito bom e um poeta admirável. É uma quantidade tão vasta, tem muita gente escrevendo. Angustia-me fazer um panorama da atualidade poética. Há muita coisa que não li. E há aquelas coisas que categoricamente não me interessam: a videopoesia, poesia visual, poesia no computador. Para mim, isso está ligado às artes visuais e não à poesia. Uma vez me perguntaram sobre estas possibilidades híbridas e eu falei uma frase do Dalí, que é muito reacionária e muito engraçada: “o mínimo que se espera de uma escultura é que ela não se mexa”. É uma frase genial.

• Grupos sociológicos
A atual poesia brasileira tem uma grande variedade. Há certa atomização em estilos pessoais. O estilo de época praticamente se desfez. Não sei se isso é uma coisa ruim. Há grupos sociológicos que identifico perfeitamente: um grupo é ligado às chamadas vanguardas paulistas dos anos 50. São os discípulos dos concretistas de São Paulo, que se espalham pelo Rio de Janeiro e Minas Gerais. Esse grupo é uma espécie de seita. São como seguidores do Bispo Edir Macedo. O concretismo é a versão poética das igrejas neopentecostais. Alguém ligado aos concretistas tem respostas implacavelmente iguais. Se falar de cinema, ele vai falar de Julio Bressane. Se falar de tradução de poesia, ele vai falar de Odorico Mendes. Se falar de música popular, ele vai falar de Caetano Veloso. Conheço a receita de bolo integral desses caras. São como a linha de produção de uma montadora de carros: são todos absolutamente iguais. É uma coisa espantosa. Formam um grupo monolítico. Eu considero o concretismo na poesia — independentemente de ser boa ou ruim — basicamente um braço das artes visuais. Todos conhecem o poema Cloaca, do Décio Pignatari, em que ele reproduz uma privada. Um troço muito hábil, aliás. É um caso de cartazismo. É algo para se colocar na rua e esculhambar a coca-cola. Pra mim, aquilo é um ramo das artes visuais — o que me parece cada vez mais claro, à medida que cada vez mais as artes visuais usam palavras. Além disso, apareceu essa coisa chamada arte conceitual, que considero uma tragédia universal. Mas apareceu e muita gente vive muito bem dela, enquanto eu vivo muito mal. No Rio de Janeiro, tem uma coisa que é muito carioca: a chamada poesia marginal, aquela turma que vendia mimeógrafo nos anos 70 — muito ligada às artes cênicas. São poesias para serem representadas, berradas. É uma coisa de palco. Inclusive, vários caras desse movimento foram para a TV Globo. No meio dessas duas vertentes, há uma imensidão de gente que escreve poesia no Brasil que não tem uma base sociológica tão clara quanto à dos ligados aos concretistas ou à poesia marginal.

• Escrita em transe
Sempre ouço que “temos de desmistificar, tirar a aura da poesia”. Não temos de desmistificar nada. Temos de colocar aura e mistificar ao máximo. Eu tenho verdadeiro horror à expressão “operário da palavra”. Eu não sou operário de nada. Pode ser uma merda ou uma obra-prima, mas escrevo a minha poesia em transe. Outra coisa que me deixa louco é ouvir: “eu gosto muito do seu trabalho”. O meu trabalho, eu faço para ganhar dinheiro. E eu nunca ganhei dinheiro com a poesia. Não há trabalho nenhum. Meu contato com o leitor é sempre muito agradável. Mas não é uma coisa que me preocupa. Eu sinto uma angústia terrível quando alguém lê os meus poemas na minha frente.

Alexei Bueno no Paiol Literario. Foto: Matheus Dias

• Sem explicação lógica
A poesia, como qualquer arte, não é uma teia implacável de raciocínio lógico, apesar de eu não ter nada de surrealista. Há vários poemas, de vários momentos da minha vida, em que há imagens que funcionam esplendidamente bem naquele poema e eu não sei dizer por que escrevi aquilo. No poema Babilônia, que escrevi aos 17 anos, digo: “Ah! retornemos para Babilônia!/ E hoje que é noite e só existe areia/ Como um menino no jardim da ceia/ Ergamos torres com esse pó de insônia”. Esse menino no jardim da ceia, eu não sei o que é. Pode ser um menino brincando. Estou dando um exemplo entre muitos outros. Eu não escreveria isso — “como um menino no jardim da ceia” — em plena consciência racional, porque não quer dizer nada. O poema O bordado cruel é a cena de duas velhas torturando lentamente uma aranha até que o bicho morre e elas ficam num desespero terrível. Eu tenho uma madrinha que foi criada pela tia e pela avó e foi infernizada a vida inteira por aquelas duas velhas completamente loucas. O bordado cruel, eu jamais escreveria em total estado de lucidez lógica. Provavelmente, o uso do inconsciente diminuiu um pouco em relação a este último livro, por exemplo. Há frases, das quais gosto muito e funcionam esplendidamente, que eu não sei como surgiram. Aquilo está lá e eu acho que é poesia. No poema O bordado cruel, aparece um menino na janela e não tenho a menor idéia do que ele está fazendo lá. Há algo de misterioso nesse poema que faz com que ele funcione bem. Como narrativa — é um poema narrativo — talvez seja uma das coisas mais irracionais que escrevi na vida.

• Poema na nota de real
Ao fim, o que aparece não é o poema, mas o vácuo deste. Quando se vai escrever o poema, a primeira coisa que se sente não é poema, mas é a forma vazia onde você terá de jogar o conteúdo verbal para o poema sair. O vácuo que, na poesia, pede o fluxo verbal. Sempre senti isso. Acho essa descrição a mais precisa que posso fazer do meu caso. O primeiro núcleo, além desse que mistura tudo, é um vácuo conceitual, emocional, de pensamento, mas o que detona tudo é um ritmo, é uma coisa sonora, é um primeiro verso. Há outro poema meu — Helena, também bastante popular — que trata da morte de Helena de Tróia, escrito num ônibus, no Leblon. Helena foi a síntese total do que poderia ser a beleza física do ser humano. Eu a imaginei na extrema velhice. Na verdade, é um poema sobre a decrepitude. Aí, eu peguei uma nota de um real e escrevi o poema inteiro nela. Tenho esta nota guardada. Eu reparei que isso aconteceu dois dias depois da morte da Marlene Dietrich. No sentido erótico, eu nunca fui fã de Dietrich. Eu era fã da Louise Brooks. Mas Marlene Dietrich, que enlouqueceu metade da humanidade masculina, morreu na mesma época em que escrevi o poema sobre a morte de Helena de Tróia. A diva do cinema morreu com mais de 90 anos. E no meu poema, Helena morre aos 95 anos.

• Tradução de poesia
Há resultados esplêndidos na tradução de poesia. O Guilherme de Almeida traduziu alguns poemas de As flores do mal, de Baudelaire, e reuniu no livro As flores das flores de mal. Ele traduz um soneto que considero o mais belo da língua francesa: O recolhimento. O que posso dizer é que a tradução de poesia funciona às vezes. E graças a Deus que funciona. Por exemplo, eu tenho pilhas de poemas traduzidos do grego Konstantinos Kaváfis, por quem eu sou louco. Agora, há coisas muito difíceis de traduzir, como Paul Verlaine, por exemplo. Há um poema que considero rigorosamente impossível de traduzir: O cemitério marinho, do Valéry, Eu traduzi As 20 quimeras, de Gérard Nerval. Acho que duas quimeras saíram a cara do poema original. Tradução de poesia é uma análise combinatória. É preciso manter o sentido, a rima, a métrica e os acentos. Eu só traduzo mantendo a forma, caso contrário não vejo graça alguma. Então, é necessário ter uma boa habilidade para análise combinatória. Traduzi o poema Excelso, do Longfellow. É um dos poemas mais lindos do romantismo americano, e a tradução saiu tal qual. Não me deu trabalho algum. É uma coisa misteriosa. Como ficou, seria um grande poema do romantismo brasileiro. Não porque eu o traduzi, mas se tivesse sido escrito no Brasil em 1870, seria um lindo poema do romantismo brasileiro. Então, a tradução funcionou. Agora, é algo dificílimo. O Brasil tem tradutores fabulosos, como José Paulo Paes e Augusto de Campos, por exemplo. Para traduzir poesia, tem de ser poeta. Não precisa ser grande poeta, mas precisa ser poeta. Eu nunca achei o José Paulo Paes um grande poeta, mas é um tradutor fabuloso, que tinha o domínio técnico total. Sem o domínio técnico, não se faz nada. Tradução de poesia é algo altamente meritório e, às vezes, consegue resultados fantásticos. A minha poesia já foi traduzida. Em verso livre, ficou ótima. O meu livro A via estreita foi traduzido pela Luciana Stegagno Picchio, que foi amiga do Murilo Mendes e é uma das grandes filólogas vivas; está com 87 anos. A via estreita é um poema em dez partes, tudo em verso livre. A tradução dela para o italiano ficou esplêndida. Mas traduziu dois poemas de Lucernário, de forma fixa, que perderam alguns elementos sonoros, mas ficaram muito bonitos também. Uma moça traduziu alguns poemas do meu livro Poemas gregos, cujos versos são todos brancos; não têm rima obviamente; o mínimo que se espera de poemas gregos é que não tenham rima, já que na antiguidade nunca se usou rima. Mas os poemas tinham métrica. Eu não gostei nem um pouco da tradução. São poemas muito sintéticos, muito enxutos, nos quais a grande graça é uma sintaxe muito livre, com inversão de palavras. O português, como o italiano, tem uma liberdade muito grande para se fazer isso. Sou louco pelo maior poeta romeno, o Mihai Eminescu — um mostro, um dos maiores poetas do mundo. Só li a sua poesia traduzida em francês. Se não fosse alguém com coragem para traduzi-lo, eu iria conhecer muito mal o Eminescu. Viva os tradutores de poesia.

• Generalização do poético
A aura meio apalhaçada da poesia existe pelo menos desde o século 19. É uma coisa que não existe em relação ao prosador. Tenho horror que me apresentem no meio da rua como poeta. Isso me dá uma angústia terrível porque tem muito poeta ruim. Quando se fala “ele é pintor”, eu não tenho uma idéia tão miserável, porque quando a poesia dá para ser ruim é a pior coisa do mundo. Talvez eu tenha uma sensibilidade exasperada para isso. Pode-se ser um pintor naturalista, um pintor razoável de paisagens e fazer um belo objeto decorativo, sem ser a grande pintura. O poeta é a metáfora de todos os artistas. Picasso é um poeta; Beethoven é poeta. Isso é um saco. O poético está em todas as artes, obviamente também na poesia, mas a poesia não tem nada a ver com a generalização do poético. É uma coisa muito complicada. Todo mundo é poeta e o poeta fica a ver navios.

• A passagem do tempo
Aos 16 anos, publiquei o livro O tempo anoitecido, que considero totalmente imaturo. Não acho ruim, não. Mas hoje jamais publicaria nenhum daqueles poemas, mesmo que não ache que façam vergonha. Havia, no entanto, deficiência técnicas. Eu não estava no ponto. Se algum amigo quiser ler, até dou de presente. Tenho alguns exemplares no sótão. No início, o que eu tentava exprimir era a questão da passagem do tempo e da nossa grande proximidade com a humanidade que já desapareceu. Não vou usar a famosa frase do Augusto Comte: “os vivos são hoje cada vez mais governados pelos mortos”. O Barão de Itararé fez um trocadilho espetacular: “os vivos são hoje cada vez mais governados pelos mais vivos”. Mas eu sempre me impressionei muito com essa coisa que me parece um equívoco total — a ilusão do privilégio da contemporaneidade. O homem moderno se acha um privilegiado por ser contemporâneo, como se os demais seres que andaram pela terra não fossem contemporâneos. A palavra “contemporâneo” não tem sentido, a não ser quando usada nas relações banais. Estamos condenados à contemporaneidade. Nunca alguém não foi contemporâneo. Só é possível na negativa, quando digo que um não foi contemporâneo de outro. Eu não acredito na idéia de progresso em arte. O tempo da arte é o tempo tradicional, cíclico, com momentos de apogeu, decadência e oscilações. O eterno movimento pendular.

• Desespero total
A condição humana me deixa absurdamente apavorado. Eu tenho a noção claramente budista de que a vida é sofrimento. E só não é sofrimento quando você se distrai. No momento em que paro de me distrair e olho exatamente para a situação de indivíduo, onde tudo a minha volta está condenado à morte, me dá um desespero total. Só não me dá um desespero maior porque sou religioso. Sou um homem que acredita que o logos precede a matéria. O que me salva um pouco deste desespero é ter uma visão transcendente do universo. Me encontro dentro de um mistério total; não sei de nada; acho tudo absurdo e convivo com este absurdo justamente por se definir como absurdo.

• Personagens de nós mesmos
Um grande artista é um mito como qualquer outro. Um exemplo: Dalí só se mitificou. Às vezes, considero-o melhor escritor do que pintor. Ele tem uma obra escrita simplesmente extraordinária. Todos nós somos personagens de nós mesmos de uma maneira implacável. Em certo momento da vida, você percebe, queira ou não, que há uma idéia sobre você colocada pelas pessoas. Sou um obscuro poeta e já ouvi falarem coisas absurdas sobre mim que nunca aconteceram. Uma coisa espantosa. Acho isso interessante. O Baudelaire criou um auê sobre si mesmo, mas o que importa é a obra dele.

• Formas
De maneira involuntária, fui me aproximando das formas fixas na poesia. Fui saindo do verso livre. O verso livre, como se escrevia naquele momento no Brasil (décadas de 60 e 70), me parecia um instrumento gasto, parecia que já tinha dado o que tinha de dar. Eu tinha lido de tudo. Mas de forma involuntária, fui me aproximando das formas fixas — quadra, soneto, etc., todo esse arsenal bastante vasto. Aos 16 anos, eu parei de ter qualquer deficiência formal. Se fizesse um soneto, ele seria um soneto formalmente perfeito. Eu não estou me elogiando: o soneto poderia ser uma merda, mas a forma seria perfeita. Modéstia à parte, eu sempre tive um ouvido muito bom. Demorei um pouco para passar para o verso livre. Só comecei a escrever verso livre que me satisfez em 1989, quando tinha 26 anos.

• Sem grana
A literatura tem uma grande vantagem em relação às outras artes: ela não dá dinheiro. Mesmo tirando um caso ou outro de best-sellers terríveis, não se compara com o de um quadro em que o artista faz um jogo da velha, fura no meio e depois urina em cima e vende por milhões. Há muito dinheiro nessa jogada das artes plásticas, que graças a Deus não existe na literatura. E também não há na música erudita. Qual a fração de importância que a música erudita tem no Ocidente hoje? Eu posso provavelmente falar o nome de 100 compositores dos séculos 18 e 19, com a maior facilidade. Quem consegue falar o nome de 10 compositores vivos de música erudita? Sumiram, desapareceram.

• Território da liberdade
Sou louco por internet. É o território da liberdade. Estamos vivendo num fascismo total. Brevemente, quem acender um cigarro na rua vai apanhar. Nos anos 30, um escritor brasileiro moreno quase foi linchado em Berlin porque achavam que ele era judeu. Brevemente, vão fazer isso com quem acender um cigarro na rua. Essas coisas começam sutilmente e vão acabar em assassinato. Para mim, vivemos um dos momentos mais sórdidos da humanidade no século 21, liderado por esse energúmeno nos Estados Unidos. O ambiente está pesado. A internet é um raro território de liberdade. Em casa, meu filho de 14 anos fica o dia inteiro jogando no computador. Meu filho não lê praticamente nada. Será que se não existisse a internet, ele iria ler? Tenho grande dúvida. Ele tem um ótimo ouvido musical, gosta muito de cinema, mas não lê nada. Você não pode forçar ninguém a ler. Acho que é algo vocacional. É óbvio que o contato natural do livro como passatempo, como era dominante no século 19, ajuda muito. Desde o rádio até aqui, tudo o que apareceu, indubitavelmente, tirou o público da literatura no sentido de entretenimento. Temos de conviver com isso. Talvez não seja uma tragédia. A internet é igual ao Exu na macumba: não faz nem para bem nem para mal; você utiliza como quiser.

Alexei Bueno no Paiol Literario. Foto: Matheus Dias

• Haicai e rigor
Tenho muitos poemas curtos. E gosto muito deles. Escrevi um livro de haicais num momento de tara por haicais. São 100 haicais escritos em duas semanas. Fui tomado pela forma. É uma forma que te leva implacavelmente a uma certa visão do mundo. Falando em haicai, o que acho impressionante é o mau hábito de chamar qualquer poema curto de haicai. O mínimo que se pode esperar de um haicai é que tenha três versos. Pode-se até deixar a métrica (7, 5, 7 sílabas em cada verso) de lado. Agora, tem gente que escreve dois versos e diz que é haicai. Pode ser um dístico, um poema de dois versos; pode ser tudo, menos um haicai. Essa coisa da nomenclatura é um saco. Haicai não é sinônimo de poema curto. Em artigo recente, eu disse que concisão não tem nada a ver com tamanho. Grande sertão: veredas tem 600 páginas e é a coisa mais concisa do mundo porque não tem uma vírgula que se perca. Esse culto do pequeno: Ah, porque é o rigor! E daí? Dom Quixote não tem rigor? A Divina Comédia não tem rigor? Isso é coisa de concretista paulista.

• Caminho para a leitura
É preciso gerar a possibilidade da leitura. Uma criança criada, por exemplo, no Complexo do Alemão [uma das principais favelas do Rio de Janeiro], virar um escritor é uma dificuldade extrema, pois está num ambiente de grande privação do contato com os livros. Criança gosta de poesia. É claro que você não vai ler T. S. Eliot para as crianças. Acho a melhor coisa do mundo, para iniciar as crianças na leitura, os românticos brasileiros. Casemiro de Abreu, por exemplo, que parece um regato cristalino correndo, é de uma simplicidade total e tem a coisa da sonoridade. Para criança, a sonoridade é muito importante. A noção de poesia do povo, a mais popular, e também da criança, é ligada à rima, ao retorno da rima. Então, a melhor maneira de aproximar a infância da poesia é através de poetas como Casemiro de Abreu.

Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

Rascunho